Sexta-feira, 15 de Janeiro de 2021
“Nestas páginas, tentámos traçar um caminho curto, compreensível e aberto, que poderia ser útil para uma possível discussão sobre a questão proposta: o enraizamento, ou falta de enraizamento, dos institutos missionários nas Igrejas locais da Europa (num momento propício à reflexão, como é a preparação do 19º Capítulo Geral). Relendo o texto, percebo que poderia ser acusado de ser genérico, unilateral e/ou excessivamente negativo, e certamente também limitado no que diz respeito à situação dos outros institutos missionários, sobre os quais ainda não reunimos dados suficientes.” (P. Manuel Augusto Lopes Ferreira, mccj)

Institutos Missionários na Europa:
Que Futuro?

Introdução

O título que adoptámos pode levar alguns leitores a uma percepção apressada, mesmo antes da leitura do texto: que estamos preocupados com a sobrevivência dos institutos missionários devido à falta de vocações missionárias na Europa. Digamos imediatamente que este não é o nosso ponto de partida, mesmo que, como veremos, a questão da falta de vocações missionárias na Europa não possa ser evitada quando se fala de institutos missionários neste continente.

O nosso ponto de partida é outro: a percepção de um desenraizamento dos institutos missionários das Igrejas locais da Europa. Por um lado, parece que as Igrejas da Europa já não reconhecem os institutos missionários como a sua expressão missionária actualizada e, por outro lado, parece que os institutos missionários se afastaram da sensibilidade e da vida das Igrejas europeias. Obviamente, estamos apenas a falar de institutos missionários na Europa e não nos referimos à sua situação em África, por exemplo, onde a sua fecundidade apostólica é evidente e a sua inserção nas Igrejas locais é mais fácil e menos problemática.

Este é o nosso ponto de partida que pode ser não partilhado e/ou rejeitado. Mas é a partir desta observação que começamos. Face a uma evidente falta de fecundidade e criatividade apostólica (que vai muito para além da questão das vocações), pensamos que não podemos evitar a questão do enraizamento, ou falta dele, dos institutos missionários nas Igrejas locais que os viram nascer.

Escrevemos no plural em primeira pessoa, porque queremos captar a benevolência do leitor e envolvê-lo na escrita da narrativa, talvez construindo a sua própria, adoptando o que aqui é proposto ou integrando-o com diferentes pontos de vista.

Exaustão carismática

Para começar, vamos trabalhar um pouco o nosso ponto de partida.

Os institutos missionários na Europa parecem ter chegado a uma situação de esgotamento apostólico. As vocações são uma expressão do enraizamento de um carisma na Igreja local. Mas não são as únicas... Os institutos missionários na Europa, de facto, parecem incertos também no que diz respeito à identidade do seu carisma no contexto das Igrejas locais europeias. Nas últimas duas décadas abraçaram as causas prementes do momento europeu (lobby pela justiça e paz, migrantes, luta contra a exploração das pessoas e a produção de armas, protecção ambiental e ecologia...) mas não conseguiram afirmar-se como sujeitos da evangelização do continente, oferecendo às Igrejas locais iniciativas e caminhos de presença e proclamação cristã, iniciação e acompanhamento eclesial de pessoas e grupos. Esta nossa referência ao esgotamento apostólico dos institutos missionários na Europa deve-se também ligar ao fenómeno da perda do impulso carismático que caracteriza, segundo algumas análises históricas, a vida dos institutos após um certo tempo da sua fundação. Algumas análises falam de uma centena de anos e concluem que esta seria a situação dos institutos na Europa.

A animação missionária e a promoção vocacional têm permanecido o principal âmbito da presença e actividade dos missionários (incluindo os combonianos) na Europa ao longo dos últimos vinte anos, realizadas com um número considerável de pessoas e uma grande variedade de iniciativas. Mas a sensação crescente, neste período, é que estas actividades estão a perder terreno e o modelo de presença que encarnam já não é aderente à realidade eclesial. Por um lado, o contraste entre meios empenhados e frutos apostólicos e carismáticos obtidos é evidente; por outro lado, especialmente no que diz respeito à promoção profissional, parece evidente que o modelo seguido perdeu a sua capacidade de motivação. O decurso destes anos demonstrou que os jovens candidatos não são apenas poucos, mas que estes poucos não conseguem sentir-se motivados para um caminho de formação que conduza à consagração para a missão, e abandonam facilmente o caminho empreendido.

Não faltarão aqueles que pedem provas do que é dito acima. Mas, no que nos diz respeito, nenhuma outra prova é necessária para o que é evidente. Por conseguinte, esta situação é o ponto de partida que adoptamos quando falamos de exaustão apostólica e carismática. É nosso desejo, contudo, que o texto, com a dose de provocação que tem, possa ajudar a aprofundar a questão e encorajar a reflexão por parte daqueles que desejam compreender o que está a acontecer aos institutos missionários nas Igrejas da Europa.

Creio que, com o leitor, temos uma perspectiva comum: esta reflexão, embora urgente e necessária, não é aquilo de que depende o futuro dos institutos missionários na Europa. Este futuro depende de Deus e da história que Ele escreve nas Igrejas do continente, da vida dos próprios institutos e da forma como respondemos a ela; a Deus, portanto, confiamo-nos, nesta tentativa de interpretação, com a confiança que os grandes fundadores missionários tinham. Para São Daniel Comboni, como bem sabemos, as dificuldades, as cruzes, foram um sinal evidente de uma acção escondida de Deus, da Sua hora, porque "as obras de Deus nascem e crescem aos pés da cruz" ([1]) no meio das dificuldades. Assim invocamos a sua confiança em Deus e a sua "coragem, para o presente e, acima de tudo, para o futuro" ([2]).

A hora do regresso

Em muitos aspectos, para os institutos missionários na Europa, mais do que a hora da partida (da saída), é a hora do regresso. De facto, uma grande parte dos actuais recursos, pessoas e meios, dos institutos missionários na Europa vai para acolher missionários que regressam aos seus países e Igrejas de origem, por razões de idade e/ou saúde. Este acolhimento é admirável e deve ser reconhecido e apreciado como uma resposta positiva e muito bonita por parte dos institutos ao desafio do seu próprio envelhecimento.

Nas últimas duas décadas, o desenraizamento dos institutos missionários na Europa foi acentuado por dois factores: a inadequação das estruturas de presença herdadas do passado e o envelhecimento dos membros. Enquanto para o primeiro factor houve respostas, para o segundo não houve forma de o conter.

Na realidade, o envelhecimento dos membros dos institutos missionários na Europa precipitou-se inexoravelmente. Se olharmos para os missionários combonianos na Europa, podemos dizer que a situação actual das províncias de língua italiana e alemã é emblemática do que está a acontecer com as outras, salvas as devidas diferenças em proporção. Um olhar sobre a província italiana, por exemplo, revela que os 254 Combonianos italianos actualmente presentes na sua província de origem têm uma idade média de 75,78 anos, distribuídos da seguinte forma: 30, acima de 90; 89, entre 80 e 89; 59, entre 70 e 79; 46, entre 60 e 69; 21, entre 50 e 59; 5, entre 40 e 49; 4, entre 30 e 39 e nenhum com menos de 30 anos ([3]).

O envelhecimento é uma faca de duas lâminas: por um lado, o instituto envelhece e, por outro, há menos membros de idade para poder fazer uma mudança apostólica e para dar corpo a novas iniciativas carismáticas.

Esta hora de regresso pode ser também a hora de uma nova partida, se os recursos humanos e materiais não se esgotarem no acolhimento dos idosos, mas também forem direccionados para a procura de novas iniciativas de enraizamento nas Igrejas locais, em vista de uma renovada fecundidade carismática e apostólica. Algumas províncias combonianas, contudo, como Espanha e Portugal, parecem gozar de uma situação melhor do que as italianas e alemãs porque, embora seja verdade que têm menos membros (45 em Portugal e 43 em Espanha), têm um número proporcionalmente mais significativo de confrades na faixa etária dos 30 aos 60 anos e vivem num contexto eclesial ainda favorável. Portugal, por exemplo, ainda tem 8 pessoas com menos de 50 de um total de 45, enquanto a Itália tem apenas 9 de um total de 254. A idade média dos Combonianos em Portugal (69,2 anos para os irmãos e 68,3 anos para os sacerdotes) é também mais baixa - embora não muito - do que em Itália (75,78 anos para os irmãos e sacerdotes). E os 43 Combonianos presentes em Espanha têm uma idade média de 66,7 anos, e entre eles, 4 têm menos de 50 anos de idade. Devemos notar, contudo, que o facto de as províncias de Portugal e Espanha terem tido um número médio de confrades mais jovens no passado recente não lhes facilitou a procura de novos caminhos de inserção.

Um contexto desafiante

O contexto social e eclesial europeu em que nos encontramos, ou seja, também o cenário para este desejável ponto de viragem, é particular: por um lado, oferece novas possibilidades inerentes à crise; por outro lado, rescreve o quadro de inserção de uma nova forma. Neste sentido, há quatro processos em curso, que caracterizam o contexto em que os institutos missionários vivem na Europa.

O primeiro processo é ambivalente: o imparável processo de secularização que está a desconstruir a sociedade europeia e a encerrar a dimensão religiosa na esfera individual; o alargamento da "sociedade líquida" ([4]) que marca o ambiente pós-cristão que se respira na Europa, especialmente entre os jovens. Um processo do qual todos parecemos estar conscientes, mas ao qual não há resposta, no que diz respeito à evangelização ([5]). A iniciativa da nova evangelização [a ideia da nova evangelização foi lançada por João Paulo II ([6]), pensando sobretudo na evangelização da Europa], com a criação do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização ([7]), não descolou como resposta ao desafio: o Conselho deixou de fora os institutos missionários, as suas iniciativas depressa perderam vigor, reduzindo-se a uma costa burocrática de desembarque para um novo grupo de curiais.

Com o pontificado do Papa Francisco, o Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral ([8]) tomou a iniciativa e assumiu a liderança. Em meados do ano pandémico, o Dicastério conseguiu que o Papa aprovasse uma agenda intensa de actividades e reuniões, fazendo-a passar como a resposta oportuna ao desafio da evangelização. Desta vez, os institutos missionários parecem ser capazes de se atrelar a estas iniciativas, dadas as dimensões da missão que sublinharam na Europa [como demonstra a iniciativa lançada pela família comboniana em Itália em Outubro de 2020 ([9]), inspirada nos três documentos mais recentes do Papa Francisco: Laudato Si', Querida Amazónia e Fratelli Tutti. Curiosamente, Evangelii Gaudium é deixada de fora, não mencionada, numa iniciativa apresentada como "canteiro de construção da nova missão" no mês missionário. E, ao apresentar o objectivo desta iniciativa, não se fala de uma evangelização que assume uma ecologia integral, mas de promover "uma conversão ecológica, social, cultural e económica" na "esperança de que a partir deste estaleiro de construção possa nascer um movimento popular" ([10])].

A outra iniciativa, também lançada por João Paulo II, a pensar na evangelização dos jovens (as Jornadas Mundiais da Juventude) e que tem visto o envolvimento de paróquias, movimentos, novas comunidades, não tem despertado o interesse dos institutos missionários na Europa. Estes, em geral, mantiveram-se à margem destas iniciativas e não investiram na sua realização nem capitalizaram no dinamismo que geraram entre os jovens cristãos do continente.

O segundo processo no contexto europeu é negativo: a crise económica, que começou em 2008, desencadeou uma bomba relógio na questão dos recursos e da sustentabilidade dos institutos missionários e das suas iniciativas missionárias, com o início de uma diminuição muito significativa do apoio material dos benfeitores individuais e institucionais na Europa.

O terceiro processo, claramente positivo, é o pontificado do Papa Francisco, que ofereceu aos institutos missionários um magistério favorável, renovado e atractivo sobre a actualidade do carisma missionário, com a sua proposta de uma configuração missionária de toda a Igreja ([11]). A acção e o Magistério de Francisco têm um duplo valor: de desconstrução de um modelo de Igreja e missão em crise e de proposta de um modelo alternativo ([12]). E, mesmo que o actual pontífice, por vezes e segundo os ecos dos media, apareça mais eficaz no seu trabalho como "demolidor" do que como "proponente" eficaz ([13]), a sua acção e o seu magistério constituem uma promessa para todos na Igreja, especialmente para os institutos missionários. Naturalmente, cabe a eles explorar e apropriar-se, de acordo com o seu carisma e possibilidades, da proposta e da narrativa missionária do Papa.

O quarto processo, difícil (ainda) de caracterizar, é a pandemia que atingiu a Europa, tal como outros continentes. Com formas, tempos e ritmos diferentes, a pandemia virou a vida de todos de pernas para o ar e pôs o futuro em espera. Em particular, minou o paradigma da inserção de institutos missionários nas Igrejas da Europa, uma inserção que dependia da mobilidade dos missionários e da convocação de pessoas e da recolha de ajuda. Institutos, como as igrejas do continente, provaram ser bastante incapazes de ir além do que todos dizem e de dizer aquela Palavra de Vida que ajuda a encontrar sentido ao que vivemos e a dar respostas às incertezas que se avolumaram dentro de nós. Esta palavra é a palavra que leva o Evangelho do Reino e a sua tese.

A pandemia continua e, claro, é difícil prever, no momento em que escrevemos, como vão ser as coisas e o que a tempestade actual vai deixar nas margens da vida da Igreja e dos institutos missionários ([14]). Mas muitos concordam em profetizar que as coisas não voltarão a ser como eram e que a mudança de época, que já vivemos desde o início do século XXI, será definitivamente marcada por esta pandemia e pelos processos espirituais, culturais e políticos que ela provocará e nos deixará. Isto não significa que as coisas se tornarão mais fáceis para o cristianismo na Europa e que a pandemia dará um impulso à evangelização do continente, como se poderia esperar inicialmente: pelo contrário, há também autores que concordam que com a pandemia a secularização na Europa avançou em dez anos ([15]).

Considerar as origens

O Papa Francisco, em várias ocasiões, convidou-nos a olhar para a história para lançar luz sobre o presente. Gostaria de voltar ao seu convite mais recente ([16]): "Só a partir da verdade histórica dos factos pode nascer o esforço permanente e duradouro de nos compreendermos uns aos outros e de tentarmos uma nova síntese para o bem de todos".

Nascidos no século XIX, particularmente nas Igrejas da Europa Central (norte de Itália, França, Áustria e Alemanha...), com um quadro canónico diversificado (Sociedade de Vida Apostólica e Congregações Religiosas de votos simples...), os Institutos Missionários ad Gentes assentaram em três postulados fundamentais: 1º, a urgência da proclamação cristã e a necessidade do Baptismo, em obediência ao mandato missionário de Cristo; 2º, a iniciação e acompanhamento das comunidades cristãs, das Igrejas locais, nos vários continentes; 3º, a acção em prol do desenvolvimento humano e da transformação social, política e económica dos povos.

Por detrás do florescimento dos institutos missionários encontramos uma multiplicidade de factores, já estudados pelos historiadores da Igreja ([17]).

O primeiro factor foi o amplo movimento missionário do século XIX, que encarnava a abertura mais significativa da Igreja da época. Não foi uma fuga para a frente, mas um verdadeiro "ir para as periferias", um "experimentar o dinamismo de uma Igreja em saída," para usar as palavras que o Papa Francisco usa hoje ([18]). Os fundadores missionários - e aqueles que os seguiram na aventura de ir mais longe e procurar uma nova relação com os povos, as suas culturas e religiões - recusaram-se a permanecer prisioneiros das tensões da Igreja do seu tempo e do seu espaço geográfico e lançaram-se em iniciativas missionárias inovadoras. No seu amor e na sua adesão à Igreja, sentiram que os tempos estavam a mudar, mas os caminhos para a nova saída eclesial não eram conhecidos, tiveram de os descobrir para lhes dar concretização histórica. Ou seja, para encontrar algo novo tiveram que desbravar caminho.

Segundo factor, o apoio espiritual e material dos grupos de renovação na Igreja do século XIX. O século XIX assistiu ao florescimento na Europa de uma galáxia de grupos e movimentos de oração e de vida cristã, dos quais os fundadores tiraram inspiração e alimento espiritual, encontrando formas de se enraaizarem neste tecido de Igrejas locais irrigadas por fortes leveduras de renovação espiritual e apostólica.

Terceiro factor, o idealismo da transformação social inspirada pelo Evangelho. No século XIX, partia-se da experiência cristã, da liturgia e da vida sacramental, para levar o Evangelho à sociedade e desencadear a transformação social e cultural por ele inspirada. Hoje, a perspectiva é diferente: partimos da realidade para chegar ao Evangelho, e o fazermos presente na sociedade como fermento. Mas o desafio é o mesmo e no século XIX foi uma perspectiva vencedora, se olharmos para o optimismo que levou muitos cristãos na Europa a apaixonarem-se pela transformação social inspirada pelo Evangelho e a levarem o Evangelho do Reino para África e Ásia. Alguns pensadores colocam nesta visão as raízes do cristianismo marcado por uma forte dimensão social que caracterizou a Igreja da Europa (França, Norte de Itália, Alemanha, Áustria...) desde o final do século XIX até aos anos 70 do século XX ([19]) e que teve na Acção Católica (com o seu método de ver, julgar e agir, proposto por Joseph-Leon Cardijn) a sua expressão mais estruturada.

Quarto factor, a aliança entre o clero (muitos protagonistas de iniciativas missionárias vieram do clero diocesano) e os leigos (artesãos e os chamados "mestres de artes e ofícios"...), uma aliança onde os leigos eram por vezes os mais numerosos nas expedições missionárias, numa época e numa Igreja que ainda não tinha chegado à teologia ministerial e à definição da missão dos leigos.

Quinto factor, último nesta ordem, mas talvez primeiro pela novidade e importância: a aliança com as mulheres e o envolvimento das mulheres na missão e na promoção das iniciativas missionárias da Igreja e dos institutos nascentes. Pela primeira vez, no século XIX, encontramos mulheres na linha da frente da missão cristã no mundo e na animação missionária da Igreja ([20]).

Contribuição fundamental

A brevidade do presente ensaio não nos permite deter-nos noutros factores, do contexto social, político e cultural, que influenciaram o renascimento missionário do século XIX na Europa. Recordemos apenas que a condição da Igreja na sociedade europeia na época era muito difícil (as consequências da Revolução Francesa, as lutas pela unificação da Itália, a queda de Roma e o fim do Estado pontifício, o liberalismo europeu, etc.), uma situação que pode recordar a actual, em particular a deriva da secularização, do liberalismo económico e da globalização.

Recordemos também que os institutos missionários tiveram o seu tempo de expansão e actividade frutuosa especialmente desde a segunda metade do século XIX até ao Concílio Vaticano II, e mesmo depois, até aos anos oitenta do século passado. Durante este período, cem anos, deram uma contribuição fundamental para o enraizamento da Igreja Católica entre os povos dos vários continentes, especialmente em África e na Ásia, uma contribuição que os historiadores da Igreja reconhecem.

Podemos concluir esta visão histórica dizendo que os institutos missionários, livres dos velhos enquadramentos canónicos e do empecilho das tradições que pesavam sobre a acção missionária das grandes ordens religiosas, representaram novas abordagens e metodologias missionárias e deram um impulso considerável à acção missionária da Igreja Católica, ao ponto de se tornarem a manifestação mais significativa da sua abertura ao mundo, desde o século XIX até ao Concílio Vaticano II, impulsionando a criação de Igrejas locais e a promoção e libertação dos povos.

A reviravolta

O final do século XX e a transição para o século XXI acentuaram uma viragem na situação dos institutos missionários na Europa, destacando a crise da sua inserção nas Igrejas locais onde nasceram. Os factores fundamentais que predisseram uma nova situação podem também ser reduzidos aqui para quatro.

O primeiro factor, que já mencionámos, é o envelhecimento dos membros dos institutos e a acentuada, primeiro, e depois, a total falta de vocações missionárias, tanto femininas como masculinas, na Europa. As províncias combonianas europeias chegaram no final da segunda década deste século sem qualquer candidato nas várias fases de formação. Face a esta surpreendente falta de vocações, todos ouvimos a resposta que normalmente damos a nós próprios: "não temos vocações, porque já não há vocações na Europa". Mas esta resposta contém apenas metade da verdade: não há vocações na Europa para institutos missionários, para nós, mas há para novas comunidades e movimentos; não há com os números do passado, mas há com números encorajadores para movimentos, dioceses, institutos que iniciaram uma viagem em busca de novas formas de enraizamento carismático no tecido eclesial e social europeu.

O segundo factor é o advento de uma nova consciência eclesial que (por várias razões que têm a ver com o diálogo ecuménico e inter-religioso) já não considera urgente o Baptismo ou a entrada na Igreja de pessoas e povos. A necessidade do Baptismo e da Igreja para a salvação desvaneceu-se e já não constituem uma parte decisiva da motivação para a evangelização. Os modelos de eclesiologia que se afirmaram após o Concílio Vaticano II não conseguiram assegurar o apoio oferecido à missão cristã pelo modelo institucional, prevalecente na teologia de meados do século XIX a meados do século XX, ou seja, do Vaticano I ao Vaticano II, que deu "um forte apoio ao esforço missionário com que a Igreja se dirige àqueles que não são seus membros" ([21]). Em contraste com a eclesiologia institucional, que dominou no século XIX, a eclesiologia de comunhão que se desenvolveu depois do Vaticano II "carece de dar aos cristãos um sentido muito claro da sua identidade ou missão" ([22]). E a eclesiologia pós-conciliar sacramental é um modelo de igreja que "dá amplo espaço à acção da graça divina para além dos limites da igreja institucional".

Em terceiro lugar, a emergência da sociedade civil e o seu dinamismo humanitário, que deram origem a novas formas de intervenção em favor do desenvolvimento, da promoção humana e da transformação social. Nos vários continentes, incluindo África, surgiu um número infinito de organizações não governamentais (ONG) em resposta aos desafios do desenvolvimento e às novas causas humanitárias. Este fenómeno tornou redundante o empenho das Igrejas e reduziu grandemente o espaço e as oportunidades de envolvimento dos institutos missionários no campo social: por sua própria iniciativa, ou forçados pelas políticas governamentais, os institutos missionários começaram a abandonar as estruturas do seu empenho (hospitais, escolas...) na promoção da saúde e da educação.

O quarto factor, também mencionado acima, é a falta de enraizamento dos institutos nas Igrejas da Europa. Ironicamente, no início do século XXI, os institutos missionários encontram-se nos antípodas da situação que os viu nascer; faltando, isto é, o apoio das Igrejas locais e dos principais grupos e comunidades de renovação eclesial. Os cristãos europeus e o povo em geral apreciam o nosso protagonismo social e a nossa dimensão profética [ministério social, com o termo utilizado hoje ([23])], dão-nos (ainda) o seu dinheiro para apoiar as nossas iniciativas, mas já não nos seguem nem nos vêem como a encarnação do compromisso cristão e missionário que precisamos de viver e emular hoje na Europa.

Como chegámos aqui?

Chegámos aqui, de duas maneiras. Por um lado, as Igrejas locais e os movimentos de renovação pós-conciliares chamaram a missão a si próprios, em linha com a visão do Vaticano II que vê as Igrejas locais como o sujeito e protagonistas da missão cristã no mundo. Por outro lado, os institutos missionários perderam a sua capacidade de criar raízes nas Igrejas locais europeias, grupos e movimentos, atraídos pelas suas próprias visões e práticas missionárias, de acordo com a sensibilidade social e política do momento, mas longe do caminho das Igrejas locais.

A recepção do Vaticano II favoreceu, nos anos 70, um intercâmbio de espiritualidade e experiências apostólicas entre os vários institutos missionários e entre estes e os novos movimentos eclesiais (Focolares, Neocatecumenais, Comunhão e Libertação...). Como fomentou um enriquecimento mútuo de personalidades e testemunhos (Roger Schutz em Taizé, Abbé Pierre em França, Mani Tese em Itália...) que inspiraram a imaginação dos cristãos naqueles anos.

O conhecimento da própria história e o aprofundamento do próprio carisma ([24]) conferiram segurança própria nesta exposição aos carismas dos outros. Mas havia também o risco de que a exposição ao carisma dos outros causasse uma deriva, em vez de enriquecer. Quanto a nós, isto aconteceu com os Neocatecumenais e um grupo significativo de Combonianos que, nos anos 70 e 80 do século passado, deixaram o Instituto para seguir o Caminho Neocatecumenal.

No XIII Capítulo Geral, em 1985, foi tomada a decisão de pôr fim a este intercâmbio recíproco e visitação carismática mútua ([25]). Por um lado, a identidade do carisma missionário comboniano foi salva; mas por outro lado, privámo-nos da riqueza dos outros e fizemos um caminho missionário mais em solitário. Para dizer a verdade, a frequência espiritual continuou (especialmente com o Movimento dos Focolares e a Comunhão e Libertação...), mas de uma forma privada e "subterrânea". Na altura, parecia que éramos suficientemente fortes para continuarmos sozinhos, confiantes no nosso carisma e na sua relevância; hoje vemos os limites, se não do caminho que percorremos, da situação em que nos viemos a encontrar.

Dois outros elementos contribuíram para nos trazer onde estamos, e devem ser lembrados, mesmo que apenas brevemente.

Primeiro, o sentido de pertença formal ao Instituto e a crescente falta de uma forte consciência de missão partilhada. Em muitos aspectos, cresceu um sentimento de pertença formal que tende a ver o Instituto como um meio de realização de uma vocação entendida como um projecto pessoal. A ênfase da vocação missionária deslocou-se para a pessoa, os seus dons e carismas pessoais, com a consequente redução da consciência de uma missão comum, realizada em fraternidade e na partilha de pontos de vista e meios.

Em segundo lugar, as ambiguidades das escolhas feitas com vistas a uma inserção renovada na Europa. As opções feitas (paróquias, compromissos com os migrantes, justiça e paz...), apesar do seu valor de presença e testemunho, não se afirmaram como formas marcantes de enraizamento carismático, capazes de obter reconhecimento eclesial e desenvolver força de atracção carismática. Esta inserção não produziu, por exemplo, um movimento missionário significativo nas Igrejas da Europa, apoiado por institutos missionários; cada Instituto adaptou-se por si próprio, com dinâmicas de sobrevivência imediata.

Entre nós Combonianos, esta procura de novas formas de inserção nas Igrejas locais levou a assumir paróquias: pensemos em Castel Volturno, em Nápoles; Santa Lúcia, em Palermo; Camarate e Apelação, em Lisboa; Roehampton Road, em Londres [estas iniciativas e presenças, acumuladas com o envolvimento com migrantes, têm lugar no contexto das paróquias, com excepção da presença em Roma com a ACSE ([26]). [Na DSP (Deutschprachige provinz) os Combonianos tiveram uma experiência de inserção no leste da Alemanha, em Hahle, durante 10 anos sem paróquia e 3 com a paróquia. A experiência terminou e hoje a província tem a responsabilidade de uma paróquia em Gratz; em vez disso, o caminho foi aberto para um compromisso dos Combonianos nas paróquias como colaboradores remunerados. Deve recordar-se que está actualmente em curso na Igreja da Alemanha um profundo processo de reestruturação das paróquias. Na Italia, o CIMI procurou uma iniciativa de envolvimento com migrantes levada a cabo por uma comunidade intercongregacional ([27]), sem o empenho da paróquia, mas os Combonianos não se envolveram até agora]. A assunção de paróquias, porém, não parece ter-se revelado como uma forma de inserção que liberte o dinamismo evangelizador do carisma. Visto e aceite como a única forma de inserção possível (especialmente por alguns bispos locais), não fomos capazes de fazer um avanço e torná-la uma forma emblemática de inserção que revela a vitalidade do carisma comboniano numa Igreja local na Europa. A procura deste ponto de viragem continua (nos encontros de Combonianos empenhados em paróquias na Europa) e deve ser encorajada a fim de restaurar a justiça carismática a esta forma de inserção.

Um olhar para os números, mesmo que não explique como chegámos aqui, pode dar uma ideia mais precisa da situação. Em 1996, os missionários combonianos atingiram o número mais elevado da sua história, 1839; desde então iniciaram um processo de diminuição que os levou a 1510 no final de 2020. Os Combonianos que pertenciam originalmente às províncias europeias, em 1996, eram 1422 e estas tinham 43 candidatos em teologia. Hoje os combonianos europeus são 758, metade dos que eram em 1996; não têm nenhum candidato em teologia e o noviciado europeu está suspenso. Os Combonianos de pertença jurídica às províncias da Europa (ou seja, aqueles que estão actualmente presentes no continente) em 1996 eram 461; no final de 2020 são 412. O número das suas presenças no continente tem sido mantido, mas a situação inverteu-se, no que diz respeito à idade: enquanto em 1996 a maioria ainda estava num grupo etário activo, em 2020 a maioria está no grupo etário dos 70 aos 90 anos.

Um carisma na história ([28]) 

Uma reflexão sobre o carisma comboniano na história revela que o nosso é um carisma nascido na crise ([29]) e que, nas dificuldades, mostra a sua vitalidade. Os dolorosos acontecimentos da nossa história conduziram-nos a novas configurações do carisma: a morte prematura do Fundador levou-nos à transformação numa congregação religiosa; esta transformação levou à configuração das duas congregações; da expulsão maciça do Sudão (1964) chegámos à abertura a uma África mais ampla e inclusiva de povos e culturas; de África, como missão primordial do Instituto, abrimo-nos à América e depois à Ásia; da redescoberta do Fundador e da renovação do Concílio chegámos à congregação reunificada e redescobrimos a unidade e a vitalidade apostólica.

A brevidade deste artigo não nos permite explorar este dinamismo da nossa história para reforçar a esperança de um novo modelo de inserção carismática para o Instituto na Europa. Contudo, podemos intuí-lo, vislumbrando a possibilidade de uma nova configuração do carisma, partindo precisamente da Europa, onde o Instituto nasceu e do contexto intercultural em que se encontra (com crescimento e enraizamento nas Igrejas locais de África). O leitor atento já o terá percebido, nas referências a movimentos e novas comunidades. Recordamos, em relação a este futuro e sem pretensões de resposta, a pergunta de um autor no início do século XXI ([30]): "Pode um instituto religioso evoluir, sem traumas e lacerações, para a forma eclesiológica dos actuais movimentos eclesiásticos?”

Face às dificuldades actuais, podemos fechar-nos no modelo de configuração religiosa como o que conhecemos e que nos trouxe até onde estamos... ou, sem negar a nossa consagração, abrir-nos ao dinamismo que caracteriza as novas formas de fraternidade e ministerialidade para a missão. Uma tal reflexão levar-nos-ia muito além das possibilidades desta breve investigação, mas permanece como um caminho a explorar e um horizonte a considerar.

Propostas para um novo caminho

A este momento, porém, talvez seja o caso de oferecer, pelo menos para discussão e tendo em mente o futuro próximo, algumas propostas para um possível caminho que procure um novo enraizamento dos Combonianos na Europa e uma renovação do seu carisma e da sua fecundidade apostólica.

Primeira proposta: realizar, em cada província, uma assembleia-debate sobre o futuro do Instituto na sua Igreja local e país, aberta a quem sentir o problema e queira participar. A assembleia deve ser feita no contexto da própria província, a fim de manter a reflexão aderente à vida da Igreja e da sociedade locais, levando-nos a reflectir sobre a qualidade do nosso testemunho e da inserção actual e abrindo-nos à procura de novas formas de enraizamento na Igreja e na sociedade locais. Uma possível assembleia, a nível das províncias da Europa, pode ter lugar mais tarde, a fim de realizar uma reflexão sobre uma plataforma comum, ou seja, para identificar possíveis pontos de contacto e diferenças.

Segunda proposta: promover o sentimento de pertença, ao Instituto e à Igreja local, dos membros do Instituto, procurando um estatuto de dupla pertença canónica ao presbitério diocesano, para os combonianos sacerdotes, em cada Igreja local onde estamos presentes e enquanto nela estiverem presentes. Isto fomentaria o crescimento do conhecimento mútuo e da comunhão apostólica com a Igreja local, bem como o envolvimento dos missionários nas iniciativas de evangelização da Igreja local, trazendo a particularidade do seu carisma.

Terceira proposta: na busca de uma espiritualidade renovada e de uma visão missionária, abrir-se à partilha de experiências carismáticas, com institutos religiosos tradicionalmente mais ligados a nós (como os jesuítas...), mas também com novas comunidades e movimentos. Perante a secularização do continente, a conjugação e o enriquecimento mútuo das espiritualidades só pode potenciar a capacidade de resposta de cada carisma, como aconteceu no imediato pós-Vaticano II.

Esta procura de partilha carismática deve ser feita com espírito crítico, no sentido em que os movimentos também se podem encontrar numa situação de perda do impulso carismático, como os institutos missionários. Alguns estudos alertam-nos para o que está a acontecer com o passar do tempo e o desaparecimento dos fundadores carismáticos, e a mudança das condições socioculturais que os viram nascer, tendo em conta que novas comunidades e movimentos tendem a não acompanhar a evolução cultural. Esta situação pode comprometer a vitalidade apostólica dos institutos e movimentos, e por esta razão, alguns falam da necessidade de conversão periódica (de "refundação"), ou seja, em momentos de forte mudança sócio-cultural ([31]).

Quarta proposta: estudar a criação, em cada província, de uma comunidade de acolhimento (no modelo dos centros de espiritualidade e iniciação cristã dos movimentos, Focolares, Taizé, Comunidade Emmanuel, Schoenstatt...) que possa acolher, por períodos de duração variável, jovens e adultos interessados no conhecimento e iniciação ao serviço missionário na Igreja e ao carisma missionário comboniano. Isto implica uma reflexão aprofundada sobre os possíveis caminhos de iniciação a oferecer: desde a iniciação à vida cristã (lectio divina, oração pessoal e litúrgica, vida sacramental e compromisso cristão), à iniciação ao serviço missionário na Igreja de hoje (nas suas várias dimensões) e ao carisma missionário comboniano (nas suas várias formas). Isto implica preparar pessoas capazes de oferecer estes percursos, e procurar pessoas, dentro das Igrejas locais, que possam ajudar a sustentar tais iniciativas (sinergia com outros institutos missionários).

Quinta proposta: construir um caminho de formação renovado, baseado numa linha mistagógica ([32]) de iniciação à vida cristã, vida fraterna para a missão, missão partilhada e as várias dimensões da missão hoje, como forma de iniciação ao carisma comboniano e à missão das pessoas e dos jovens atraídos pelo nosso carisma. Nesta visão, promotores vocacionais e formadores assumem-se como iniciadores da vida cristã e do compromisso missionário na Igreja e no Instituto; e as comunidades missionárias como fraternidades que vivem, testemunham e proclamam o Evangelho, de acordo com o seu carisma e tradição espiritual, e em comunhão com as igrejas do seu tempo e lugar.

Sexta proposta: estabelecer um grupo de estudo, a nível dos Institutos da família comboniana, para interessar os membros na questão do futuro na Europa e do nosso enraizamento nas Igrejas locais europeias. Fazemos esta proposta com um sentimento de incerteza quanto à sua oportunidade e viabilidade, pensando na experiência e no caminho percorrido pelo Gert (Grupo Europeu de Reflexão Teológica). O Gert prosseguiu por um caminho teológico, teórico e ideológico, e encalhou sobre a questão da evangelização na Europa. Apesar do valor da reflexão promovida, não conseguiu interessar os membros das nossas províncias europeias por novos caminhos de inserção nas Igrejas locais. Nem mesmo a interessante iniciativa dos Simpósios de Limone Sul Garda ([33]) chegou a algo de novo na área do enraizamento carismático dos nossos institutos nas Igrejas da Europa, para além do acompanhamento da reflexão sobre as experiências actualmente em curso.

Outros elementos a considerar

Tentando mover a nossa reflexão para uma conclusão, vemos que ainda existem outros elementos a incluir, mesmo que apenas mencionando-os.

Primeiro, a questão da espiritualidade missionária e da qualidade do testemunho, pessoal e comunitário, que os membros dos institutos missionários dão nas Igrejas da Europa. Alguns de nós pensam que a causa do actual esgotamento carismático e apostólico é a falta de espiritualidade e a fraqueza do testemunho.

Concordamos que, se é difícil verificar e medir estes dois aspectos da nossa vida, é possível, contudo, afirmar que estas duas dimensões estão na raiz de toda a fecundidade apostólica e de todo o enraizamento eclesial, como demonstra a história dos institutos missionários (um aspecto sobre o qual já nos debruçámos).

Daniele Comboni procurou, para os missionários e missionárias dos seus Institutos, uma espiritualidade elevada e robusta, à altura das dificuldades da missão africana; encontrou-a na contemplação do Coração trespassado de Cristo e na mística do cenáculo de apóstolos e propô-la aos seus missionários como uma fonte inesgotável de fecundidade pessoal e apostólica. Os institutos combonianos nasceram desta vertente da espiritualidade do século XIX e, durante décadas, até à primeira parte do século XX, alimentaram a esta torrente espiritual a sua vida fraterna e apostólica.

Depois, houve um afastamento crescente desta espiritualidade, que não podemos explicar aqui, mas apenas indicar como facto. A este respeito, fizemos um pouco como toda a Igreja, que depois do Concílio se afastou desta espiritualidade e sensibilidade religiosa. Uma mudança natural, à luz das novas sensibilidades da segunda metade do século XX, mas, no entanto, surpreendente, especialmente por ser uma espiritualidade muito difundida, que marcou a vida e a missão da Igreja de uma forma frutuosa por mais de um século.

Neste sentido, com muitos na Igreja, devemos perguntar-nos qual é o futuro da espiritualidade do Coração de Cristo ([34]). E devemos também perguntar-nos se o nosso futuro e o nosso enraizamento nas Igrejas locais da Europa não dependem precisamente da nossa espiritualidade - do Coração trespassado - devidamente integrada nas sensibilidades de hoje. Talvez a tenhamos descartado demasiado depressa, considerando-a inadequada para constituir o húmus espiritual de uma nova estação carismática. Recordemos que na Europa temos pelo menos uma situação em que a espiritualidade do Coração de Cristo provou ser frutuosa apostolicamente: estamos a referir-nos ao movimento e à Communauté de l'Emmanuel, nascida em França, que encontrou e alimenta a sua fecundidade carismática e apostólica precisamente em Paray-Le-Monial.

O nosso Instituto acaba de tomar a iniciativa de propor a Cruz Comboniana, como apelo à nossa espiritualidade; será necessário continuar a procurar nesta direcção a integração entre a espiritualidade que nos deu origem e aquelas que vivemos hoje na Igreja (assumindo que vivemos uma); procurar, sobretudo, o húmus espiritual sem o qual não pode haver um enraizamento carismático e apostólico frutuoso ou um entusiasmo pelo futuro.

O segundo elemento a ser considerado é o actual contexto intercultural dos institutos missionários, no caso dos Combonianos muito evidente e acentuado pela passagem do século. Hoje o Instituto comboniano é multicultural, abriu-se a uma variedade de almas (primeiro latino-americana, agora africana e asiática) que o enriqueceram muito. O enraizamento do Instituto Comboniano nas Igrejas da Europa não pode ser separado deste contexto nem pode ser pensado sem esta referência, que nos leva a questionar o papel e o contributo dos Combonianos não europeus para a vida do Instituto no velho continente. E perguntar-se como preparar os Combonianos de outros continentes para a evangelização na Europa, admitindo que já não é suficiente designá-los para manter nas circunscrições europeias os modelos de presença herdados do passado [tal como já não é possível continuar a fazer o que os bispos europeus fizeram para garantir sacerdotes às comunidades do continente; ou seja, recorrer ao clero de outras Igrejas e continentes, a fim de manter vivo um modelo de ministério ordenado e de presença da Igreja que, segundo os observadores, deveria ser revisto porque insustentável]. A abertura, agora em curso, das províncias europeias à interculturalidade deve ser acompanhada de uma reflexão sobre a evangelização e o enraizamento dos institutos missionários nas Igrejas da Europa, de modo a identificar critérios e perfis para o destino a este continente de combonianos originários de outros (e evitar as dificuldades e fracassos que ocorreram em algumas tentativas feitas no passado recente).

Conclusão

Nestas páginas, tentámos traçar um caminho curto (... neste momento, já um pouco longo!), compreensível e aberto, que poderia ser útil para uma possível discussão sobre a questão proposta: o enraizamento, ou falta de enraizamento, dos institutos missionários nas Igrejas locais da Europa (num momento propício à reflexão, como é a preparação do 19º Capítulo Geral). Relendo o texto, percebo que poderia ser acusado de ser genérico, unilateral e/ou excessivamente negativo, e certamente também limitado no que diz respeito à situação dos outros institutos missionários, sobre os quais ainda não reunimos dados suficientes.

Existe, no entanto, nestas linhas, um elemento de provocação que visa encorajar a discussão. Não ignoramos as coisas belas da nossa história na Europa e certamente não queremos "apagar a chama que esmorece" ([35]). Queremos, em vez disso, reanimá-la, soprar sobre o fogo do carisma, escondido e enterrado sob as cinzas da nossa história recente e das quedas de neve que ameaçam sepultar o cristianismo europeu, entre crises e derrapagens de vários tipos.

Na celebração da festa do nosso Santo Fundador, alguém ([36]) nos lembrou que "a coisa mais necessária na vida da Igreja é manter o fogo vivo, não adorar as cinzas... É bonito sentir a paternidade de um cristão como Daniel Comboni, que tinha um coração ardente e não era de modo algum um prisioneiro de cinzas, que era capaz de acender profeticamente o fogo do Evangelho atravessando fronteiras, zonas de conforto, mal-entendidos, visões limitadoras, tornando concreta uma visão missionária inovadora. O que significa hoje celebrar a sua memória? Como nos colocamos hoje no caminho que ele inaugurou? A tentação de adorar as cinzas, de caminhar apenas pelas estradas já marcadas ou de abrir apenas as portas já abertas é uma tentação de todos os tempos, mais insidiosa do que pensamos. (...) Então perguntamo-nos: o que é permanecer na fidelidade? Certamente é a capacidade de acreditar no poder do fogo, especialmente quando parece impotente e frágil para vencer... As cinzas tendem apenas a imobilizar-nos numa imagem resignada e conformista. Pelo contrário, o Espírito, o Espírito que desce sobre nós, é dinamismo, é um apelo a ir mais além, é uma manifestação concreta do amor que Deus reserva para os esquecidos, para aqueles que tão frequentemente são descartados. O Espírito desce sobre nós para nos tornar corajosos frequentadores do futuro."

Manuel Augusto Lopes Ferreira, mccj

 

[1] Daniele Comboni, Escritos 6085, 6337, 6956, 7225.

[2] Anais do Bom Pastor 27, Janeiro de 1882.

[3] A situação nas outras províncias é a seguinte. Polónia: há 7 Combonianos polacos, com uma idade média de 41,85 anos. Os Combonianos presentes em Portugal têm 45 anos, com uma idade média de 68,6 anos, distribuídos da seguinte forma: 8 menores de 50 anos, 6 de 50 a 59, 10 de 60 a 69, 11 de 70 a 79, 8 de 80 a 89, 2 acima de 90 anos. Na província de língua alemã (Alemanha, Áustria, Tirol do Sul) há 45 Combonianos com uma idade média de 74,75 anos, distribuídos da seguinte forma: 20 acima de 80, 14 de 70 a 80, 6 de 60 a 70, 3 de 50 a 60, 2 abaixo de 50 anos. Na província Inglesa (London Province) há 22 Combonianos com uma idade média de 70 anos; os 12 missionários originários de outras províncias têm uma idade média de 65 anos, enquanto os 10 membros originais da LP têm uma idade média de 75 anos. Os Combonianos na província de Espanha são 43, com uma média de 66,67 anos de idade, distribuídos da seguinte forma: 5 acima de 80; 17 entre 70 e 79; 10 entre 60 e 69; 7, entre 50 e 59; 4 abaixo de 50. No que diz respeito à província italiana, é preciso lembrar que os Combonianos italianos, 511 no total na data em que escrevemos, metade dos quais a trabalhar noutras províncias, têm uma idade média mais jovem e são uma esperança para a província no momento da rotação, se não regressarem velhos.

[4] As expressões "modernidade sólida" e "modernidade líquida" são da autoria de Zigmunt Baumann (1925-2017).

[5] Irmão Enzo Biemmi, Evangelização no teste da secularização, Roma, Conferência de 19 de Outubro de 2020.

[6] João Paulo II, Homilia em Mogila, 9 de Junho de 1979.

[7] Instituído por Bento XVI a 21 de Setembro de 2010.

[8] Criado pelo Papa Francisco a 1 de Janeiro de 2017, unificando vários conselhos e gabinetes pontifícios existentes.

[9] Nigrizia, Dossier Cantiere Casa Comune, Outubro de 2020, pp. 41-55.

[10] Giovanni Zavatta, Casa Comune, il cantiere dei comboniani per una nuova missione, em Osservatore Romano, 28 de Outubro de 2020. E o site Comboni.org, post de 29 de Outubro de 2020. Nigrizia, pp. 43 e 46.

[11] Um trio de documentos dá substância a esta visão do Papa: Evangelii Gaudium, 24 de Novembro de 2013; Laudato Si', 24 de Maio de 2015; Fratelli Tutti, 3 de Outubro de 2020.

[12] Para aprofundar "o que não é e o que é" a missão, segundo Francisco, ver: Mensagem do Papa às Obras Missionárias Pontifícias, 21 de Maio de 2020; Sem Ele nada podemos fazer, para ser missionários hoje no mundo, texto de uma entrevista do jornalista Gianni Valente, publicada como volume pela Libreria Editrice Vaticana e Editrice San Paolo, Roma 2019.

[13] Massimo Franco, L'Enigma Bergoglio, la parabola di un papato, Solferino, Milão 2020.

[14] Irmão Enzo Biemmi, La Missione alla prova di due sfide: la secolarizzazione e la pandemia, Roma 19 de Outubro de 2020.

[15] Manuel João Pereira Correia, correspondência particular, Castel D’Azzano, 2020.

[16] Papa Francisco, Irmãos Todos, nº 226, Roma 2020.

[17] Ver, por exemplo, Umberto dell’Orto e Saverio Xeres, Manual de História da Igreja, Vol. 4, Época Contemporânea, p. 63. E Daniele Comboni e a Regeneração da África, por Fidel González Fernández, Roma, 2003.

[18] Papa Francisco, Evangelii Gaudium, números 20-24.

[19] Christoph Theobald SJ, Il Vangelo della nuova fratellanza, entrevista concedida a Lorenzo Fazzini, Avvenire de 27 de Abril de 2016.

[20] A obra de Propagação da Fé tem, na sua origem, uma mulher: Paulina Jericot (1799-1862). Daniele Comboni fundou um instituto missionário feminino, as Pias Madres da Nigrícia (1872), e levou mulheres missionárias para a África Central.

[21] Avery Dules, Modelli di Chiesa, página 50-51, Edições Mensageiro, Pádua, 2005. A edição original Models of the Church é de 1974.

[22] Avery Dules, Modelli di Chiesa, página 73 e 89.

[23] Editado por Fernando Zolli e Daniele Moschetti, Noi siamo missione: Testimoni di ministerialità sociale nella Famiglia Comboniana, publicado pela Comissão Ministerialità della Famiglia Comboniana, Roma, Junho de 2020.

[24] Nestes anos, os missionários combonianos reorganizaram o Arquivo Geral e o Studium Combonianum para inspirar a sua renovação na vida missionária do Fundador e na história do Instituto.

[25] Fidel González, The General Chapters of the Combonian Missionary Institute, Roma 1998, p. 425.

[26] Associação Comboniana ao Serviço dos Emigrantes e Refugiados, iniciada pelo P. Renato Bresciani em 1964. O Capítulo Geral de 1969, no qual o P. Renato esteve presente, tomou a decisão de um compromisso para com os migrantes e a data de 1969 permanece como a data oficial da fundação da ACSE.

[27] Comunidade Intercongregacional de Modica, organizada pela Conferência dos Institutos Missionários Italianos, em colaboração com a Cáritas, na diocese de Noto, Sicília, como resposta à emergência dos migrantes. A ideia, nascida após a Conferência CIMI 2013, em Trevi, tomou forma a 17 de Março de 2016, com a comunidade formada por um missionário africano (Padres Brancos), um missionário da Consolata e um missionário Xaveriano.

[28] J.J.V. da Cruz, Entre Fidelidade e Alienação: o Carisma Comboniano na História. In Arquivo Comboniano, 46, 2008, p. 111 e seguintes.

[29] David Glenday, Dialogando con San Daniele in tempo di crisi, Roma, 7 de Outubro de 2020.

[30] Antonio Maria Sicari, The Ancient Charisms in the Church. Per una Nuova collocazione, Jaca Book, Milão 2002, p. 7.

[31] Manuel João Pereira Correia, correspondência particular, Castel D’Azzano, 2020.

[32] Enzo Biemmi, Una nuova spiritualità: diviners and mystagogues, Roma, Outubro de 2020. O termo igreja “vedora” (como uma comunidade capaz de interceptar e responder à sede espiritual da época) foi cunhado por Christoph Theobald na brochura Fraternità, publicada por Edizioni Qqajon, da Comunidade de Bose, em 2016.

[33] Precedido por um simpósio exploratório, realizado em Julho de 2006, os Simpósios de Limone Sul Garda começaram em 2007, de 9 a 12 de Julho. O Gert reuniu a experiência dos simpósios nos Quaderni di Limone. Particularmente interessantes para a questão que estamos a tratar são: N.º 1, Comboni e Europa, Julho de 2007; N.º 5, A Missão Comboniana nas Igrejas da Europa, Que Estrutura de Governo?; e N.º 6, A Missão Comboniana na Europa, Que Ministérios?

[34] Charles André Bernard, La Spiritualità del Cuore di Cristo, Edizioni San Paolo, Milão 2015, p. 134.

[35] Isaías 42, 3 e Mateus 12, 20.

[36] Cardeal José Tolentino de Mendonça, Homilia na memória de São Daniele Comboni, Roma, 10 de Outubro de 2020.