Tiros de festa e tiros de guerra no fim do mês de Ramadão, festa muçulmana “eid el fitre”

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Segunda-feira, 24 de Abril de 2023
O P. Feliz da Costa Martins, missionário comboniano português, está a trabalhar, desde há alguns meses, na paróquia de Helwuan, nos arredores da cidade do Cairo, no Egipto. Antes, estava no Sudão, país vizinho, onde desde há uma semana se combate ferozmente, sobretudo na cidade capital de Cartum. Hoje, conta-nos como viveu este fim-de-semana em plena festa muçulmana, eid el fitre, que assinala o fim do santo mês de Ramadão.

Quisera dormir, pois amanhã é domingo, dia de pica-boi, pelo menos para nós, padres. Mas há tiroteio forte aqui à minha volta, misturado com jogos de fogo-de-artifício. Uma coisa por demais. Todavia, não é coisa de guerra. É a festa muçulmana, eid el fitre, que começou hoje e se prolongará até, pelo menos, durante quatro dias.

Mas este ambiente de festa já se vem prolongando deste o início do santo mês de Ramadão. Tenho saído à rua a apreciar e ser parte da azáfama tão característica e propriamente necessária destes dias e/ou noites. A propósito, esta palavra portuguesa, azáfama, vem da língua árabe e tem o mesmo significado de balbúrdia e confusão. Aqui o Islão apresenta muito este aspecto. No Sudão tudo era muito mais calmo e mitigado. Talvez porque a vida lá é muito mais dura.

A nossa casa aqui em Helwuan, nos arredores do Cairo, está no centro do Mercado da cidade e a dois passos do metrô. Os claxons de todos os tipos de sons e a ar comprimido ribombam e repenicam aqui na minha janela, que tenho aberta por causa do calor tórrido. Tentei usar uns tampões de cera nos ouvidos, mas em vão. O mercado, está aberto até altas horas da noite, entrando livremente pela manhã adiante.

Quero ser sincero contigo, sinto-me bem em saber e poder respeitar, mesmo que me custe muito, pois amanhã tenho missa muito cedo e, hoje, nem a homilia posso preparar bem como desejaria. Mas conforta-me ao saber que Deus sabe da minha boa intenção. O resto, estou de consciência tranquila, conto com Ele que é quem tem que agir, já que me chamou para este tipo de vida, a vida missionária nesta fracção de humanidade, de que Ele e só Ele é o Senhor e dono.

Entretanto, chegam notícias do Sudão, da minha missão anterior. O país entrou em guerra porque dois generais militares com os seus exércitos se combatem mortalmente. Mas o povo é quem sofre e morre no fogo cruzado. Imagino os meus colegas de quem me tinha despedido há alguns meses atrás. Alguns deles, hoje, depois de uma semana de Paixão prolongada e fora do tempo, puderam sair do esconderijo da casa da missão e ir ao mercado. Pelo menos em Cartum têm uma casa com cave, enquanto a maioria do povo não tem sequer um qualquer buraco onde se refugiar dos eventuais bombardeamentos.

Vi na TV esta manhã que um dos grandes mercados que eu bem conhecia e frequentava foi brutalmente arrasado e incendiado. O resultado é fácil de imaginar: quase nada de alimentos expostos para a multidão que, às cotoveladas, procura escolher de entre a escassa possibilidade. E o que é pior, a televisão mostrava um dos vendedores que disparava tiros de pistola, tentando afugentar alguém que tentava roubar os legumes da sua bancada.

E os preços? Não se ouve gritar: “venha, freguês, tenho um bom desconto para si”. Isto eram coisas de antes de eu ter viajado para o Egipto, há meses atrás. Mas hoje não há descontos para ninguém. Pelo contrário. Os preços são de guerra.

Conheço bem os meus colegas que deixei no Sudão, imagino-os a tentar sorrir e gracejar, encorajando-se uns aos outros, dizendo que até que enfim puderam emagrecer, fazendo uma semana de regime, embora duro e forçado. Parece que estou a ouvir alguns deles em tom de oração: “El hamdu lilah!” Graças a Deus!

Caro amigo, obrigado pela tua oração pela missão do nosso vizinho país do Sudão nestas horas tão conturbados. A tua oração é preciosa também pela nossa missão aqui no Egipto e em qualquer outra parte do mundo.

A noite passou entre o dormir e o acordar, segundo a intensidade do barulho na rua. Mas Deus recordou-me que, embora cansado, vale sempre a pena rezar. E mandou o seu anjo, o muezin, que, a pleno pulmão, começou a cantar, chamando para a oração. Som que chegou a tudo e todos, abafando o ruído dos carros, o ruído dos vendedores e a azáfama na rua: “Allahu Akbar, Allahu Akbar”, Deus é o maior, Deus é o maior.  

Dirás, talvez, que esse não é o Deus da minha/nossa religião cristã. Mas, na verdade, Ele é o mesmo Deus, com outro nome: Allah. Deus sempre foi e será o mesmo para todos, em todos os tempos e lugares. Nós, os humanos, é que lhe damos outros nomes, segundo as linguagens e crenças. Porém, oxalá descubramos sempre n’Ele o que sempre foi, é e será para toda a humanidade: Amor. Quer que ouçamos tiros de guerra ou tiros de festa, Deus convida uns e outros, no Sudão, no Egipto e no mundo inteiro, através de Jesus Cristo Salvador, a voltarmo-nos para Ele e entrar no âmago da sua natureza. Deus é amor. Ontem, hoje e sempre.

Amigo que me lês, obrigado pela paciência de me teres acompanhado até aqui nesta minha vigília e noitada de Ramadão.

Para ti, continuação de um Bom e Santo tempo Pascal.

P. Feliz da Costa Martins
Helwuan, Cairo