Os bispos da República Centro-Africana: “Proteger a vida é o primeiro dever do Estado”

Immagine

Terça-feira, 27 de Novembro de 2018
Depois dos últimos massacres perpetrados na República Centro-Africana, e em particular o cometido no passado dia 15 de Novembro, em Alindao, no qual cerca de cinquenta civis perderam a vida, os bispos pedem aos fiéis e aos homens de boa vontade para “não observarem o feriado nacional do próximo dia 1 de Dezembro, como sinal de luto”. Entretanto propõem, como alternativa, que em todas as dioceses se observe um Dia de Luto e Oração nacional em memória das vítimas, no próximo domingo, dia 2 de Dezembro. As ofertas de todas as missas dominicais serão destinadas aos sobreviventes dos massacres.

Curar as feridas profundas da violência

Depois do massacre de 15 de Novembro de 2018, em Alindao.

Em Bangui, capital da República Centro-Africana, é ainda inimaginável um novo equilíbrio social ou um restabelecimento da convivência entre as comunidades cristã e muçulmana. Prevalecem as emergências e a pressão das milícias. Mas há quem, como o Centro Dom Bosco, trabalhe para o amanhã.

Entre 2013 e 2015, em Bangui assistia-se diariamente a execuções sumárias, torturas e violações. Hoje, pelas ruas da capital da República Centro-Africana, os receios de novas chacinas tornam-se cada vez mais presentes por causa da presença maciça de milícias Seleka e anti-Balaka. A comunidade cristã e a comunidade muçulmana, desiludidas das promessas de paz do presidente Touadéra, suportam mal a presença da missão das Nações Unidas, cujas tropas têm o gatilho sempre a postos durante as manifestações populares de descontentamento.
«Uma manhã neste poço encontrámos alguns corpos em decomposição. Eram os de uma mãe e do seu filho. Não ouso imaginar o que fizeram aos dois antes de os lançar no poço. Chamámos a polícia, que, no entanto, não apareceu, e assim providenciámos nós à recuperação e à sepultura dos corpos. Em 2013, muitíssima gente foi morta e lançada nos poços.» Episódios como aquele relatado por Saint-Regis, de 22 anos, habitante no bairro PK5 de Bangui, estavam na ordem do dia quando deflagrou o conflito.
O PK5 é uma das zonas mais populosas da capital e é habitado sobretudo por muçulmanos. Aqui se encontra o grande mercado, fulcro da vida comercial de Bangui.

O PK5 está coberto de escombros porque foi um dos principais palcos dos confrontos entre Seleka e anti-Balaka e ainda hoje basta uma olhadela indiscreta, uma palavra infeliz, uma contenda para fazer correr sangue.

«Minusca – grita tomado de raiva, rodeado de uma vintena de pessoas, Atie – lavou daí as suas mãos e continua a fazê-lo.» O homem, de 44 anos, comerciante de tecidos, mostra no seu smartphone alguns vídeos terríveis: «Famílias de muçulmanos foram esventradas, carbonizadas e cortadas aos pedaços com catanas. Vejam aqui: um anti-balaka amputa a mão de um muçulmano enquanto a patrulha da ONU passa a poucos metros.»

No final da oração do fim do dia, na grande mesquita do PK5, o grande imã de Bangui, Hamat Tidjanie, cumprimenta um a um todos os seus fiéis com um enérgico aperto de mão, garantindo que em breve voltarão a viver em paz. «Inshallah» (Se Deus quiser), é a resposta que recebe de cada um deles. «As nossas relações com as outras comunidades religiosas – afirma não muito convencido – são boas. Comunico com os dirigentes católicos e protestantes não directamente, mas através dos meus canais. Houve violações horrendas, de uma parte e da outra, mas hoje a situação está sob controlo.»

Tornar-se ex-milícia

Entretanto, as crianças brincam aos “Seleka e anti-Balaka” empunhando pedaços de madeira como se fossem catanas. Milhares de jovens e adolescentes, sem instrução e sem trabalho, empunharam as armas passando a fazer parte das milícias e manchando-se dos piores crimes. Alguns deles, católicos, encontraram, porém, uma via de saída graças ao centro de formação profissional Dom Bosco em Damala, um bairro periférico de Bangui. Aqui a porta da casa dos Salesianos está sempre aberta. Um grande cartaz à entrada diz: “Um jovem bem formado constitui uma garantia para enfrentar as emergências da República Centro-Africana”.

Conta Ben Achille Kaimba, de 21 anos, um ex-milícia anti-balaka: «Graças ao Centro Dom Bosco consegui sair dos problemas em que me tinha metido. Segui um curso profissional para ser mecânico e motorista de camião, e hoje posso levar para casa alguma coisa de comer. Mas aqui sobretudo limpei a cabeça de tantas ideias estúpidas e más inculcadas pela guerra.»

«Os Seleka – diz Rita, de 20 anos – mataram o meu pai e a minha mãe diante dos meus olhos. Na confusão, consegui escapar e jurei que mas haviam de pagar. Por esse motivo tornei-me uma combatente anti-Balaka: puseram-me nas mãos uma catana e a partir daquele momento tornei-me um deles. Andava perdida. Um dia, um amigo falou-me deste centro e da possibilidade de mudar a minha vida. Aqui aprendi a viver graças ao meu trabalho. Aprendi a confeccionar vestuário e o dinheiro que ponho de parte conto investi-lo num projecto.»

Os religiosos do centro acompanham os jovens no seu percurso de reabilitação. Ouvem as suas histórias, conhecem as famílias de origem, rezam por eles. Os jovens que entram nos cursos de formação são seleccionados por diversas ONG e pela embaixada de França, que contribuem para o seu sustento. É vasta a escolha dos cursos: mecânico, motorista, electricista, ferreiro, carpinteiro, marceneiro, informático, alfaiate e agricultor. «Os nossos estudantes – explica Justin Sanze, director pedagógico do centro – recebem uma formação de três anos. No fim do ciclo é-lhes entregue um certificado que lhes permite aceder ao exame para a obtenção do diploma estatal. O nosso credo impõe-nos não deixar ninguém para trás, especialmente os ex-milicianos.»

Um pedaço de tecido

Em Bangui, é preciso dissimular a pertença religiosa. Para uma mulher muçulmana, utilizar o véu fora do PK5 pode significar violação ou linchamento. Para uma cristã, usá-lo dentro do PK5 pode equivaler a um “deixa passar”. Um pedaço de tecido a que ninguém teria ligado até há seis anos. Antes da guerra, a comunidade cristã e a comunidade muçulmana conviviam em relativa paz. Os casamentos mistos não eram uma raridade.

Hoje parecem ter saltado todas as dinâmicas sociais no signo da convivência. Procura-se sobreviver, legal e ilegalmente. Os tráficos de armas e minerais preciosos fazem cobiça a todas as facções e também às Forças Armadas centro-africanas que pendem para os anti-Balaka.

Com a resolução 2399, aprovada por unanimidade no passado dia 30 de Janeiro, o Conselho de Segurança da ONU renovou por um ano o embargo sobre as armas imposto ao país. Não só a venda de armamentos, mas também de assistência técnica e formação relativas a actividades militares. No entanto, o Governo de Moscovo conseguiu obter uma abolição parcial do embargo e assim mete no prato armas e abastecimentos industriais em troca de licenças para a exploração mineira: foi este o suco do encontro ocorrido há poucos meses entre o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, e Touadéra.

O último relatório do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), datado de Abril, revela dados no mínimo alarmantes: 687 398 deslocados internos, 568 572 refugiados nos países limítrofes; 2,5 milhões (mais da metade da população) precisam de ajuda humanitária; 2 milhões afectados pela insegurança alimentar; pelo menos 400 mil crianças sem acesso à escola. «O plano de resposta humanitária para 2018 – lamenta Joseph Inganju, chefe do OCHA na República Centro-Africana – ascende a 515,6 milhões de dólares, mas até hoje não foi financiado nem sequer um décimo. Agradecemos de coração aos nossos doadores, mas estes esforços não são suficientes.»

As Nações Unidas exortaram várias vezes as milícias a cessar a violência e pediu ao governo do presidente Touadéra que se empenhe mais em perseguir os responsáveis e proteger a população. Ambos os pedidos até hoje não foram ouvidos.

LUCA SALVATORE PISTONE
De Bangui
Além-Mar, Novembro 2018