Padre Leonel Claro, no Chade: «Nunca me arrependi de ser missionário»

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Segunda-feira, 12 de Junho de 2023
O padre Leonel Rodrigues Claro, missionário comboniano português, natural de Penude, Lamego, encontra-se no Chade. Partilha nesta entrevista a história da sua vocação missionária e o trabalho evangelizador, exigente e desafiante, que está a desenvolver neste país africano. [
Além-Mar]

Padre Leonel, como é que surgiu a tua vocação?

Sou natural de Penude, diocese de Lamego, e a minha vocação é uma história como tantas outras. O P. Lorenzo Turrini, um missionário comboniano italiano já falecido, passou na minha escola, penso que quando eu andava na 4.ª classe, e no fim ele perguntou quem gostaria de ser missionário. Eu não levantei a mão. No final perguntou à minha professora, uma santa, e se hoje eu sou missionário é sobretudo por causa dela, se havia mais alguém que ela via que podia ir para o seminário e ela deu também o meu nome sem eu saber.

Algum tempo depois, passei a receber um jornalinho de Viseu e depois o P. José Augusto do Vale passou por minha casa, o que foi uma surpresa para mim. Convidou-nos para um estágio no Verão, em Julho, no seminário. Em Setembro desse ano, entrei no seminário.

Naquela altura tinha dois sonhos: ser jogador de futebol ou ser cantor, nunca pensei ser padre, muito menos ser missionário. Mas lá fui para o seminário e gostei. A vocação desenvolveu-se ao longo dos anos. Pouco a pouco descobri a vocação missionária, que me cativou antes da vocação de ser padre. Tenho imagens da vida de São Daniel Comboni que ficaram sempre gravadas e que me atraíram. A aventura, o ir, o sair, o evangelizar, os lugares difíceis. No princípio começou pela aventura, mas depois foi a evangelização que, pouco a pouco, tomou o lugar da aventura humana e social. Até hoje ainda não me arrependi, apesar de todas as minhas falhas e dos meus pecados.

Fizeste todo o processo normal de formação para a vida religiosa e depois de uns anos em Portugal a tua primeira destinação além-fronteiras foi o Chade.

Sim, e também tem uma história. Até ao escolasticado eu não conhecia o Chade. O P. Alfredo Neres foi o nosso padre-mestre no noviciado e falou-nos muito da RD do Congo. Passaram também alguns missionários do Brasil, de Moçambique, da América Latina…

Quando acabei o noviciado fui fazer o escolasticado em Paris, de 1984 a 1988. Nessa altura, no Chade havia a guerra civil, Hissène Habré tomou o poder a Goukouni Oueddei, e havia também a guerra com a Líbia. E em Paris falava-se muito dessa guerra na comunicação social, porque os militares franceses tinham no Chade uma base de apoio na guerra contra a Líbia.

Os meus formadores, os padres Luciano Benetazzo e Franco Noventa, tinham estado no Chade e falavam do início e das necessidades da Igreja. Os primeiros cristãos são dos anos 1930. O que eles diziam acerca do Chade, o estilo de evangelização, a situação social, política, económica e religiosa, cativou-me. E foi por isso que, quando acabei a formação, pedi para ir para o Chade. Mandaram-me para Portugal e, uns anos depois, reafirmei a minha vontade. Cheguei ao Chade em 1994, com 32 anos.

O Chade é, ainda hoje, apesar da riqueza do petróleo, um dos países mais pobres e corruptos do mundo. Quanto à religião, predomina o Islamismo (57% da população), existindo uma minoria cristã concentrada no Sul do país (os católicos são uns 8% da população). Qual foi o primeiro impacto ao chegares ao Chade em 1994?

Tinha-me informado acerca do Chade, do grau de desenvolvimento, do modo como as pessoas viviam... Mas o que eu encontrei nunca imaginei. Era muito mais pobre e problemático do que aquilo que eu pensava, no domínio da pobreza, das condições de vida, higiene, saúde…

O país tinha saído de uma guerra civil, o presidente Idriss Déby tomou o poder em 1990. Quando cheguei, ainda havia grupos rebeldes, que ficaram sobretudo no Sul. Quando passávamos na estrada, ainda se viam grupos armados. Era um clima de insegurança, de guerra, tudo estava destruído. Lembro-me que em N’Djamena, a capital, só havia uma estrada alcatroada que atravessava a cidade. Vinha do aeroporto até ao centro da cidade, e era tudo. Os prédios que existiam estavam todos esburacados das balas das armas, dos canhões. Em 1994, mesmo na cidade, havia muitas cabanas cobertas de palha. Foi um choque terrível. E quando fui para o interior ainda mais. Não havia estradas de alcatrão, as escolas nas aldeias eram cabanas feitas de paus e palha. As pessoas não tinham electricidade, água corrente... Não havia nada. Hoje, felizmente, já temos algumas coisas, já houve algum desenvolvimento, embora não muito.

E no campo eclesial, como era a situação?

Encontrei uma Igreja muito mais viva do que eu imaginava. Um pequeno grupo de fiéis, mas muito vivo, onde já havia muitos leigos que se comprometiam na catequese, na liturgia, em justiça e paz, em acções sociais, na caridade… muita gente já empenhada nos ministérios eclesiais.

As paróquias na diocese eram muito extensas. A paróquia para onde eu fui em 1994 tem uma área três vezes maior que a diocese de Lamego. Éramos apenas dois padres e três irmãs. Eram mais de duzentas aldeias e tínhamos à volta de noventa comunidades onde havia cristãos, catequese, alguns catecúmenos, um lugar onde a comunidade se encontrava para a catequese e para rezar. Distâncias de 80 quilómetros do centro. Era uma pastoral muito diferente da nossa em Portugal. Digo muitas vezes que para mim foi um tempo de desconstrução a nível psicológico, mas também a nível físico porque no tempo que lá estive perdi 20 quilos. Também foi um tempo de desconstrução a nível espiritual, porque vinha de uma espiritualidade completamente diferente da daqui, da maneira como se celebra, como se reza, do relacionamento com Deus, com Jesus Cristo, mesmo com os outros cristãos.

Foi de desconstrução, e depois foi de ir construindo o meu mundo, diferente do mundo que tive de deixar. É a única maneira de resistir numa realidade como a nossa. Caso contrário acontece como a muitos, que chegam, ficam um, dois, três anos, ou fazem uma experiência de cinco ou seis anos, partem e não voltam mais. É muito difícil, não só aqui, também noutros lugares. Há pessoas que não são capazes de fazer esta desconstrução, de se adaptar, de deixar o seu mundo, a sua realidade, até os seus valores e adquirir outros valores, outra realidade, outra maneira de pensar, outra maneira de viver, até outra maneira de viver a fé.

O teu primeiro período de missão no Chade durou dez anos?

Sim, estive uma década no Chade e tive a sorte de ficar sempre no mesmo lugar, o que me permitiu fazer todo esse trabalho a nível pessoal e também um projecto pastoral com a paróquia, com os cristãos. Houve uma certa continuidade. Eu creio que é importante que fiquemos um tempo consistente, pelo menos cinco, seis anos, no lugar para onde fomos enviados. Primeiro para que, pessoalmente e psicologicamente, te concentres naquele lugar, caso contrário estás sempre com a cabeça noutros lugares. Houve alguém que me disse «não deixes o coração na missão, leva a missão no coração». Porque se deixas o coração na missão, lá onde estás agora, nunca conseguirás fazer nada porque nunca conseguirás amar as pessoas, o trabalho e o lugar onde estás. Creio que é muito importante trazer a missão no coração, mas o coração tem de estar sempre contigo porque hoje estás aqui e amanhã estás noutro lugar e és chamado a amar e a viver, fazendo um trabalho pastoral lá onde estás.

Depois dessa década no Chade, foste para Portugal trabalhar como animador vocacional juvenil. Após doze anos em Portugal, regressaste em 2016 ao teu primeiro amor: o Chade. Que diferenças encontraste no teu regresso?

Houve mudanças. Encontrei mais estradas alcatroadas, mais escolas, mais telefones fixos e telemóveis, muitas parabólicas para televisão.  No campo social, quando vim a primeira vez, uma ou outra pessoa podia ter uma bicicleta. Ter uma mota era mais difícil. Quando cheguei esta última vez, havia motas por todo o lado, mesmo nas aldeias.

No aspecto económico notou-se um certo desenvolvimento. Os salários dos funcionários aumentaram cinco, seis vezes mais. Nota-se que há algum dinheiro que circula, mas no âmbito das tradições, da cultura, da habitação ou dos serviços básicos, não houve grande evolução.

No âmbito escolar faltam professores e os que existem não são controlados e não comparecem muitas vezes. Na saúde acontece o mesmo. Temos grandes hospitais, mas o serviço é deficitário porque não há medicamentos ou são caros. No entanto, hoje já existem serviços de saúde que não requerem pagamento, os medicamentos para a sida e a tuberculose, por exemplo, são gratuitos. Nesse aspecto há uma certa evolução.

Essa evolução será, provavelmente, devido à exploração de petróleo, também em investimentos que vêm do exterior, da União Europeia, dos Estados Unidos… Mas é uma evolução por saltos, não é uma evolução contínua, estrutural. Nas aldeias encontramos pessoas que têm parabólica e televisão, mas falta-lhes dinheiro para medicamentos; por exemplo, fazerem o tratamento completo da malária. A falta de bases estruturais nota-se em tudo, no ensino, na saúde, na rede rodoviária. Se o Chade tivesse mais uns mil quilómetros de estradas alcatroadas, poderia desenvolver-se muito mais porque há lugares sem acesso, não há escoamento dos produtos agrícolas. As pessoas cultivam, mas não conseguem escoar o produto, e se escoam é a preços irrisórios. As pessoas nas aldeias não conseguem desenvolver-se, quem se desenvolve são os comerciantes e os intermediários.

Quando chegaste, foste trabalhar para a diocese de Laï e depois para a de Sarh, as duas localizadas no Sul do país, onde se concentra a maioria dos cristãos.

Sim, quando cheguei fui trabalhar para uma paróquia rural, Dono-Manga, na diocese de Laï, de Outubro de 2016 até Novembro de 2019. Depois, pediram-me para mudar de comunidade e vim para a cidade de Sarh para tomar conta de uma paróquia. Aceitei e agora estou na cidade, vivo na casa do postulantado, juntamente com outros dois colegas: um é formador dos jovens candidatos, outro é o animador vocacional.  Colaboramos uns com os outros.

Qual é a realidade eclesial da paróquia de São Kizito de Bégou?

Como é lógico, também nesta paróquia teve de haver, da minha parte, um trabalho de adaptação. Vinha de duas paróquias rurais e cheguei a uma citadina e pequenina. Podemos percorrer tudo a pé. Moïssala tinha sete mil quilómetros quadrados, Dono-Manga dois mil quilómetros quadrados. Em Bégou é tudo mais concentrado, a comunicação é mais fácil, até por causa das línguas. Mesmo que haja muitas línguas na paróquia é mais fácil de comunicar com o francês, por exemplo, ou uma língua local. Podes fazer uma programação mais a curto prazo. Também há muito mais pessoas comprometidas e empenhadas nos vários serviços eclesiais e paroquiais.

No entanto, também tem desvantagens. Não podes fazer uma formação prolongada em dois ou três dias como fazias nas paróquias rurais, onde as pessoas tinham mais disponibilidade, sobretudo quando havia pouco trabalho nos campos. Na cidade, a formação tem de ser uma tarde, no máximo um dia. A formação de catequistas é uma tarde por mês, por exemplo. A formação de responsáveis de comunidades eclesiais de base, uma vez por mês, mas é mais fácil. Se calhar é mais trabalhoso, mas cansamo-nos menos porque está mais centralizado. Aqui há um contacto mais forte e regular com as pessoas. Torna-se uma pastoral mais fácil, podes avançar, podes fazer uma pastoral que evolua mais rapidamente. Portanto, as mudanças podem ser mais rápidas, a comunicação também é mais rápida, a aquisição de conhecimentos também porque há a facilidade da língua. E há a facilidade por parte das pessoas de poderem participar mais. Há, efectivamente, mais participação dos católicos seja na missa diária ou dominical, seja nas iniciativas e acções de formação cristã.

Quais são os maiores desafios que encontras no serviço pastoral que estás a desenvolver na paróquia?

O nosso espaço paroquial é muito reduzido. Queremos alargar e encontrar espaço para termos estruturas de formação, de catequese. Um outro desafio é a auto-suficiência. No Chade, a Igreja não é auto-suficiente. Se não fossem os apoios exteriores seria muito difícil. Com a ajuda das ofertas dos cristãos, vamos conseguindo o mínimo para um funcionamento normal, mas se há uma despesa um pouco maior, como, por exemplo, reparar o tecto da igreja, já temos de pedir ajudas para o projecto. A auto-suficiência económica é um desafio, mas também a nível pessoal e humano. Ainda não temos um número de catequistas suficiente e bem preparados. Apesar de eu já ter dito que temos um bom número de pessoas empenhadas e comprometidas, não é suficiente. Estamos a tentar investir na formação de catequistas, animadores de comunidades, corais, leitores para os serviços litúrgicos, a nível de justiça e paz e a nível de acção social. Estamos a reformar a nossa Cáritas paroquial e diocesana para poder ir ao encontro de tantas pessoas que precisam de ajuda e têm muitas necessidades. Também nesta área, apesar do contributo local, precisamos sempre da ajuda exterior.

Não obstante, é uma Igreja jovem, viva e dinâmica?

A Igreja chadiana é, efectivamente, jovem, ainda não tem 100 anos. Como toda a juventude, por um lado, é dinâmica; por outro lado, faltam as estruturas básicas de um jovem, a formação, os meios económicos. A nossa Igreja é assim: é jovem, tem sangue na guelra, há muita gente comprometida, mas faltam muitas estruturas básicas para podermos avançar regularmente. E nós missionários temos muitos limites porque existem centenas de línguas. Na minha paróquia falam-se quatro grandes línguas, mas há muitas mais. Embora celebremos numa língua que é a língua oficial da paróquia e da diocese, mas na liturgia, nas conversas são muitas línguas utilizadas. Há o francês que une um bocadinho, quem sabe, mas há também um desafio nesse sentido, aprender uma ou duas línguas locais, o que é difícil, e depois alargar-se. Aqui no Chade podes alargar-te, investir num lado, investir noutro, fazer um trabalho de evangelização comunitário e eclesial bastante interessante, difícil, mas muito motivador.

Para terminar, uma mensagem para os nossos leitores da Além-Mar...

Sou feliz! Embora tenha os meus pecados e os meus limites, nunca me arrependi de ser missionário, de ser comboniano. Orem por mim, por todos os missionários, continuem a interessar-se e a colaborar com a missão e a ser discípulos missionários no dia-a-dia.

Ir. Bernardino Frutuoso, jornalista comboniano
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