Segunda-feira, 23 de Janeiro de 2017
“O contexto hodierno da missão – escreve o P. Estêvão Raschietti, missionário xaveriano italiano, que trabalha há mais de 20 anos no Brasil – não é mais aquele do nosso Fundador ou da nossa Fundadora, nem aquele dos arquétipos de nossa imaginação, nem o destemido de épocas relativamente recentes. A missão não está mais para a romântica aventura, o generoso improviso, o impávido heroísmo: muito menos para o irresponsável despacho de sujeitos incômodos e problemáticos. Pelo contrário, o paradigma da missão leva hoje a vida religiosa consagrada (VRC) como um todo e a partir de dentro, a um profundo, radical e essencial repensamento de suas estruturas, de sua compreensão, de suas relações, de seus projetos e de seus horizontes, assim como é proposto pelo Documento de Aparecida ao conjunto de dioceses, paróquias, comunidades, movimentos e instituições das Igrejas latino-americanas e caribenhas.”

 

Tarefas que apontam para um novo modelo
de vida religiosa consagrada missionária hoje

de Estêvão Raschietti

Há hoje uma insistente demanda por novos modelos de Vida Religiosa Consagrada (VRC) que abram caminhos de esperança, em tempos de profundas mudanças, crises e travessias epocais. A vida missionária “ad gentes e nas situações mais difíceis” é sem dúvida um desses caminhos impérvios, apontados pelo papa Bento XVI para uma significativa relevância da VRC na conjuntura atual (cf. VD 94c). Por sua vez, a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada, na Instrução Recomeçar a Partir de Cristo (2002), afirma que a VRC “quer refletir sobre os próprios carismas e as próprias tradições, para pô-los a serviço das novas fronteiras da evangelização” (36), lembrando peremptoriamente que “a primeira tarefa que se deve retomar com entusiasmo é o anúncio de Cristo aos povos” (37). (…)

O contexto hodierno da missão não é mais aquele do nosso Fundador ou da nossa Fundadora, nem aquele dos arquétipos de nossa imaginação, nem o destemido de épocas relativamente recentes. A missão não está mais para a romântica aventura, o generoso improviso, o impávido heroísmo: muito menos para o irresponsável despacho de sujeitos incômodos e problemáticos. Pelo contrário, o paradigma da missão leva hoje a VRC como um todo e a partir de dentro, a um profundo, radical e essencial repensamento de suas estruturas, de sua compreensão, de suas relações, de seus projetos e de seus horizontes, assim como é proposto pelo Documento de Aparecida ao conjunto de dioceses, paróquias, comunidades, movimentos e instituições das Igrejas latino-americanas e caribenhas.

Para “esta firme decisão missionária que deve impregnar todas as estruturas eclesiais e todos os planos pastorais” (DAp 365) não há receitas, nem modelos testados e aprovados. Há sim algumas tarefas a serem cumpridas com participação e diligência, na assídua busca da permanente fidelidade ao Senhor e de um papel profético inédito para a VRC no tempo presente.

Duas considerações

Antes de tudo é preciso fazer duas considerações preliminares.
A primeira, é uma nota de reflexão sobre a época de crise e de incerteza que estamos vivendo, marcada pela diminuição das vocações, pelo envelhecimento, pela “anemia evangélica”, pela falta de projetos, pela irrelevância social, pela fragmentação da identidade carismática. Paradoxalmente, essa época pode ser a melhor para repropor o projeto originário da VRC, exatamente a partir da fragilidade histórica na qual ela se encontra. Ao contrário, quando os números se tornam sinônimo de sucesso, o reconhecimento social é considerado uma meta, a missão é medida pela eficiência e pela visibilidade, o risco é da VRC cair na lógica do mundo, sofrer um terrível processo de “paganização” e perder o sentido da transcendência de sua vocação.

Os tempos de hoje, portanto, são de purificação e de retomada do essencial. É fundamental não sucumbir à mediocridade e ao descompromisso, como também à tentação de voltar ao passado: pois esse passado não existe mais.

A segunda consideração, diz respeito ao desafio de olhar para frente. A reconstituição da experiência fundante e da visibilidade evangélica da VRC, dá-se ao redor de três aspectos essenciais: experiência de Deus, vida fraterna e missão. Entre esses aspectos há uma complementaridade e uma unidade circular, e sua desarticulação “é uma das expressões mais evidentes dessa situação fragmentada da VR apostólica”.

Michael Amaladoss alertava há tempo sobre o tremendo equivoco de interpretar de maneira linear essa unidade, o que causaria a própria fragmentação do conjunto. Em outras palavras, não haveria antes uma experiência de Deus (identidade), partilhada e alimentada em um contexto fraterno (comunidade), para depois – eventualmente (!) – ser estendida ao mundo (missão). Pelo contrário, a missão alimenta a experiência de Deus e estrutura a comunidade, assim como a comunidade qualifica a missão e a experiência de Deus, sem antes e sem depois.

Os três aspectos que constituem o projeto original da VRC apostólica, se implicam e se complementam mutuamente. Sua distinção consequencial é a causa da ruptura entre “ser” e “fazer”. Sem dúvida, na missão podemos oferecer somente o que somos; por outro lado o que somos é fruto de experiências que acontecem na história, no encontro com os outros e na missão. Deveríamos nos perguntar qual “credibilidade teria o caminho de fé daquele consagrado que sabe reconhecer Deus somente nos espaços oficiais e rituais, ou nos seus percursos espirituais subjetivos, mais ou menos sugestivos e complacentes” (Arrighini). Se “o encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão constitutiva da nossa fé” (DAp 257), significa que a missão determina nossa identidade, e que não podemos alegar nenhuma experiência de Deus se isso não acontece também no caminho com as pessoas mais humildes e sofredoras.

1. Redescobrir a dimensão teologal da missão

Eis então que a primeira grande tarefa é redescobrir a dimensão teologal da missão.
O Concílio Vaticano II afirma, sem rodeios, que “a Igreja peregrina é missionária por natureza” (Ad Gentes 2). A palavra “natureza” quer dizer “essência”. Missão antes de ser “tarefa” é “essência”: o aspecto mais central, a característica mais importante, que confere à Igreja uma identidade, um caráter distintivo.

Essa essência, continua o Decreto Ad Gentes, “tem origem na missão do Filho e na missão do Espírito, segundo o desígnio do Pai”, que por sua vez “brota do amor fontal, ou seja da caridade, do próprio Pai” (AG 2). Em outras palavras, a missão vem de Deus porque Deus é Amor, um amor que não se contém, que transborda, que se comunica, que sai de si. Missão é essência de Deus, diz respeito ao que Deus “é” e não, primeiramente, ao que Deus “faz”. Por tabela, para a Igreja a missão torna-se impulso gratuito, de dentro para fora, que tem como origem e fim a participação à vida divina (cf. DAp 348).

Portanto, como diria Moltmann, não é a Igreja que ‘tem’ uma missão, mas ao contrário, a missão que tem uma Igreja: Deus realiza sua missão através da ação de seu Espírito, chamando a Igreja a participar. Eis a mudança de paradigma: a Igreja deixa de ser “missionante” (aquela que envia) para tornar-se “missionária” (enviada), não mais como “dona”, mas como humilde “serva” da missão. Desta maneira, participando da missão de Deus, ao ser enviada aos povos, ela participa da vida de Deus, que é vida plena, vida eterna.

Esses fundamentos têm desdobramentos imediatos para a VRC, pois “a contribuição específica de consagrados e consagradas para a evangelização consiste, primeiramente, no testemunho de uma vida totalmente doada a Deus e aos irmãos” (VC 76). Num mundo marcado pelo secularismo, pelo individualismo e pelo relativismo, a missão da VRC tem como finalidade manifestar a missão de Deus. Se antigamente a atividade missionária era voltada mais a “salvar almas”, hoje poderíamos dizer que está voltada a “salvar Deus” (ou seja, sua presença e sua missão precisam ser salvaguardadas e manifestadas diante de um mundo em que foi anunciada a “morte de Deus”) e anunciar assim a possibilidade de um mundo mais humano:

“A experiência de Deus numa vida consagrada verdadeira, positiva, alegre, a escuta da Palavra e a vida comum, tornam os religiosos atentos às pessoas, a seus desejos, solidários com sua busca do verdadeiro, do bom e do bonito, capazes de perceber a presença de Deus na vida dos outros e nas culturas e despertar neles a responsabilidade pela transformação das estruturas do pecado que estão no mundo e pelo cuidado com a criação. A experiência de Deus é fonte e reserva de esperança num mundo que abandona as pessoas na solidão e no desespero”. (Ferrari, Gabriele. La missione: orizzonti e sfide. Testimoni, Bologna, 17/2011, p. 22-29, 15 out. 2011)

Compreender a missão não como atividade ou necessidade histórica, mas como essência gratuita de Deus Amor, é o primeiro passo para uma profunda renovação da VRC. Trata-se de deslocar a missão da afirmação da pessoa ou da instituição, à transparência do testemunho sem pretensões, numa discreta prática jesuana de proximidade aos outros e aos pobres, para comunicar vida em termos de humanidade, compaixão, fraternidade sem fronteiras. Amar humildemente o humano em todas suas manifestações e limitações: isto é divino, gratuito e recompensa a si próprio.

2. Articular o discipulado com a missão

A segunda tarefa diz respeito ao legado da Conferência de Aparecida sobre o discipulado articulado com a missão. No Documento Final, os dois temas apresentam-se geralmente de maneira bem conjugada na expressão “discípulos missionários” – sem o “e” no meio – a indicar “as duas faces da mesma moeda” (DAp 146), numa mútua e significativa implicação.

Com efeito, discipulado e missão não são dois momentos distintos. Ao subir o monte, Jesus constitui o grupo dos doze para “ficar com Ele” e “ser enviados a pregar” (cf. Mc 3,13-14). Mas esse “ficar com Ele” não significa “estar com Ele”, e sim “viver em comunhão com Ele” (cf. DAp 154) assumindo sua causa, partilhando em tudo o seu destino. Pedro respondeu certo à pergunta sobre a identidade de Jesus: “Tu és o Messias” (Mt 16,16). Logo depois, porém, o Mestre o chama de Satanás, porque o discípulo “estava” com Jesus, mas não tinha ainda aderido à missão dele.

“Todo discípulo é missionário, pois Jesus o faz partícipe de sua missão, ao mesmo tempo que o vincula a Ele como amigo e irmão” (DAp 144). A passagem do discipulado à missão é algo de imediato e vice-versa. A missão torna-se assim a verdadeira escola para a comunidade dos discípulos, no momento em que a proposta de seguimento de Jesus acontece no caminhar da missão. De fato, o Mestre chama seus discípulos a segui-lo para fazê-los “pescadores de homens” (Mt 4,19). Logo em seguida, porém, encontramos Jesus que “andava por toda Galiléia, pregando a Boa Nova do Reino e curando todo tipo de doença” (Mt 4,23), quase fosse, para os discípulos, uma espécie de noviciado itinerante. Os momentos propriamente “formativos” são pautados pela missão, ocorrem em diversas circunstâncias, provocados por encontros (cf. Mt 19,23), desencontros (cf. Jo 6,66), situações de conflito (cf. Mc 9,33), parábolas (cf. Mc 4,34), gestos e sinais (cf. Jo 13,12), tempos de oração (cf. Lc 11,1) e envios missionários (cf. Mt 10,1).

Na experiência de Jesus, portanto, o discipulado acontece na missão, como também a missão acontece no discipulado. Jesus não envia os doze como “mestres”, para estar acima do Mestre (cf. Mt 10,24), mas essencialmente como discípulos, aprendizes, “irmãos”: “nunca se deixem chamar de mestres” (Mt 23,8). A missão é antes de tudo uma grande aprendizagem, que constitui por sua vez um testemunho fundamental: ser discípulo missionário é a alegria de ser um eterno aprendiz!

Ao mesmo tempo, todo discípulo é chamado para ser missionário. O discipulado jamais é fim a si mesmo: se constitui sempre em ordem à missão. Por outro lado, a finalidade da missão é “fazer discípulos todos os povos” (Mt 28,19), ou seja “fazer irmãos”, praticantes da Palavra (cf. Mt 7,21), segundo a cartilha do Discurso da Montanha (cf. Mt 5-7).

As sugestivas implicações entre o discipulado e a missão são inspiradoras para uma profunda renovação da VRC apostólica. Dizem respeito ao caminho formativo e à finalidade da vocação. O que tem a dizer, por exemplo, a proposta jesuana de seguimento “na” missão às nossas estruturas formativas de “confinamento”? De que maneira repensar nossa missão como discípulos e não como mestres? O seguimento de Jesus está nos lançando para a missão, ou nossa acomodação é sintoma de não-seguimento? E mais: nossa missão é centrada em “fazer obras” ou em “fazer discípulos missionários”?

Um sábio discernimento sobre esses pontos, deveria nos reconduzir ao ponto de nossa vocação.

3. Dar vida a novos modelos de fraternidade

Assim como o paradigma da missão se articula com o seguimento, também se propõe como algo de constitutivo para a vida fraterna em comunidade. Na VRC, “missão” não é um acréscimo facultativo ou um caminho possível em busca de um “estado de perfeição”: é sua própria identidade, “essencial para cada instituto, não só os de vida apostólica ativa, mas também de vida contemplativa” (VC 72). A maioria dos fundadores e fundadoras, depois de São Domingo e São Francisco, não reuniram grupos de pessoas simplesmente com o objetivo de alcançar uma pessoal ou comum santidade. Mesmo que isso figurasse como finalidade “número um” na redação das primeiras Constituições, o verdadeiro motivo estava no “número dois”: oferecer uma resposta às urgências apostólicas do tempo e contexto em que viviam.

Para encarar apaixonadamente os diversos desafios pelos quais se sentiam atraídos, se deram ao trabalho de estruturar comunidades e propor formas particulares de VRC em sintonia com a causa e em vista do contexto em que as pessoas eram chamadas a atuar. Vários deles e delas tiveram que adotar modelos da tradição monástica, adaptando-os às circunstâncias, muitas vezes libertando-os da clausura, do hábito, de excessivas práticas de piedade, etc. Em várias ocasiões, porém, foram obrigados a aceitar estruturas que nem sempre se encaixavam com seus carismas.

Contudo, parece claro que os diferentes contextos de missão geraram várias formas de VRC: “da participação nos diversos aspectos da missão de Cristo, o Espírito faz surgir diversas famílias religiosas caracterizadas por diferentes missões e, portanto, por diversos tipos de comunidade” (A vida fraterna em comunidade, 59a). Por isso é útil compreender a missão como a base da vida consagrada, onde o essencial não é uma vida compartilhada, mas uma missão assumida em comum. Podemos afirmar que esse ponto é o divisor das águas entre uma simples “convivência” e uma verdadeira “comunidade” de irmãos e de irmãs.

Eis então que a comunidade também acontece na missão. Ela não é anterior à missão como algo de preestabelecido: é constituída a partir da missão, em sua experiência espiritual e em seus aspectos concretos e institucionais. Infelizmente, não é isso que acontece. A ruptura entre vida comunitária e missão é uma das principais razões da profunda crise em que se encontra a VRC.

Com certeza, também a missão qualifica-se decididamente quando acontece em comunidade. O mundo exige hoje um testemunho de comunhão, de fraternidade e de diálogo (cf. VC 51), não apenas como autêntico serviço evangélico, mas também como sinal. Portanto, entender a missão como projeto comum não é só estratégia para uma eficácia pastoral, mas é principalmente fidelidade na imitação do Mestre, que quis a missão em comunidade, enviando seus discípulos dois a dois (cf. Mt 10,1-4). Nela se expressa o engajamento fundamental contra toda forma de domínio sobre o outro, e a prática assídua da fraternidade, como manifestação de uma nova lógica de convivência universal. A comunhão e a partilha anunciam o transbordar do amor de Deus-Trindade em nossas vidas, como nova maneira de repensar as relações com as pessoas, além de todas as fronteiras, para transformar o mundo numa só família.

A missão propriamente dita não se situa no âmbito da atividade, mas naquele das relações, assim como o termo “irmão” é chave para compreender a toda essência do Evangelho e da missio Dei: Deus é Pai, nós somos seus filhos e filhas, irmãos e irmãs “de sangue” entre nós. E ponto. O resto é consequência.

(A expressão “de sangue” nos remete a uma anedota de Dom Hélder Câmara, contada por ele mesmo numa entrevista que encontramos no filme de Érica Bauer, “Dom Helder – O Santo Rebelde”. Certa vez, o arcebispo de Recife teve que interceder junto a um empresário pedindo emprego para um “seu irmão”, um pobre pai de família. O empresário, depois de atender com muita solicitude ao pedido o bispo, percebeu logo de ter sido “enganado”. “O senhor me enrolou”, disse o empresário para Dom Hélder, “o homem não é seu irmão coisa nenhuma”. “Mas como …”, respondeu o prelado: “filhos do mesmo Pai, não são irmãos?”. O empresário retrucou: “Sim, eu sei o que o senhor quer dizer com isso: mas eu tinha entendido que eram irmãos de sangue”. “Pois é”, insistiu Dom Hélder, “o sangue que Cristo derramou para mim, derramou para ele também: então, somos irmãos de sangue”.)

Portanto, se “a comunidade cristã deve a própria origem ao anúncio apostólico do evangelho e a própria vitalidade ao perpetuar-se deste anúncio” (Moltmann J. La chiesa nella forza dello Spirito: contributo per una ecclesiologia messianica. Brescia: Queriniana, 1976, p. 275), é verdade também que a comunhão de vida estabelecida mediante relações fraternas constitui a origem, o caminho e a meta da missão assim como “o mistério da Trindade é fonte, modelo e meta do mistério da Igreja” (DAp 155).

Desse modo, a tarefa que temos a cumprir é dar vida a novos modelos de fraternidade a partir da missão, articular não “Projetos Comunitários de Vida” e sim “Projetos Comunitários de Missão”: adequar nossas estruturas, relações, estilos de vida, espiritualidades, meios e planejamentos, às frentes missionárias assumidas segundo o nosso carisma.

4. Sair de nossas obras e lugares comuns

Acontece, porém, que muitas de nossas presenças apostólicas já fizeram seu tempo e já cumpriram sua missão. Durante vários séculos a VRC expressou sua entrega à missão, particularmente aos mais necessitados, através de instituições, como hospitais, escolas, obras sociais de todo tipo, e de competências ligadas à promoção dessas iniciativas. Isso dava não somente visibilidade e apreço por parte da sociedade, mas também um papel bem definido, assumido pela VRC com esmerada dedicação.

Hoje a situação mudou por completo. Muitas “missões” dos religiosos e das religiosas tornaram-se – graças a Deus – serviços públicos garantidos pelo estado, quando também pelo mercado. Muitas profissões tornaram-se projetos de vida de pais e mães de família, que se dedicam com igual ou maior competência do que os religiosos. Também em frentes mais temerárias, leigos e leigas encontram oportunidades fora dos institutos religiosos e missionários, em movimentos, organismos de solidariedade e organizações internacionais, que não cobram exigências de formação e consagração.

No que diz respeito à ação pastoral, a labuta incansável dos religiosos e das religiosas está sendo aos poucos reposta pelo clero diocesano e pela própria organização da Igreja local, não sem conflitos. É claro que nada vai substituir a presença carismática da VRC na Igreja e no mundo, visto que não pode ser reduzida a mera execução de tarefas e nem confundida com uma profissão qualquer.

Entretanto, sua visibilidade e sua “utilidade” social e eclesial ficam seriamente comprometidas. A esse quadro acrescentamos o drástico calo numérico das vocações e o envelhecimento dos efetivos, e teremos como resultado poucos religiosos e religiosas tentando segurar paredes de estruturas caducas e pontas de caminhos que deixaram de ser significativos. A falta de ousadia, o bom nome da congregação, o medo do desprendimento, o retorno econômico de certas obras, terminam de fazer o que falta para uma definitiva e paralisante acomodação.

A imagem do majestoso transatlântico encalhado e inclinado pelo lado direito, prestes a ser engolido pelo mar, parecer ser a metáfora de muitas obras, missões e estruturas da VRC, um tempo gloriosas. Agora, passageiros e tripulantes precisam sair às pressas, subir nos botes salva-vidas e encarar as trevas da noite e as turbulências do alto mar. A natureza, porém, não parece tão hostil. Ao contrário, a tempestade está a bordo, entre quem quer ficar e salvar o paquete, quem está distraído sem saber o que está acontecendo, quem quer saltar fora e nadar sozinho, quem se tumultua desesperadamente à procura de um lugar nos botes. Onde está o comandante? Quem é o comandante? O mercado? As circunstâncias? Os desejos? Ou o Evangelho? (Veja essa história em: Nolan, Albert. Jesus hoje. Uma espiritualidade de liberdade radical. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 79)

A missão aponta sempre para uma conversão em termo de saída. A esse respeito, o Documento de Aparecida não podia ser mais explícito, quando fala “de abandonar as ultrapassadas estruturas que já não favoreçam a transmissão da fé” (DAp 365), e de “sair de nossa consciência isolada e de nos lançarmos, com ousadia e confiança (parresía), à missão de toda a Igreja” (DAp 363). O caminhar da missão em direção ao Reino é um caminhar no Espírito que exige um trabalho constante de discernimento, para não confundir a fidelidade ao Senhor com a fixação em modelos historicamente limitados.

Esses modelos são frutos dos nossos projetos históricos que têm começo, meio e fim. A missão precisa ter um fim para recomeçar logo em outro lugar. A experiência missionária é sempre marcada pela itinerança, pelo despojamento, pela leveza e pela provisoriedade, por um contínuo entrar e sair, por um êxodo pascoal de morte e ressurreição. A missão jamais deita raízes em algum lugar. Também Jesus não quis ficar mais o que o devido: “é melhor para vocês que eu vá embora”, falou a seus discípulos (Jo 16,7). A missão exige a aprendizagem de uma ars moriendi, uma “arte de morrer”, uma quênose radical que nasce da compaixão, do desejo de aproximação, do dom de si e da absoluta gratuidade.

5. Recolocar nossas presenças na lógica da loucura de Deus

Para um novo modelo VRC missionária, a saída de lugares comuns é algo que determina decididamente uma nova identidade da comunidade e reanima o projeto. Essa saída aponta para o alto mar: “duc in altum”, “avance para águas mais profundas” (Lc 5,4). O mar não é o redil do pastor, nem o campo do semeador.( cf. Girard, Marc. A missão da Igreja na aurora do novo milênio. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 45-75) É um lugar assombroso e angustiante, cujo horizonte nos diz que estamos perdidos. Estamos como náufragos sem bússola, que fixamos um céu sem astros: é o des-astre da travessia. (cf. Tosolini, Tiziano. Dire Dio nel tramonto. Per una teologia della missione nel posmoderno. Bologna: EMI, 1999, p. 19)

Mesmo assim, Jesus convida Pedro a “lançar as redes” (Lc 5,4), a “não ter medo” e a tornar-se “pescador de homens” (Lc 5,10). Aqui o evangelista Lucas utiliza um vocábulo grego que significa “capturar gente para a vida”. A vida que Jesus anuncia é sempre algo que se transforma num dom gratuito. “Pescadores de gente para a vida” significa então fazer com que todos participem da vida plena, da vida divina, da vida verdadeira, uma vida que nunca é retida para si, mas que continuamente se torna dom: “a vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros. Isso é, definitivamente, a missão” (DAp 360).

Acreditar na palavra de um carpinteiro que pretende ensinar a pescar é loucura. Mais ainda quando sua mensagem desafia a Lei e seu agir é contra todo tipo de bom senso: para seus familiares Jesus não bate bem da cabeça (cf. Mc 3,21), para as autoridades é um possuído pelo demônio (cf. Jo 10,20), para a sua geração é “um comilão e beberrão, amigo dos cobradores de impostos e dos pecadores” (Mt 11,19). Muitos dos seus discípulos o abandonam (cf. Jo 6,66). Até João Batista tem lá suas dúvidas (cf. Mt 11,3). O modo de ser de Jesus surpreende e desconcerta demais: ele é tão entregue às pessoas que não consegue nem comer (cf. Mc 3,20), transcurando seus interesses, os interesses de seu povo e de sua família que quer se reapropriar dele (cf. Mc 3,21). Esta é a loucura de Deus que confunde os sábios (cf. 1Cor 1,27).

Seguir Jesus exige uma conversão do pensamento humano ao pensamento de Deus (cf. Mt 16,23): é uma metanóia (mudança de mente) de 180 graus, uma reorientação radical da própria vida. Nossos “olhos fixos em Jesus” contemplam o “archegos” (Hb 12,2 – “aquele que anda na frente”, traduzido com “autor”), nossa mente está cravada no “apóstolo” (Hb 3,1), que “vai à frente para a Galiléia” (Mt 28,7). Lá está ele, “pregando a Boa Nova do Reino e curando todo tipo de doença” (Mt 4,23) junto a paralíticos (cf. Jo 5,1-18), cegos (cf. Jo 9,1-34), leprosos (cf. Lc 17,11-19), endemoniados (cf. Mc 5,1-20); mulheres prostitutas, impuras, adúlteras, pagãs (cf. Lc 7,36-50; 8,43-48; Jo 8,1-11; Mc 7,24-30), cobradores de impostos (cf. Lc 19,1-10), fariseus (cf. Jo 3,1-15) e romanos opressores (cf. Mt 8,5-13). Quem são hoje essas pessoas? Onde estão estas pessoas? Onde estão as Galiléias?

Uma das questões chaves para a VRC missionária é a recolocação de suas presenças. Nem sempre é preciso reestruturar-se para ser mais eficientes. Muitas vezes, a grande mudança é uma simples questão de reposicionamento. Uma efetiva opção pelos pobres (cf. DAp 397), por exemplo, pode significar para a VRC um deslocamento fundamental em termos de perceber e questionar a realidade do ponto de vista das vítimas, dos crucificados e dos injustiçados, aderindo de fato a um projeto de mundo global mais justo e solidário, significativamente “outro” daquilo que temos diante dos olhos.

“Recomeçar a partir de Cristo” apela para uma “fantasia da caridade” que saiba recolocar a VRC “a serviço das novas fronteiras da evangelização” junto a “pobres, idosos, dependentes químicos, enfermos de Aids, exilados, pessoas que padecem todo tipo de sofrimentos” (36). A fronteira é um lugar liminar, uma periferia distante do centro, uma Galiléia marginal e sincrética, uma linha de ruptura muitas vezes desconfortável e complexa, onde não é fácil evangelizar, onde não encontramos tamanha adesão, onde somos perseguidos. Quem evangeliza é sempre perseguido, porque a Boa Nova do Reino é também notícia ruim para ricos e poderosos. Jesus, ao enviar seus discípulos, dá um monte de instruções sobre as inevitáveis perseguições (cf. Mt 10), ao ponto que podemo-nos perguntar se estamos de verdade no lugar certo, onde somos só bem quistos, bem recebidos e recolhemos muitos frutos. 22

6. Estender a missão ad gentes ad extra

Não poderíamos falar de um novo modelo de VRC missionária se não estendermos mais além o nosso olhar e o alcance de nossos caminhos. Se nas fronteiras encontramos os pobres, além-fronteiras nos espera o outro, o desconhecido. A travessia do mar leva os discípulos para “a outra margem”, às terras pagãs. Durante essa travessia normalmente acontece alguma tempestade (cf. Mc 4,35-41), a sinalizar o alvoroço e a crise que essa perspectiva causou nas primeiras comunidades cristãs. O encontro com os pagãos foi algo traumático, doloroso, mas também determinante para o surgimento da Igreja.

A saída de si tem como horizonte os confins da terra. É sempre um andar “extrovertido” além de todas as fronteiras. Essa universalidade não significa “tarefa específica”: diz respeito à própria essência e à dinâmica da missão. Se nossa missão fosse geográfica, cultural, étnica, socialmente ou eclesialmente limitada e se dirigisse somente a “nós”, ela se tornaria excludente. João Paulo II em sua encíclica missionária afirma: “sem a missão ad gentes, a própria dimensão missionária da Igreja ficaria privada do seu significado fundamental e do seu exemplo de atuação” (RMi 34).

Com certeza as fronteiras adquiriram um significado não apenas geográfico, mas também social e cultural (Cf. RMi 37). Entretanto, vivemos num mundo globalizado que nos impele para uma visão mundial dos desafios. Hoje, o cristão é chamado, por vocação, mais do que qualquer outra pessoa, a ser universal, ou seja, uma pessoa que tem responsabilidade não só sobre si e sua comunidade, mas sobre o mundo inteiro através de suas opções, suas atitudes, sua consciência e seus compromissos. Numa época como a nossa, não é mais possível pensarmos em termos regionais, nacionais ou congregacionais: são pequenos demais.

A paixão pelo mundo, própria da vocação cristã, se expressa no sentir e no vibrar profundamente pela humanidade inteira, e em ser capaz de realizar gestos ousados e concretos de solidariedade, de partilha e de aproximação com os outros povos. Só assim nos tornaremos um sinal profético de uma nova humanidade mundial, fraterna e multicultural.

A partida radical da “terra”, da comunidade, dos afetos, das referências culturais, dos bens, leva o discípulo a um autêntico despojamento de si, para tornar-se hospede na casa dos outros. É de se perguntar, se não esse tipo de experiência a revelar a mais profunda identidade da VRC. Não é por acaso que o Concílio Vaticano II convida todas as congregações de VRC a “alargar mais sua atividade em ordem à expansão do Reino de Deus entre os gentios, deixando a outros certos ministérios para dedicar às missões suas forças (…) adaptando, se for preciso, as suas Constituições” (AG 40). E ainda, Bento XVI recorda que “a vida consagrada resplandece em toda a história da Igreja, pela sua capacidade de assumir explicitamente o dever do anúncio e da pregação da Palavra de Deus na missio ad gentes e nas situações mais difíceis” (VD 94c).

Com efeito, quanto mais a missão é radical, mais precisa de uma consagração ad vitam. Não se parte em missão para fazer “uma experiência”. Somos enviados e enviadas para fazermos um dom humilde e gratuito de toda nossa vida. Não dá para pensar num mergulho profundo numa outra cultura, que requer aprendizagem de idiomas, costumes, mentalidades, relações, cosmovisões, sem pensarmos a tempos longos de dedicação e entrega. Assumindo concretamente a vida de um povo e sua causa, assumimos de fato o seguimento de Jesus e de seu Evangelho.

7. Promover uma ação missionária partilhada

Enfim, a missão mais exigente nos convida também a uma estreita colaboração entre congregações de VRC. Hoje, a complexidade das situações e a complementaridade dos saberes tornou extremamente difícil uma ação missionária significativa por parte de um ou outro instituto. Para todos chegou o tempo da inter-disciplinariedade, particularmente para a VRC missionária. Os fóruns de reflexão conjunta e os espaços de colaboração entre os institutos religiosos, produziram frutos abundantes. Não estaria na hora de dar um passo adiante, pra valer, e enfrentar uma nova etapa no mutirão inter-congregacional projetando iniciativas de evangelização em resposta aos muitos desafios do mundo de hoje?

Nesse sentido, a missão ad gentes ad extra começam por Jerusalém, como diria o Evangelista Lucas (cf. Lc 24,47), numa conversão a partir de dentro da VRC que rompe círculos fechados, saturados, muitas vezes monopolizados por estruturas de poder, e se abre, pela ação do Espírito, à partilha, ao diálogo, ao outro.

O caminho não é fácil, com certeza, mas é possível e urgente, se pensamos que o próprio movimento ecumênico no século XX começou com uma tomada de consciência inspirada pela experiência missionária: a divisão das igrejas era um empecilho determinante ao anúncio do Evangelho entre os povos não-cristãos.

A esse respeito, as congregações hão de estender um piedoso véu sobre alguns aspectos da história passada, onde as missões serviram frequentemente para alimentar certo narcisismo e triunfalismo institucional. Divisões de territórios e criações de colônias espirituais tornaram-se, em muitos casos, “feudos” para administrar bens e obras das congregações, com forte espírito corporativista e de competição, prejudicando, sobretudo o crescimento das igrejas locais. As terras das missões tornaram-se assim terras das congregações. O Pe. Paolo Manna, PIME, ainda em 1929, dizia que às ordens e os institutos religiosos, nos territórios de missão, “em lugar de estabelecer a Igreja, acabaram estabelecendo a si mesmos”. (Butturini, Giuseppe. Le missioni cattoliche in Cina tra le due guerre mondiali. Osservazioni sul metodo moderno di evangelizzazione di P. Paolo Manna. Bologna: EMI, 1998, p. 129)

É notável o que o Imperador Kang-Gi, da China, na audiência do dia 3 de janeiro de 1721, disse ao delegado Pontifício Mezzabarba, sobre as discórdias dos missionários em torno da questão dos ritos chineses: “trabalhei para reunir os missionários de diversas nações: os jesuítas franceses com os portugueses, os italianos com os alemães, e todas as diferentes ordens religiosas, para que permanecessem juntas num só coração, mas trabalhei sem frutos. Esta divisão é para mim um enigma que não posso decifrar”. (Journal de Viani, 30 Dez. 1720 em La mission de Pékin, p. 288. In: Butturini, p. 110)

Os missionários cristãos com suas divisões, constata amargamente o Pe. Manna, “constituíram eles mesmos um grande obstáculo à difusão do cristianismo que procuraram anunciar e difundir. Um autor escreveu que os missionários disseram aos chineses que eram pagãos, que estavam fora do plano de Deus, porque tinham muitos deuses e depois lhes apresentavam cento e sessenta credos cristãos, um diferente do outro”. (Butturini, p. 136)

A VRC á chamada hoje a assumir penitencialmente essa história, que influenciou negativamente tanto às missões ad extra como as presenças ad intra do mundo cristão. Cada família religiosa precisa promover pontualmente um profundo discernimento, mudar a mentalidade e repartir de outros pressupostos. Isso implica repensar novas formas de governo, processos de formação inicial mais integrados, projetos partilhados de missão e interações de presença e serviços que ajudem gradativamente a superar toda forma de particularismo, mantendo ao mesmo tempo a originalidade de cada proposta.

Se esse nosso tempo está caracterizado por graves desafios e rápidas mudanças, está também carregado por novas promessas de futuro.

Conclusão: tentar tornar tudo isso realmente efetivo

Quando chegamos a colocar em prática possíveis orientações, sabemos quanto isso exige esforço, caminhos pedagógicos, tempos demorados, inevitáveis frustrações: com efeito, na prática a teoria é outra! No entanto, o verdadeiro discípulo de Jesus se distingue exatamente pela prática: “nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino do Céu; só entrará aquele que põe em prática a vontade do meu Pai, que está no céu” (Mt 7,21).

A esse respeito, Jesus conta uma parábola para atacar de frente uma vida religiosa feita de hipocrisia e de mentira, tanto de ontem como de hoje. Um homem tinha dois filhos e convidou os dois a trabalhar na vinha dele. O primeiro disse “não”, mas depois foi; o segundo disse “sim”, mas depois não foi. E conclui: “Pois eu garanto a vocês: os cobradores de impostos e as prostitutas vão entrar antes de vocês no Reino do Céu” (Mt 21,31).

Quem é o filho que disse “não”, mas depois foi trabalhar na vinha? Os cobradores de impostos, considerados ladrões e exploradores, e as prostitutas, gente com a existência prejudicada pela escolha de um caminho errado: disseram “não” um dia, mas depois no dia a dia passaram a usar misericórdia para com seu próximo (cf. Mt 25,31-46). O Pai, “que vê o escondido” (Mt 6,4), sabe de seu arrependimento e de sua conversão, apesar de sua reputação.

Quem é o filho que disse “sim”, mas não foi trabalhar? Os religiosos, que proclamam publicamente seu “sim” a Deus diante do povo, porém depois não praticam a Palavra. Desta maneira, Jesus desmascara fariseus e mestres da Lei, tidos como “justos”, mas na realidade “não são de Deus” (Jo 8,47): são como sepulcros caiados, por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de podridão (Mt 23,27).

Essa parece uma passagem perfeita para a celebração de uma profissão religiosa. Lembra aos consagrados e às consagradas de hoje que podem tornar-se perfeitamente como os fariseus de antigamente. Contudo, explorando um pouco mais a mensagem da Palavra, podemos descobrir quatro preciosas indicações que nos podem ajudar a colocar em práticas nossas boas intenções.

A primeira é a necessidade de nos reconhecer naqueles pobres pecadores que respondem “não” ao pedido do Pai, mas que depois vão trabalhar. Essa laboriosa humildade nos coloca numa posição de compaixão para com toda humanidade e de simetria com qualquer ser humano. Nós religiosos e religiosas não somos melhores. O fato de optar pelo seguimento de Jesus, nos deveria tornar mais humanos ainda: nós falhamos continuamente neste propósito e devemos admiti-lo. Mesmo assim jamais desistimos de conformar-nos a Cristo.

A segunda indicação é a necessidade de arrependimento e de conversão. Precisamos não só admitir que erramos, mas também ser capazes dar a meia volta: refazer nossos conceitos, aquecer nossos corações (cf. Lc 24,32) e repartir com uma disciplina de mudança. “Para nos converter numa Igreja cheia de ímpeto e audácia evangelizadora, temos que ser de novo evangelizados”, afirma o documento de Aparecida (DAp 549). A conversão é sempre algo que começa dentro de nós e se transforma em testemunho e anúncio para os outros.

A terceira sugestão é a valorização do cotidiano. Os cobradores de impostos e as prostitutas, provavelmente, não conseguiram melhorar muito sua imagem, nem mudar seu estigma. A semente que morre para dar fruto não é percebida por ninguém: tudo acontece num processo quase imperceptível, escondido, cadenciado no dia a dia. De repente, olhando para o caminho, reparamos que passos foram dados, escolhas foram amadurecendo, conquistas significativas foram alcançadas: não à luz dos holofotes, mas na humilde discrição.

Enfim, o quarto elemento é que a partir de nossas práticas seremos julgados: já estamos sendo julgados. Cumprir com tarefas que apontam para um novo modelo de VRC missionária não é opcional, mas também não garante nossa sobrevivência. O que está em jogo é a aposta do Evangelho continuar sendo significativo no mundo plural de hoje: essa missão é a razão última que nos resta, para a qual entregamos nossas vidas e a vida de nossas congregações.

P. Estêvão Raschietti
Missionário xaveriano, italiano, há mais de 20 anos no Brasil, mestre em Teologia Dogmática com concentração em Missiologia.