Por vezes as dúvidas dos outros iluminam as nossas próprias dúvidas, aquelas que não conseguimos nomear. Esta pergunta que os judeus, interlocutores de Jesus nesta página do Evangelho de São João, fazem ao Senhor ajuda ou desperta-nos para fazermos também um caminho em torno às palavras de Jesus. Eles perguntam: Como é que Ele pode dar-nos a sua carne a comer?

Man hu? O que é?
João 6,51-58

Sessenta dias depois da Páscoa, na quinta-feira depois da Santíssima Trindade, a Igreja celebra a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, também chamada festa do Corpus Christi ou do Corpo de Deus. É uma das três quintas-feiras mais solenes do ano litúrgico: Quinta-feira Santa, Quinta-feira da Ascensão e Quinta-feira do Corpo de Deus. Por razões práticas, em muitos países, tanto o dia da Ascensão como o dia do Corpo de Deus são transferidos para o domingo a seguir à Santíssima Trindade.

As origens desta festa remontam ao século XIII, na Bélgica, mas recebeu um forte impulso com os milagres eucarísticos de Bolsena e Lanciano, na Itália. Esta solenidade parece quase uma duplicação da Quinta-feira Santa. E, de facto, de certa forma, é-o. Na Quinta-feira Santa, a Igreja não tinha podido exprimir toda a sua alegria e gratidão pelo dom supremo da Eucaristia, dado o contexto da paixão. Eis, portanto, a razão profunda desta festa de hoje.

RECORDA-TE!

A primeira palavra que soa aos nossos ouvidos nas leituras de hoje é RECORDA-TE: “Recorda-te de todo o caminho que o Senhor teu Deus te fez percorrer durante quarenta anos no deserto” (primeira leitura, Deuteronómio capítulo 8). É um convite muito oportuno e urgente para nós, mulheres e homens desta geração, inclinados a esquecer o passado, alienados no presente, desenraizados da história e, portanto, despreocupados com o futuro.

Esta tendência cultural ameaça também minar a identidade cristã. Nelson Mandela disse: “a memória é o tecido da identidade”. Um cristão e uma comunidade cristã que não cultivem a memória de Deus e das suas obras correm o risco de perder a sua identidade e de não conseguir compreender o presente. É por isso que Moisés, no Deuteronómio, insiste tanto no binómio escuta/lembrança (ver 6,4-10.12; 8,2.14.18).

O crente que não se lembra do Deus-libertador cai facilmente na escravidão, regressa ao Egipto e tem de fazer todo o caminho de novo! O cristão sem memória não tem o Espírito, porque a tarefa do Espírito é ensinar e recordar: “O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, ensinar-vos-á todas as coisas e recordar-vos-á tudo o que vos tenho dito” (João 14,26). O cristão sem memória é incapaz de uma verdadeira escuta da Bíblia, que é, de facto, a memória da história da aliança de Deus com o seu povo, das “mirabilia Dei”! Sem a memória afectiva do coração, não podemos celebrar a Eucaristia, o memorial por excelência: “Fazei isto em memória de mim” (1 Coríntios 11,23-26).

UM SÓ PÃO, UM SÓ CORPO!

A segunda leitura é para mim um grande conforto: “Visto que há um só pão, nós, embora sejamos muitos, formamos um só corpo, porque participamos do único pão“ (1 Coríntios 10,16-17).

Desde 13 de Outubro de 2020, devido à minha doença (ELA), não posso comungar o Corpo e o Sangue de Cristo. Tenho de confiar naquela “só palavra” antes da comunhão: “Senhor eu não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo”. Não sei que palavra o Senhor me diz, mas a ela me confio!

A minha condição levou-me a pensar muitas vezes nos cristãos que não podem receber a Sagrada Comunhão, sobretudo devido a problemas matrimoniais, muitas vezes sem solução. De certa forma, partilho a sua dor. Acho que a nossa atitude para com eles não é evangélica, tendo em conta que a comunhão não é uma recompensa para os “justos” ou para aqueles que são “dignos” dela, mas um remédio para os pecadores que todos somos.

Celebrar a Eucaristia todos os dias com os meus irmãos levou-me sobretudo a reflectir sobre a dimensão comunitária da Eucaristia: um só Pão para um só Corpo! Este corpo é a Igreja, é a comunidade. Cristo dá-se a todo o corpo. Os meus irmãos são o meu corpo que comunga, através deles, o Corpo de Cristo. Isto aplica-se a mim e a todos os cristãos que celebram a Eucaristia!

MANÁ, MAN HU? O QUE É?

O Maná que alimentou o povo de Israel no deserto é uma figura da Eucaristia, o Pão essencial para a nossa sobrevivência. Tradicionalmente, pensa-se que o vocabulário Maná provém de Man hu? ou seja: “O que é isto?”, quando os israelitas se interrogaram, surpreendidos, ao vê-lo descer do céu. Pois bem, Jesus diz-nos hoje: “Eu sou o pão vivo descido do Céu… Este é o pão que desceu do Céu; não é como aquele que os vossos pais comeram, e morreram; quem comer deste pão viverá eternamente“ (João 6,51-58). É ele o verdadeiro Maná. Os judeus que o ouviram ficaram escandalizados. Nós, infelizmente, não! Tomamos isto como um dado adquirido, mas até que ponto o levamos a sério? Os olhos do corpo vêem um pedacinho de pão, mas será que os olhos do coração, da fé, vêem outra coisa? Ou será que também estão cegos?

Exercício espiritual para a semana

1. Antes de comungares, olha com admiração para o Pão que tens na mão e pergunta a ti mesmo: Man hu? O que é isto? E o Senhor responder-te-á: É o meu corpo!

2) “Se olharmos ao nosso redor, damo-nos conta de que existem muitas ofertas de alimento que não derivam do Senhor e que aparentemente satisfazem em maior medida… Hoje, cada um de nós pode perguntar-se: e eu? Onde quero comer? De que mesa me desejo alimentar? Na mesa do Senhor? Ou então sonho em comer alimentos saborosos, mas na escravidão? Além disso, cada um de nós pode interrogar-se: qual é a minha memória? A do Senhor que me salva, ou a do alho e das cebolas da escravidão? Com que memória sacio a minha alma?” (Papa Francisco, 19 de Junho de 2014)

P. Manuel João, Comboniano
Cidade de Castel d’Azzano (Verona) – Junho de 2023

A Eucaristia é Jesus inteiro que se dá
a cada um de nós

João 6,51-58

Queridos irmãs e irmãos,
Por vezes as dúvidas dos outros iluminam as nossas próprias dúvidas, aquelas que não conseguimos nomear. Esta pergunta que os judeus, interlocutores de Jesus nesta página do Evangelho de São João, fazem ao Senhor ajuda ou desperta-nos para fazermos também um caminho em torno às palavras de Jesus. Eles perguntam: Como é que Ele pode dar-nos a sua carne a comer? E é, de facto, uma pergunta importante para nós que dominicalmente nos sentamos à volta desta mesa para nos alimentarmos do corpo e sangue do Senhor.

É importante que nós perguntemos: Mas como é que é isso? Como é que Ele pode dar-nos a sua carne a comer?

A resposta mais simples que nós cristãos temos para tudo é: é um mistério, é um mistério. Nós não sabemos como é, mas sabemos que acontece.

Ora, por vezes, o mistério é uma forma de adiarmos o mergulho mais fundo que temos que fazer. Por vezes, dizer é um mistério é a mesma coisa que dizer: não é para mim, não tenho de entender, é só uma coisa que eu tenho de aceitar, que eu tenho de consumir, sem perceber, sem compreender.

A mesa da eucaristia foi o grande sinal que Jesus deixou aos seus, o grande sinal. Jesus não deixou outro. O grande sinal é estarmos juntos à volta de uma mesa. Jesus quis que este sinal fosse compreensível, que nós o pudéssemos ler, o pudéssemos entender facilmente, desde os pequeninos até a uma idade adulta avançada.

Nós precisamos compreender o que se passa aqui em cima desta mesa e à volta desta mesa, porque só compreendendo é que nós podemos viver. É claro que a nossa fome de maravilhoso e de milagre prefere muitas vezes partir para mais longe e não olhar para o óbvio. Sem interrogar esse lado de mistério que a eucaristia também tem, claro, eu gostava que nós olhássemos para o óbvio, porque o óbvio também diz coisas fundamentais ao nosso coração e à nossa fé.

O que é que é o óbvio? É a resposta à pergunta que fazem a Jesus: Como é que um homem pode dar a sua carne a comer a outros? Como é que isso é possível?

Isso é possível se nós pensarmos nas nossas mesas, nas nossas refeições. Porque é que nos sentamos à mesa uns com os outros? Porque é que não comemos sozinhos? Eu tenho uma amiga querida que vive sozinha. Uma coisa que me faz sofrer é ela ter dito que comendo sozinha – ela tem dois gatinhos e vive em casa com essa companhia – não há refeição nenhuma que não se lembre que comer é gregário. Comer é gregário. Contudo, a maior parte das vezes, ela come sozinha. E tantos, na nossa sociedade, comem sozinhos. Mas nós sabemos, no fundo de nós, que comer é gregário, Isto é, que comer é um ato comunitário.

E porquê? Porque é que é tão saboroso comermos com a nossa família, com os nossos amigos, aproveitarmos a mesa para sabermos uns dos outros, o que é que tu andas a fazer, combinarmos à volta da mesa questões fundamentais da vida, ou então, as grandes celebrações, os pequenos e os grandes marcos da nossa vida? Porque é que é tão bom à volta da mesa?

É claro que há petiscos fantásticos, há uma cozinheira óptima, há um cozinheiro muito bom e então é muito agradável estar à mesa. Ora, mesmo quando o cozinheiro é genial, não é isso que nos faz sentar à volta de uma mesa. Porque mesmo quando a cozinha é um desastre, nós continuamos a sentarmo-nos à volta da mesa.

Isto quer dizer que o mais importante não é a cozinha, o mais importante é estarmos à volta da mesa.

E porque é que é importante estarmos à volta da mesa? Porque nos alimentamos do mesmo pão? Sem dúvida! Mas porque nos alimentamos uns dos outros. Nós sentamo-nos à volta da mesa, porque nos alimentamos uns dos outros, porque precisamos de interiorizar a presença uns dos outros, a palavra uns dos outros, o carinho, a presença, o afeto, a amizade, a inteligência, o humor. Precisamos alimentarmo-nos disso. E isso torna-se um verdadeiro alimento para nós.

Quando Jesus se sentava à volta da mesa, e sentou-se muitas vezes ao longo da vida, de uma forma deliberada e quando se sentou à volta da mesa a última vez com os seus discípulos e disse «Este pão é a minha carne, este vinho é o meu sangue que Eu vou entregar por vós», Jesus não estava a fazer uma coisa que não tem nada a ver nossa realidade.

Jesus estava a partir da nossa realidade, estava a usar a gramática que nos é mais próxima, a dizer: O que Eu fiz não foi senão viver para vós. Viver para vós, entregar, dar a minha vida é tornar-me alimento, é deixar-me ser, é colocar-me ao serviço.

Isso é fazer da Sua carne comida, isso é fazer da Sua carne alimento.

Nós estamos à volta da mesa para nos alimentarmos de Jesus. Hoje celebramos a festa da Eucaristia. A Eucaristia não é uma migalhinha de Jesus, um bocadinho de Jesus que é distribuído por cada um de nós. Não. A Eucaristia é Jesus inteiro que se dá a cada um de nós. Jesus inteiro. Nós temos de nos alimentar da sua palavra, da sua paixão, da sua revelação, do seu estilo de viver, da sua alegria, do seu entusiasmo, do que Ele nos deu a ver, das coisas únicas que só Ele nos deu a ver. Nós alimentamo-nos disso. Isso torna-se para nós força, torna-se energia, torna-se para nós capacidade de ser.

É por isso que nós não conseguimos viver sem eucaristia. É por isso que nós Igreja nascemos e renascemos sempre à volta desta mesa. Porquê? Porque Ele é o nosso alimento, porque Ele nos alimenta.

Alimenta-nos porque se faz dom. As palavras que Jesus diz: A minha carne é verdadeira comida.

Eu penso, e pergunto-me: e a nossa carne? Estarmos juntos dominicalmente para celebrarmos o dom que Jesus dá de si, a oferta, o transformar a vida em alimento, o transformar a vida em comida, o transformar a vida em dom que Jesus fez o que nos leva a nós a fazer? Será que a nossa vida é alimento? Será que a nossa vida é comida?

Porque não é automático, não é automático O nosso corpo será comida para bichinhos, um dia. Mas, de resto, nós podemos viver uma vida inteira sem que o nosso corpo seja alimento para ninguém. Nós podemos viver no egoísmo, na indiferença, no deixa-me em paz, numa zona de conforto que impermeabiliza a nossa vida. Não deixamos ninguém tocar, ninguém nos pede nada, ninguém nos conta nada, ninguém vem ao nosso encontro porque também nós vivemos dentro de uma cápsula, nós vivemos a guardar e resguardar, a proteger a nossa vida.

Quando nós fazemos isso a nossa vida não se torna comida para ninguém. É uma vida inteira óptima, fantástica, mas não é pão. Essa vida não é pão.

Quando Jesus diz “a minha carne é comida”, o grande desafio Dele é que eu torne a minha carne comida, que eu torne a minha vida oferta, que eu torne a minha vida dom.

Por isso, já os Padres da Igreja, os primeiros teólogos, diziam: «O cristão que celebra a eucaristia sai eucaristificado». Isto é, Jesus contagia-nos com o seu exemplo.

O que nós temos que fazer é celebrar a eucaristia na vida. Isto é, de dizer: Olha, eu sou pão para ti, usa, come, leva, reparte, alimenta-te, eu estou aqui, eu posso, eu vou.

É, no fundo, esta disponibilidade para servir que torna a nossa vida uma vida semelhante à de Jesus, semelhante à de Jesus.

Queridos irmãs e irmãos, à volta da mesa Jesus dá-nos a grande prova de amor, mas também a grande lição. A eucaristia é uma lição. Uma lição insistente que Jesus nos dá. Nós vimos aqui aprender com Jesus como se faz e todos precisamos de aprender como fazer dos meus dias, como fazer do que eu tenho, como fazer do que eu sei, como fazer do que eu sonho, do que eu desejo, como fazer da força que eu transporto comida, verdadeira comida. Como tornar a minha carne verdadeiro alimento. É, no fundo, esse o verdadeiro desafio que Jesus faz a cada um de nós.

Nós sabemos que o pão pode ficar duro no saco. O pão fica duro no saco. Se o pão não é colocado sobre a mesa e não é servido, ele endurece e perde-se.

E nós podemos perder a nossa vida. Podemos perder a nossa vida. Por isso, a palavra do Evangelho: quem quer ganhar a vida, tem que perdê-la, tem que se dar, tem que se entregar.

A grande lição de Jesus é essa: Entrega-te. Entrega-te. Torna-te alimento, faz-te pão. Oferece-te. Dá-te. Porque só assim é que nós percebemos a plenitude. A plenitude divina da nossa humaníssima vida.

José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org