Carta do Padre Feliz da Costa Martins, desde o Sudão: “O Rosto do meu pai”

Immagine

Quarta-feira, 11 de Março de 2020
O padre Feliz da Costa Martins, missionário português, escreve mais uma vez para nos contar como vai a sua missão na região sudanesa de El Obeid, terra amada de dois grandes santos: Daniel Comboni e Giuseppina Bakhita (na foto). Talvez por isso, o Bispo do padre Feliz, recordou-lhe bem à sua chegada à diocese: “Olha que aqui todos sabemos que és filho do gigante missionário Daniel Comboni. Por conseguinte, não só esperamos mas também exigimos de ti que sejas um missionário à altura desse grande santo que é considerado também o pai na fé para toda a Igreja do Sudão.”

O ROSTO DO MEU PAI

– Eh, passas por nós e nem dizes olá?! Parece que já não conheces os teus amigos do Darfur!- .

Apesar do sol poente que me cegava, levantei um pouco o boné e os meus olhos toparam com os três amigos. Era o P. Anthony – o novo pároco de Nyala – com a Margaret e o Gassim, representantes do conselho paroquial.

– Esquecer? Creiam-me, já há mais de um ano que deixei o Darfur mas o pensamento ainda me foge, até demais, para as bandas de lá.

– Demais? Pelo contrário, é bom sinal. As pessoas de Nyala também perguntam muito por ti e estão desejosos de uma visita da tua parte -, repostou a Margaret com entusiasmo lisonjeiro.

Os três amigos forasteiros tinham acabado de chegar a esta cidade de El Obeid para a reunião anual dos agentes pastorais da diocese. A sua presença foi, ao mesmo tempo, uma oportunidade para pormos a conversa em dia. Assim, fiquei contente em saber que o P. Anthony já teve ocasião de visitar as distantes e remotas zonas da paróquia, entre outras, Redom e Buram. Este era um dos objectivos que eu, aquando dos meus doze anos de missionário naquela região do Darfur me tinha proposto, mas nunca pudera, infelizmente, realizar. E, já agora, confesso uma outra grande pena, a de não ter realizado a tanto aspirada visita a Olgossa, a aldeia natal de Sta Bakhita. Uma povoação não muito longe, a tão somente 30 kms da nossa missão de Nyala. E pensar que não me foi possível chegar até lá… “Não se concedem guias de marcha a estrangeiros porque Darfur é zona de guerra”, foi a resposta que eu, sempre e invariavelmente, recebi da autoridade militar em serviço.

Por causa desta dificuldade de segurança e movimentação, os meus superiores acharam bem que mudasse para esta zona de El Obeid, onde me encontro actualmente. Foi nestes sítios que S. Daniel Comboni concentrou grande parte dos seus esforços e trabalhos. As suas pegadas são rastos que nunca se apagaram no meio desta população. A ele se junta Josefina Bakhita, a santa do Darfur. Estes dois santos são, na verdade, muito queridos e amados por todos os sudaneses, merecendo-lhes o título de padroeiros.

Actualmente, a actividade missionária nesta zona de El Obeid desenvolve-se com muito mais segurança do que na minha missão anterior, em Nyala. Talvez por isso, naquela tarde de Novembro, o nosso Bispo Tombe, à entrada da casa episcopal, não deixou de me pôr em estado de alerta, ao mesmo tempo que expressava um desejo com fineza e graça. ‘Vê lá bem, não seja isso uma desculpa para te acomodares e te sentares à sombra da bananeira, só porque agora não sentes o aguilhão da guerra e da perseguição como te acontecia no Darfur’. E continuou: olha que aqui todos sabemos que és filho do gigante missionário Daniel Comboni. Por conseguinte, não só esperamos mas também exigimos de ti que sejas um missionário à altura desse grande santo que é considerado também o pai na fé para toda a Igreja do Sudão.

As palavras do simpático Bispo tinham sido pronunciadas na presença de um conjunto de pessoas que, espontaneamente nos tínhamos reunido à sua volta. Naturalmente, aquelas foram testemunhas de primeira mão e me estimularam para que eu tomasse as ditas palavras com seriedade e não caíssem em saco roto.

Durante a visita aos doentes, um dos meus trabalhos pastorais de rotina, paro frequentemente em casa da Fauzia, uma senhora idosa que não sai de casa desde há vários anos. Mas, naquele dia, além das pessoas de casa, havia outras que eu não conhecia e que ela me apresentou, acrescentando ainda que haveria uma comunicação a fazer. De facto, no fim do encontro de oração, ao sinal dado pela matriarca, uma sua neta começou a contar o que o Sr. Bispo tinha dito alguns quinze dias atrás. E a jovem Miriam deu, realmente, provas de boa memória, ao narrar o já mencionado acima, àcerca do povo sudanês que esperava e exigia do Pe. Feliz que lhes mostrasse o verdadeiro rosto de seu pai Daniel Comboni.

Vimos a Sr. Fauzia, num esforço desmedido, a querer levantar-se do cadeirão, mas achou por bem acatar o nosso conselho de ficar sentada. Respirou fundo e falou: ‘depois de termos ouvido da boca da Miriam as palavras do nosso querido Bispo Tombe, quero dizer-te, amigo Pe. Feliz, que estes três meus parentes, pertencentes ao nosso clã de família alargada, vêm dar um matiz especial ao nosso encontro de hoje. Estando de passagem nesta cidade, manifestaram satisfazer uma curiosidade que trazem lá das suas terras, os Montes Nubanos (a mais de 200 kms de distância), onde ouviram frequentemente mencionar o nome de S. Daniel Comboni. Fico contente por isso, mas pensei convidá-los hoje aqui a minha casa porque, ninguém melhor do que tu, que és filho de Comboni, poderá ajudá-los no assunto em questão’.

Surgiu um intervalo natural e espontâneo, enquanto passava o bule do chá de hortelã pela dezena de pessoas que ocupávamos o pátio da casa. Depois, Fauzia tomou de novo a palavra e disse: ‘enquanto rezávamos, eles permaneceram calados; não é de maravilhar, pois não são cristãos. São muçulmanos, filhos e pais de boa gente, meus familiares. Eles não me falaram em conversão ao cristianismo e nem eu estou aqui a insinuar que o façam. Mas saber quem foi o teu pai e nosso pai na fé é um direito que lhes cabe. E eu não ficaria satisfeita se não anunciasse, a ti e a eles, no máximo respeito e liberdade, este meu convite. O grande missionário Comboni não é pessoa para ficar desconhecida e, muito menos, no nosso país. O nosso Bispo Tombe tinha toda a razão para dizer o que tão bem disse naquele dia… Palavras que a nossa jovem Miriam colheu e admiravelmente nos apresentou aqui nesta nossa reunião de oração’.

Agradeci à amiga Sra. Fauzia a confiança depositada em mim para a obra que me pedia. Sim, o nosso Bispo Tombe tinha falado muito bem. As suas palavras tinham sido pertinentes ao máximo. Estou-lhe imensamente reconhecido por ter refrescado em mim a identidade missionária.

Com alegria caminharei junto com os três familiares e membros do clã da Sra. Fauzia e com todos aqueles, não importa quem, se vão juntando a nós.

Caminhamos em direcção a Deus,
Percorrendo o caminho do amor e da misericórdia que herdámos do próprio Jesus Cristo.
Caminho que Comboni trilhou até ao fim com dedicação e alegria.
Caminho que me permite estar à altura de mostrar o rosto de meu pai,
Em todo o seu brilho e transparência.
Caminho que é uma vida inteira de entrega e serviço a par dos irmãos e irmãs.

Feliz da Costa Martins