Na Bíblia, a figura do pastor está muito presente não só como protagonista da narrativa, mas também como parábola e tipologia. Como Deus, o Senhor, é chamado e reconhecido como “Pastor de Israel” (Sl 80, 2), o seu povo é chamado de “seu rebanho” (cf. Sl 78, 52; 95, 7; 100, 3), ovelhas que são a sua propriedade. As diversas situações em que podem vir a ser encontrados o pastor e o rebanho, portanto, servem para descrever condições históricas concretas, como leitura das relações entre Deus e o seu povo. [...]

Uma porta aberta para a liberdade e a vida!

João 10,1-10
Em verdade, em verdade vos digo: Eu sou a porta das ovelhas...
Eu vim para que as minhas ovelhas tenham vida e a tenham em abundância.

Para onde é que vamos a partir daqui?

Estamos no quarto domingo de Páscoa, o chamado Domingo do Bom Pastor, a meio do período de 50 dias do tempo pascal. Depois dos três domingos das aparições do Ressuscitado, agora corremos o risco de perder de vista o fio condutor do nosso caminho. Penso que é útil recordar que estamos a caminhar para a Ascensão do Senhor e para o Pentecostes, o ponto culminante do caminho pascal. As leituras dominicais têm como objectivo preparar-nos para estas duas grandes festas. Fazem-no através de três temas, a partir de três escritos:

1. na primeira leitura, o tema da IGREJA, com a leitura do livro dos Actos dos Apóstolos: vamos refazer os primeiros passos da Igreja, guiados pelo Espírito Santo;
2. na segunda leitura, o tema da VIDA CRISTÃ, com a leitura da primeira carta de São Pedro: como viver como cristãos num mundo hostil;
3. no evangelho, uma grande catequese sobre a pessoa de JESUS, através de alguns textos do Evangelho de São João.

Procuremos não perder de vista a unidade e a harmonia das leituras que a liturgia nos oferece para estes domingos.

Em verdade, em verdade vos digo!

O evangelho de hoje começa com esta introdução de Jesus: "Em verdade, em verdade vos digo!"; ou melhor: "Amen, amen, eu vos digo". É uma afirmação que deve despertar a nossa atenção. É uma expressão que introduz uma revelação, à qual o crente responde com o seu assentimento: Amen!
Esta locução introduz as palavras de Jesus em 49 passagens dos Evangelhos sinópticos (Marcos, Mateus e Lucas) e em 25 passagens do Evangelho de João. 
Preparemo-nos para dizer o nosso AMEN com os nossos lábios e com o nosso coração!

Eu sou a porta!

"Em verdade, em verdade vos digo: Eu sou a porta das ovelhas". Depois das primeiras afirmações dos versículos 1-5, seria de esperar que Jesus dissesse: "Eu sou o pastor das ovelhas! e tudo teria ficado imediatamente claro. O tema de Deus como Pastor do seu povo está bem presente na Escritura (nos salmos e nos profetas: ver Jeremias 23,1-6; Ezequiel 34,1-31; Isaías 40,10). Assim, esperava-se que o Messias fosse o Grande Pastor. Em vez disso, no estilo enigmático típico do Evangelho de João, Jesus diz: "Eu sou a porta das ovelhas"! Só mais tarde é que diz: "Eu sou o bom pastor" (versículos 11-18). Perguntamo-nos porquê.

De facto, para seguir o Pastor, as "ovelhas" tiveram de ser libertadas dos currais que as mantinham em cativeiro! O primeiro cárcere em que fomos mantidos cativos foi o da morte. Cristo, com a sua morte e ressurreição, abriu as portas do mundo dos mortos e tornou-se a porta da vida. E Cristo quer assumir este papel de porta para proteger o seu rebanho, mas sobretudo para garantir a sua liberdade de movimento: "Se alguém entrar por mim, será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem". Ele vela pelo seu povo, para que as leis ou as instituições não transformem o seu "redil" num lugar de cativeiro ou numa residência de liberdade vigiada, pois ele veio para que tenhamos vida e a tenhamos em abundância. 

Podemos perguntar-nos como vivemos, na Igreja, a liberdade e o sentido de responsabilidade que Deus quer para os seus filhos. E se gerimos as nossas relações em liberdade, com a porta do coração aberta para acolher, sim, mas sem aprisionar ninguém.

O Senhor é o meu pastor!... A sério?

O salmo que responde à primeira leitura é o Salmo 22, talvez o mais conhecido e amado do Saltério (a colecção dos 150 salmos): "O Senhor é o meu pastor: nada me faltará". É uma boa ocasião para o rezar, saboreando-o. Mas podemos interrogar-nos também sobre a sua veracidade na nossa vida. 

Não nos acontecerá recitar uma paródia deste salmo com a nossa vida? Como aquele drogado de Harlem (Nova Iorque) que o escreveu na parede da sua cela:

A heroína é o meu pastor, ela sempre me faltará
Ela faz-me dormir debaixo das pontes e conduz-me a uma doce demência
Ela destrói a minha vida e conduz-me pelo caminho do inferno 
por amor do seu nome
Mesmo se eu caminhasse pelo vale da morte
Não temerei nenhum mal porque a heroína está comigo
A minha seringa e a minha agulha dão-me conforto” 

Por vezes, há "drogas" que nos mantêm acorrentados. E há muitos "ladrões e salteadores" que se dizem pastores. São muitas as sereias capazes de nos seduzir sem esperança, se não estivermos bem agarrados, como Ulisses, ao mastro da cruz!

Os pastores e o rebanho

As imagens do Evangelho de hoje, pastor e ovelhas, rebanho e redil, tão queridas pelos primeiros cristãos (basta ver as representações de Cristo Bom Pastor nas catacumbas), são hoje um pouco estranhas e desagradáveis para nós. E com certa razão, pelo uso que delas foi feito no passado, uma utilização massificante e instrumentalizante, por pastores sem "cheiro a ovelha" (Papa Francisco). Pastores bem longe de chamar cada um pelo nome, de caminhar à frente do seu rebanho, de estar dispostos a sacrificar a vida! 

Não estão longe os tempos em que se escrevia: "a Igreja, por sua natureza, é uma sociedade desigual, isto é, uma sociedade composta por duas categorias de pessoas: os pastores e o rebanho... Só no corpo pastoral residem o direito e a autoridade... a multidão tem apenas o dever de se deixar conduzir e de seguir os seus pastores como um rebanho dócil" (Pio X, Vehementer nos). Apesar dos esforços para mudar a mentalidade (dos pastores e do rebanho!), o clericalismo continua a resistir à mudança. 

Hoje, Dia Mundial de Oração pelas Vocações, somos convidados a rezar, mais assiduamente e com mais convicção, ao Senhor da messe para que nos dê pastores com os sentimentos de Cristo Bom Pastor!

P. Manuel João Pereira Correia, mccj
Castel d'Azzano (Verona)

Jesus, o pastor belo e bom
João 10,1-10

No tempo de Jesus, os pastores estavam presentes por toda a parte na Palestina e eram encontrados nos campos e nas cidades, nas planícies e nas montanhas. A figura do pastor era conhecida, e se conheciam os lugares nos quais, de dia ou de noite, ele estava com as ovelhas, que forneciam leite, carne e queijo.

Na Bíblia, a figura do pastor está muito presente não só como protagonista da narrativa, mas também como parábola e tipologia. Como Deus, o Senhor, é chamado e reconhecido como “Pastor de Israel” (Sl 80, 2), o seu povo é chamado de “seu rebanho” (cf. Sl 78, 52; 95, 7; 100, 3), ovelhas que são a sua propriedade. As diversas situações em que podem vir a ser encontrados o pastor e o rebanho, portanto, servem para descrever condições históricas concretas, como leitura das relações entre Deus e o seu povo.

Deus é o Pastor, mas, para que essa sua qualidade seja reconhecida pelos crentes, ele envia ao seu rebanho pastores, escolhidos “para que a comunidade do Senhor não seja um rebanho sem pastor” (Nm 27, 17). Mas esses pastores, às vezes, tornam-se infiéis à sua missão, tornam-se “maus pastores”; ao mesmo tempo, outros que não foram enviados por Deus “fazem-se pastores”, assumindo uma função de serviço voltada, na realidade, à busca dos próprios fins. Os profetas repetidamente denunciaram essas situações, nas quais o povo do Senhor geme e sofre, mas também anunciaram a vinda de Deus e do seu Messias como pastor das suas ovelhas (cf. Jr 23, 1-6; 31, 10; Ez 34, 1-31).

No quarto Evangelho, enquanto Jesus se encontra em Jerusalém para celebrar a festa da Dedicação do templo, é descrito um debate entre o próprio Jesus e alguns fariseus, depois da cura por parte dele no dia de sábado de um cego de nascença (cf. Jo 9). Graças à fé em Jesus, o cego passa a ver, enquanto os guias religiosos parecem cegos, incapazes de reconhecer nele a missão de Deus. Jesus, portanto, afirma ter vindo para abrir um processo que manifestará quem é cego e quem, ao invés disso, vê; quem permanece na incredulidade e quem, ao invés disso, chega à luz (cf. Jo 9, 40-41).

Mas isso constitui um êxodo, uma saída do sistema religioso judaico rumo à comunidade que adere a Jesus. A pretensão de Jesus é gritante e escandalosa, como nos é apresentada pelas expressões que a comunidade joanina forjou a partir das suas palavras e ações, contempladas, meditadas e interpretadas.

O discurso de Jesus é organizado em torno da formulação de uma paroimía (Jo 10, 6), ou seja, de um enigma construído por imagens (cf. Jo 10, 1-6), ao qual se segue a explicação que o resolve em mistério de fé (cf. Jo 10, 7-18) e, por fim, uma conclusão (cf. Jo 10, 19-21).

Eis, portanto, o enigma: “Em verdade, em verdade vos digo, quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante”. As solenes palavras de Jesus põem em relevo uma oposição: há aqueles que entram no redil das ovelhas não através da porta, que é vigiada, mas pulando a cerca. Estes são os ladrões e assaltantes: as ovelhas não pertencem a eles, mas eles querem se apossar delas. São ladrões porque roubam e são assaltantes que podem entrar no redil apenas com o engano; na realidade, são lobos (cf. At 20, 28-30), falsos pastores que não se importam com as necessidades das ovelhas, mas pensam apenas em si mesmos.

Ao contrário, “quem entra pela porta é o pastor das ovelhas”, e o guardião posto na entrada do redil o reconhece e abre para ele; então, “as ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo nome e as conduz para fora”.

Jesus é esse pastor, e o Pai é o guardião que abre para ele. De fato, é o Pai que lhe deu as ovelhas (cf. Jo 17, 6-8), que o enviou (cf. Jo 8, 16.42), que colocou todas elas nas suas mãos (cf. Jo 3, 35; 5, 22). Portanto, o Pai reconhece Jesus como pastor único do rebanho, e assim também fazem as ovelhas: elas reconhecem a sua voz, escutam-na e exultam, sentindo-se por ele chamadas, cada uma, com o próprio nome.

Jesus tem uma tarefa específica: chamando as ovelhas pelo nome, faz com que elas “saiam”, faz com que elas façam um êxodo do redil às pastagem abertas, à liberdade. Essa ação é mais do que o “fazer sair” de Moisés do Egito rumo à terra prometida, porque é um “fazer sair” da escravidão à liberdade, da morte à vida para sempre.

Nessas poucas palavras, é delineado todo o caminho do discípulo, ovelha do rebanho de Jesus: ele deve escutar a voz do pastor, deve reconhecê-la como palavra para si, deve, portanto, conhecer o pastor e, assim, segui-lo rumo às pastagens da liberdade, em vista a uma “vida em abundância”.

O pastor, depois, também se define como “porta”. O enigma, assim, é explicado mediante duas afirmações: “Eu sou a porta” (Jo 10, 7.9) e “Eu sou o bom pastor” (Jo 10, 11.14). Atenção: Jesus não diz que é a porta do redil, mas a porta das ovelhas! Ele não é uma porta que dá acesso a um recinto, a uma instituição, mas uma porta a serviço das ovelhas.

No Antigo Testamento, a imagem da porta é reveladora de uma passagem para o céu (cf. Gn 28, 17), de uma passagem para ter acesso à presença do Senhor, à sua Shekinah, ao templo (cf. Is 60, 11; Sl 118, 19-20); mas aqui é Jesus que se torna porta pequena e estreita (cf. Mt 7, 13-14; Lc 13, 24), única via de entrada e de saída a Deus, o Pai.

Tendo vindo a plenitude dos tempos, quando “se adora a Deus em Espírito e Verdade” (Jo 4, 23-24), Jesus é agora o único acesso a Deus, a única via para fazer parte do rebanho do Senhor: é uma porta aberta a um espaço sem limites.

Nos últimos discursos aos seus discípulos, ele dirá: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6), palavras que explicitam a afirmação: “Eu sou a porta”, que expressam e são o caminho que conduz ao conhecimento de Deus e, portanto, à vida para sempre (cf. Jo 17, 3).

Essas palavras de Jesus podem nos surpreender e até mesmo desestabilizar: como é possível que um homem tenha se vangloriado de tais pretensões? No entanto, João põe na boca de Jesus tais revelações porque assim quer a fé naquele que é o Filho de Deus, o Messias que veio ao mundo.

Eis, então, o pedido de discernimento sobre aqueles que vieram antes de Jesus, com a pretensão de serem pastores enviados por Deus: muitos já têm vindo, mas eram ladrões, assaltantes, estranhos “que vieram para roubar e sacrificar” (Jo 10, 10) como diz literalmente o texto (verbo thýo). Jesus certamente não deslegitima os “pastores” enviados por Deus – de Abraão até os profetas –, mas os falsos Messias, como Inácio de Antioquia já tinha bem entendido: “Cristo é a porta do Pai, através da qual entraram Abraão, Isaac, Jacó, os profetas, os apóstolos e a Igreja” (Ai filadelfesi, 9).

Em todos os tempos, aparecem no mundo e também na Igreja supostos “ungidos”, falsos enviados que Deus não mandou, homens e mulheres que imputam ao Senhor as suas elucubrações, mas são sempre reconhecíveis por aqueles que são crentes atentos em Jesus: não estão no meio do rebanho, mas acima; não conhecem as ovelhas pelo nome, mas só querem comandá-las; não protegem a ovelha fraca, mas a abandonam; não vão em busca da ovelha perdida, mas preferem estar com as outras dentro do redil.

Portanto, Jesus é a porta a se atravessar em liberdade para ir e vir, para ir rumo às pastagens do céu e voltar para o abrigo quando sobrevier a ameaça. É uma porta de salvação, que dá uma salvação não transitória, como a que, às vezes, os seres humanos se dão na história. Consequentemente, é também o pastor que deseja para as ovelhas uma coisa só: “a vida em abundância”. Por isso, faz com que elas saiam em liberdade, para caminhos de êxodo nos quais se abrem horizontes novos e se conhecem novas pastagens. Eis a liberdade dos filhos de Deus, na qual há também proteção, porque – diz Jesus – “ninguém pode roubar as minhas ovelhas da minha mão” (Jo 10, 28).

A outra explicação do enigma consiste na autorrevelação de Jesus como “pastor belo e bom”: “Eu sou o pastor belo e bom (kalós), que dá a própria vida por suas ovelhas” (Jo 10, 11). A manifestação da vinda “pastoral” de Jesus não consiste nas ideias, na doutrina, apenas no ensinamento, mas em dar e gastar a vida pelas ovelhas.

Se Deus era cantado no Salmo como Pastor do crente ao qual não falta nada (cf. Sl 23, 1), Jesus diz de si que ele mesmo dá a sua vida pelas ovelhas. E se nos Evangelhos sinóticos o pastor da parábola estava cheio de amor, até ir procurar a ovelha perdida para trazê-la novamente para casa (cf. Mt 18, 12-14; Lc 15, 4-7), aqui o pastor dá a sua vida tanto pela ovelha perdida, quanto por aquela que permanece no redil.

Assim, é identificada a relação entre o pastor e as ovelhas: um conhecimento recíproco que se torna amor, um conhecimento penetrante através do qual o pastor conhece as ovelhas em profundidade, na qual elas mesmas não chegam a se conhecer; e as ovelhas chegam a reconhecer o pastor como aquele que cuida delas porque as ama.

Experiência indizível, porém autêntica, na qual se escuta a voz do pastor, chega-se a discernir a sua presença fugaz, mas, sobretudo, sentimo-nos amados, compreendidos, perdoados por um amor que também é sempre misericórdia.

Mas, ao lado do bom pastor, aparece também “o pastor assalariado” (Jo 10, 12), que desempenha a sua tarefa e realiza o seu trabalho apenas pelo salário. Muitos eram os pastores desse tipo no tempo de Jesus, e muitos ainda o são hoje: não são maus, não fazem mal, não roubam o povo de Deus nem o maltratam, mas são meros funcionários! Se a Igreja fosse uma máquina, poderia até seguir em frente assim; mas a Igreja é o rebanho do Senhor, é uma realidade viva, um corpo no qual, se não existe o amor gratuito, ocorre uma triste desfiguração.

O pastor assalariado cumpre o seu ofício por aquilo que foi pago; por isso, se vê o lobo chegar, pensa em salvar a si mesmo, não as ovelhas (cf. Jo 10, 12-13). Mas Jesus não! A sua missão de pastor é motivada apenas pelo amor, e o Pai o ama justamente por isso: porque ele sabe dar a vida pelas ovelhas, para depois recebê-la novamente dele (cf. Jo 10, 14-15.17-18). A sua missão de dar e gastar a vida é dirigida a todos os seres humanos, até mesmo àqueles que pertencem a outros redis, não só ao de Israel.

Virá o dia em que até mesmo essas ovelhas provenientes dos gentios poderão escutar a voz de Cristo e, assim, tornar-se ovelhas do rebanho que é seu (cf. Jo 10, 16): dele, o único pastor da humanidade, de toda a criação.
Enzo Bianchi

Tradução de Moisés Sbardelotto
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