Neste segundo domingo de Páscoa, celebramos… a “Páscoa de São Tomé”, o apóstolo que esteve ausente da comunidade apostólica no domingo passado! Os temas que o evangelho nos propõe são muitos: o Domingo (“o primeiro dia da semana”); a Paz do Ressuscitado e a alegria dos apóstolos; o “Pentecostes” e a Missão dos apóstolos (segundo o evangelho de João); o dom e a tarefa confiada aos apóstolos de perdoar os pecados (pelo que, desde há alguns anos, hoje se celebra o “Domingo da Divina Misericórdia”); o tema da comunidade (da qual Tomé esteve ausente!); mas sobretudo o tema da fé! Detenho-me apenas na figura de Tomé.

A Páscoa de Tomé

“Meu Senhor e meu Deus!”
João 20,19-31

Hoje, segundo domingo de Páscoa, celebramos… a “Páscoa de São Tomé”, o apóstolo que esteve ausente da comunidade apostólica no domingo passado! Os temas que o evangelho nos propõe são muitos: o Domingo (“o primeiro dia da semana”); a Paz do Ressuscitado e a alegria dos apóstolos; o “Pentecostes” e a Missão dos apóstolos (segundo o evangelho de João); o dom e a tarefa confiada aos apóstolos de perdoar os pecados (pelo que, desde há alguns anos, hoje se celebra o “Domingo da Divina Misericórdia”); o tema da comunidade (da qual Tomé esteve ausente!); mas sobretudo o tema da fé! Detenho-me apenas na figura de Tomé.

Tomé, o nosso gémeo

O seu nome significa “duplo” ou “gémeo”. Tomé tem um lugar de destaque entre os apóstolos; talvez por isso lhe tenham sido atribuídos os Actos e o Evangelho de Tomé, apócrifos do século IV, “importantes para o estudo das origens cristãs” (Bento XVI, 27.9.2006).

Gostaríamos de saber quem é o gémeo de Tomé. Poderia ser Natanael (Bartolomeu). De facto, esta última profissão de fé, feita por Tomé, corresponde à primeira, feita por Natanael, no início do evangelho de João (1,45-51). Além disso, o seu carácter e comportamento são muito semelhantes. Finalmente, os dois nomes aparecem relativamente próximos na lista dos Doze (ver Mateus 10,3; Actos 1,13; e também João 21,2).

Este anonimato permite afirmar que Tomé é “gémeo de cada um de nós” (Don Tonino Bello). Tomé conforta-nos nas nossas dúvidas de crentes. Nele nos espelhamos e, através dos seus olhos e das suas mãos, também nós “vemos” e “tocamos” o corpo do Ressuscitado. Uma interpretação que tem o seu encanto!…

Tomé, um “duplo”?

Na Bíblia, o par de gémeos mais famoso é o de Esaú e Jacob (Génesis 25,24-28), eternos antagonistas, expressão da dicotomia e da polaridade da condição humana. Será que Tomé (o “duplo”!) traz em si o antagonismo desta dualidade? Capaz, por vezes, de gestos de grande generosidade e coragem, outras vezes é incrédulo e teimoso. Mas, quando confrontado com o Mestre, emerge de novo a sua identidade profunda de crente que proclama a sua fé com prontidão e convicção.

Tomé traz dentro de si o seu “gémeo”. O Evangelho apócrifo de Tomé sublinha esta duplicidade: “Antes éreis um, mas passastes a ser dois” (n.º 11); “Jesus disse: Quando fizerdes dos dois um só, então sereis os filhos de Adão” (n.º 105). Tomé é a imagem de todos nós. Também nós trazemos dentro de nós um tal “gémeo”, inflexível e defensor acérrimo das suas próprias ideias, obstinado e caprichoso nas suas atitudes.

Estas duas realidades, naturezas ou “criaturas” (o velho e o novo Adão) convivem mal, em contraste, por vezes em guerra aberta, no nosso coração. Quem nunca experimentou o sofrimento desta laceração interior?

Ora, Tomé tem a coragem de enfrentar esta realidade. Deixa que o seu lado obscuro, adverso e incrédulo se manifeste, e leva-o a confrontar-se com Jesus. Aceita o desafio lançado pela sua interioridade “rebelde” que exige ver e tocar… Leva-a até Jesus e, perante a evidência, o “milagre” acontece. Os dois “Tomés” tornam-se um só e proclamam a mesma fé: “Meu Senhor e meu Deus!”

Infelizmente, não é isso que acontece connosco. As nossas comunidades cristãs são frequentadas quase exclusivamente por “gémeos bons” e submissos, mas também… passivos e amorfos! O facto é que não estão lá na sua “totalidade”. A parte enérgica, instintiva, própria do outro gémeo, a parte que precisaria de ser evangelizada, não aparece no “encontro” com Cristo.

Jesus disse que vinha buscar os pecadores, mas as nossas igrejas são frequentadas pelos “justos” que… não sentem necessidade de se converter! Aquele que se devia converter, o outro gémeo, o “pecador”, é deixado em casa. É domingo, ele aproveita para “descansar” e confia o dia ao “gémeo bom”. Na segunda-feira, então, o gémeo dos instintos e das paixões estará em plena forma para retomar o controlo.

Jesus à procura de Tomé

Quem dera que Jesus tivesse muitos Tomés! Na celebração dominical, é sobretudo a eles que o Senhor vem procurar… Serão os seus “gémeos”! Deus procura homens e mulheres “reais”, que se relacionem com ele tal como são: pecadores que “sofrem” na sua própria carne a tirania dos instintos. Crentes que não se envergonham de aparecer com este lado incrédulo e resistente à graça. Que não vêm para causar boa impressão na “assembleia dos crentes”, mas para se encontrarem com o Médico da Divina Misericórdia e serem curados. É destes que Jesus se faz irmão!

O mundo tem necessidade do testemunho de crentes honestos, capazes de reconhecer os seus erros, dúvidas e dificuldades e que não escondem a sua “duplicidade” atrás de uma fachada de “respeitabilidade” farisaica. A missão precisa verdadeiramente de discípulos que sejam pessoas autênticas e não “de pescoço torto”!… De missionários que olhem diretamente para a realidade do sofrimento e toquem com as suas mãos as feridas dos crucificados de hoje!…

Tomé convida-nos a reconciliar a nossa duplicidade para viver a Páscoa!
Palavra de Jesus, segundo o… Evangelho de Tomé (n.º 22.27): “Quando fizerdes com que dois sejam um, e fizerdes com que o interior seja como o exterior, e o exterior como o interior, e a parte de cima como a parte de baixo, e quando fizerdes com que homem e mulher sejam um (…) então entrareis no Reino!”

Para a reflexão semanal, proponho a leitura contínua da Primeira Carta de São João.

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, Abril de 2024

II Domingo de Páscoa
Domingo da Divina Misericórdia

Celebramos o segundo Domingo de Páscoa, também chamado da Divina Misericórdia. Segundo o relato do Evangelho de São João (20, 19-31) os discípulos ainda estavam com medo e na dúvida de tudo quanto estava a acontecer, relacionado com Jesus. De surpresa, Jesus aparece no meio deles e tranquiliza-os.

“Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, com medo das autoridades judaicas, veio Jesus, pôs-se no meio deles e disse-lhes: «A paz esteja convosco!» Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o peito. Os discípulos encheram-se de alegria por verem o Senhor. E Ele voltou a dizer-lhes: «A paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós.»

Perante isto, comenta a Newsletter da Paróquia de Freamunde: “Os discípulos de Jesus vivem numa situação de fragilidade e de debilidade; experimentam, como os outros homens e mulheres, o sofrimento, o desalento, a frustração, o desânimo; têm medo quando o mundo escolhe caminhos de guerra e de violência; sofrem quando são atingidos pela injustiça, pela opressão, pelo ódio do mundo; conhecem a perseguição, a incompreensão e a morte… Mas são sempre animados pela esperança, pois sabem que Jesus está presente, oferecendo-lhes a sua paz e apontando-lhes o horizonte da vida definitiva. O cristão é sempre animado pela esperança que brota da presença a seu lado de Cristo ressuscitado. Não devemos, nunca, esquecer esta realidade.”

PASSAGEM QUE É ABERTURA PERMANENTE
João 20, 19-31

José Tolentino Mendonça

Queridos irmãs e irmãos,
Um dos traços que caracteriza a relação de Jesus com aqueles que O procuram é, precisamente, Ele eliminar a distância, muitas vezes a distância vigiada pelas autoridades (distância sanitária, distância moral, distância religiosa), e tocar. Jesus não apenas curou os leprosos, Jesus incorreu no risco da pureza legal, e também da própria saúde, por tocar. Jesus não apenas sarava as feridas, mas reintroduzia na relação. E, por isso, o toque é tão importante no Evangelho e representa, de facto, o estilo de Jesus, que é trazer o outro plenamente à vida. Não é apenas resolver um problema ou uma doença ou uma patologia, mas é reintroduzir a pessoa numa relação, num diálogo de vida – a pessoa sentir-se tocada pelo amor, pela ternura, pela esperança que vem de Jesus.

Depois, nas aparições pascais, reaparece a questão do toque e é uma pergunta que nos é colocada. Tomé que duvida, mas perante a ressurreição quem não sente a dúvida? Quem não sente que tem de fazer um caminho? Quem não sente que não é uma coisa imediata mas é uma surpresa, mas é um espanto, mas é uma pedagogia que tem de acontecer na vida de cada um de nós? Tomé duvidou e disse: “Se eu não O tocar, se eu não meter o meu dedo no Seu lado, nas Suas feridas, não acreditarei.” E Jesus permite-lhe isso e diz : “Tomé, coloca o teu dedo.” Mas o Evangelho não nos diz se Tomé chegou a tocar ou não, porque ele como que interrompe esse movimento da sua mão dizendo: “Meu Senhor e meu Deus.”

E na relação com Maria Madalena nós temos um problema semelhante , porque quando Maria Madalena estende, no jardim do sepulcro, a sua mão para tocar em Jesus, Jesus diz-lhe: “Não Me toques.” “Noli me tangere”. E nós ficamos com esta palavra. Será que o Ressuscitado é aquele que se toca ou aquele que já não se toca? Será que o Cristo pascal, o Cristo da Ressurreição é o Cristo que já não se pode tocar? Quando Jesus diz a Madalena “Não Me toques” , ou quando Tomé, aparentemente sem tocar, sem necessitar de tocar já diz “Meu Senhor e meu Deus”, ou quando Jesus diz “Bem-aventurados os que acreditarem sem terem visto”, será que é uma fé que já não supõe a necessidade de tocar, a necessidade de tatear, a necessidade de ter uma prova concreta, uma prova empírica, aquelas que os nossos sentidos podem construir?

O filósofo Jean-Luc Nancy escreveu um belo livro, pequenino, um comentário fantástico sobre essa palavra de Jesus e sobre as aparições pascais, precisamente sobre isto, sobre o que é que significa não tocar Jesus, não tocar o Ressuscitado. Ele diz uma coisa interessante, que o não tocar é verdadeiramente compreender que o que nós somos chamados a tocar em Jesus é aquilo que passa. Por isso, o “Não Me toques” que Jesus diz a Maria Madalena, e que está aqui como questão de fundo no diálogo com Tomé, quer dizer “Não Me retenhas, não Me detenhas porque Eu sou passagem, porque Eu sou Páscoa. Eu sou Este que está aqui mas continua, Este que não Se deixa prender por nenhuma palavra, por nenhum gesto, Este que é vida em absoluto.” No fundo, a Páscoa, a fé pascal, pede de nós uma capacidade de acreditar Naquele que é vida, não naquele que se faz vida de uma forma representada concreta que eu posso deter, que eu posso tocar, que eu posso reter. O Ressuscitado introduz-nos no mistério da vida que é passagem, que é abertura permanente, que é Páscoa, que é Êxodo, que não é apenas daqui e dali mas que está, mas que é em toda a parte. E no fundo, o Ressuscitado inicia-nos naquilo que é o mistério do Amor, do verdadeiro Amor.

E no amor as pessoas tocam-se, na intimidade as pessoas tocam-se, mas o que é que tocam verdadeiramente? O verdadeiro toque do amor é aquele toque que não é para reter, não é para prender mas é tocar aquilo que cada um tem de intocado, o mistério de cada um. E no fundo, a fé Pascal o que é que nos abre? Abre-nos ao mistério de Jesus. Nós devemos ver Jesus na Sua realidade total, naquilo que Ele é.

Muitas vezes os homens e as mulheres viram o Jesus histórico, não O conseguiam compreender. Ele era apenas mais um profeta, era apenas mais um que pretendia ser o Messias, era mais um contador de parábolas, era mais um. Na Páscoa nós somos chamados a perceber Jesus como o único, somos chamados a compreender a Sua realidade total e isso pede de nós um salto, pede de nós uma capacidade de acreditar para poder ver. Normalmente nós vemos para acreditar, é essa a nossa metodologia no trabalho com a realidade. O Ressuscitado inaugura uma nova metodologia, nós temos de acreditar para poder ver, nós temos de não tocar para poder tocar, nós temos de não reter para poder verdadeiramente possuir, nós temos de aceitar o silêncio, a distância para poder verdadeiramente viver a intimidade e a relação, e isto é a nova relação, a nova relação pascal.

Mas, queridos irmãos, desta relação nós nascemos, nós nascemos. E por isso é tão maravilhoso o gesto que Jesus faz. Ele chega-Se ao interior do grupo e diz: “A paz esteja convosco.” E sopra sobre eles. Claramente este soprar é uma alusão à criação do Adão e da Eva quando Deus faz o Homem, amassa-o do barro e sopra nas Suas narinas para lhe dar vida. Jesus sopra o Espírito sobre nós também para nos vivificar, também para nos dar uma vida nova, para nos dar uma perspetiva nova, para nos dar uma compreensão nova da própria vida. E por isso nós nascemos da Páscoa. A Páscoa é o nosso berço, a Páscoa é o lugar onde cada um de nós reencontra o significado da própria vida mas também o método, mas também a maneira, a maneira de viver.

É muito belo aquilo que os Atos dos Apóstolos nos contam: “Das mãos dos discípulos saiam milagres e prodígios.” Iam todos juntos em consonância, em harmonia, numa capacidade de comunhão que causava espanto a todos.

Queridos irmãos, a Páscoa enche-nos de confiança. Das nossas mãos também saem milagres, das mãos de todos nós. As nossas mãos são instrumentos do milagre, instrumentos do prodígio. Nós precisamos confiar naquilo que o Ressuscitado faz das mãos de cada um de nós e saber que a melhor expressão da nova criação que a Páscoa começa é verdadeiramente a capacidade de viver a comunhão, a capacidade de vivermos uns com os outros, de criarmos história, de criarmos relação insuflados pelo Espírito novo. A Páscoa dá-nos o Espírito, a nós que tantas vezes vivemos desalmados como se nos faltasse a alma, o ânimo, o Espírito. A Páscoa é a grande relativização, o grande levantamento e por isso este é um tempo de confiança, queridos irmãs e irmãos. Tempo para viver na confiança, tempo para acreditar na vida, tempo para acreditar na potência de Deus em cada um de nós. Deus pode, Deus pode. Que na comunhão, na amizade, na solidariedade, no serviço, na reconstrução da vida, no cuidado uns pelos outros, na atenção aos mais frágeis, na celebração da esperança nós possamos reencontrar este Cristo que agora está, que agora é, plenamente, perto de nós.

Pe. José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org

Os dons do Ressuscitado: a paz, o Espírito, o perdão, a missão
P. Romeo Baldan, mccj

É significativa a cronologia que nos oferece o Evangelho de João sobre «aquele dia, o primeiro da semana» (v. 19), o dia mais importante da história. Porque naquele dia Cristo Ressuscitou. Aquele dia tinha iniciado com a ida de Maria Madalena ao sepulcro «logo de manhã ainda escuro» (Jo 20,1). No Evangelho de hoje, estamos na «tarde daquele dia… estando as portas fechadas… com medo dos judeus» (v. 19). A reconstituição de espaço e tempo, e também a psicológica, é completa. Iniciou enfim a história nova para a humanidade, no sinal de Cristo ressuscitado. Prescindir d’Ele seria uma perda de valores e um risco para a própria sobrevivência humana.

As portas fechadas e o medo são ultrapassados devido à presença de Jesus, o Vivente, que por bem três vezes anuncia: «A paz esteja convosco!» (v. 19.21.26), provocando a intensa alegria dos discípulos «ao ver o Senhor» (v. 20). Unidade de coração e de intenções, partilha dos bens, firme testemunho do Ressuscitado figuram entre as características mais evidentes da primeira comunidade cristã (I leitura): «Tudo entre eles era comum. Os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor com grande poder e gozavam todos de grande simpatia. Não havia entre eles qualquer necessitado» (v. 32-34). João (II leitura), por sua vez, exorta os fiéis a amar Deus e os filhos de Deus, com a certeza de que «esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé» (v. 4). Fé em Cristo Jesus, que veio «pela água e pelo sangue» (v. 6). A fé que conduz o cristão e o missionário ao encontro com Cristo ressuscitado, ajuda a ultrapassar também muitas dificuldades psicológicas, como angústias, medos, depressão…

Além da paz, há outros três dons importantes que Cristo ressuscitado (Evangelho) oferece à comunidade dos crentes: o Espírito, o perdão dos pecados e a missão. O fruto maior da Páscoa é sem dúvida o dom do Espírito Santo, que Jesus sopra sobre os discípulos: «Recebei o Espírito Santo» (v. 22). Ele é o Espírito da criação redimida e renovada, que Jesus derrama no momento da morte na cruz (Jo 19, 30), como prelúdio do Pentecostes (Actos 2ss).

Para João o dom do Espírito está essencialmente relacionado com o dom da paz e, portanto, com o perdão dos pecados, como disse Jesus: «Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados» (v. 23). A paz verdadeira tem as suas raízes na purificação dos corações, na reconciliação com Deus, com os irmãos e com toda a criação. Esta reconciliação é obra do Espírito, porque «Ele é a remissão de todos os pecados» (veja-se a oração sobre as ofertas, na Missa do sábado antes do Pentecostes, e a nova fórmula da absolvição sacramental). Para o evangelista Lucas «a conversão e o perdão dos pecados» são a mensagem que os discípulos deverão anunciar «a todas as gentes» (Lc 24, 47). Com razão, portanto, o sacramento da reconciliação é um inestimável presente pascal de Jesus: é o sacramento da alegria cristã (Bernardo Häring).

Os dons do Ressuscitado são para anunciar e partilhar com toda a família humana; por isso Jesus naquela tarde, anuncia uma missão universal, que Ele confia aos apóstolos e aos seus sucessores: «Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós» (v. 21). São palavras que vinculam para sempre a missão da Igreja com a vida da Trindade, porque o Filho é o missionário enviado pelo Pai para salvar o mundo, por meio do amor. «Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós», são palavras para ser lidas em paralelo com estas outras: «Assim como o Pai me amou, também Eu vos amei» (Jo 15, 9), estabelecendo uma ligação indivisível entre missão-amor, amor-missão. Com estas palavras permanece para sempre sancionado que a Missão universal nasce da Trindade (AG 1-6) e é dom-empenho pascal de Jesus ressuscitado.

Os dons do Ressuscitado: a paz, o Espírito, a reconciliação e a missão, são vividos por nós na fé. Apesar de não vermos o Senhor, somos felizes (v. 29) se acreditarmos n’Ele e O amarmos. Estamos, portanto, gratos a Tomé (v. 25), que quis pôr a mão na ferida do Coração de Cristo, que «cubiculum est Ecclesiae», é o aposento íntimo/secreto da Igreja (Santo Ambrósio). Aquele Coração é o santuário da Divina Misericórdia, título e tesouro que neste domingo é celebrado com crescente devoção popular. A misericórdia divina é, desde sempre, a mais vasta e consoladora revelação do mistério cristão: «A terra está cheia de miséria humana, mas repleta da misericórdia de Deus» (Santo Agostinho). Esta é a “boa-nova” permanente, que a Missão leva à humanidade inteira.

Meu Senhor e meu Deus!
Marcel Domergue

Novo nascimento

Seja no cântico de entrada, extraído do capítulo 2 da primeira carta de Pedro, seja na segunda leitura, tirada do capítulo 1 da mesma carta, o tema do nascimento ocupa o primeiro plano. Temos, pois, de levá-lo a sério, tanto mais que o encontramos em muitos outros textos de João e de Paulo (ver, por exemplo, a conversa de Jesus com Nicodemos, em João 3).

A Escritura nos sinaliza que a Páscoa de Cristo inaugura uma vida nova, um novo estatuto da condição humana. Toda a Bíblia representa a laboriosa gestação deste Homem Novo e definitivo. Como muitas vezes se tem notado, o Novo Testamento cita o versículo 7 do Salmo 2, «Tu és meu filho, eu hoje te gerei», não a propósito do nascimento de Jesus em Belém, mas a propósito da ressurreição (Hebreus 1,5; 5,5; Atos 13,33).

Paulo vai até mesmo escrever aos Romanos (1,2-4) que foi escolhido para anunciar o Evangelho de Deus «que diz respeito ao seu Filho, nascido da estirpe de Davi segundo a carne, estabelecido Filho de Deus com poder por sua ressurreição dos mortos, segundo o Espírito de santidade».

Com outras palavras, esta mudança de estatuto, que é fruto da ressurreição, encontra-se em Atos 2,36: «Deus o constituiu Senhor e Cristo, este Jesus a quem vós crucificastes.» A mesma coisa é dita em Atos 5,30-31. A ressurreição opera uma espécie de mudança de identidade e, no entanto, Jesus permanece sendo ele mesmo.

Renascer com o Cristo

Somos chamados a reviver este novo nascimento de Cristo. Nosso destino é o de nos tornarmos, nós também, filhos de Deus. Conforme se diz: n’Ele e por Ele. O batismo significa isto. Em Romanos 6,3-11, Paulo explica longamente que o batismo nos mergulhou na morte de Cristo para nos dar acesso a uma vida nova.

Temos, no fundo, a imagem de um retorno ao nada líquido do grande abismo primitivo (Gênesis 1,2), com vistas a uma nova criação. É claro, o batismo permanece como um rito, mas que, atualmente, dá sinais de fadiga. Por uma concepção um tanto mágica e materialista do famoso «caráter» por ele conferido, tendemos a ver neste sacramento somente um gesto, significando uma realidade imperceptível.

O batismo, no entanto, é mais do que um rito: 1 Pedro 3,21 fala de um «compromisso solene da boa consciência para com Deus pela ressurreição de Jesus Cristo». É um rito que ganha valor, portanto, por ser um ato de liberdade, até mesmo quando o compromisso é assumido pelos pais, em nome do batizado.

É o acesso a uma nova forma de existência, com certeza, mas esta passagem não se produz de uma vez por todas: o batismo é também um programa; temos a possibilidade de nascer para a vida nova ao longo de nossas escolhas. Não pelos esforços da nossa vontade, mas por uma confiança sem defeito naquele que nos liberta da morte seguidamente e que nos faz novos a cada instante.

O gêmeo

Confiança e fé! Temos aí, justamente, o que faltava a Tomé. Tem-se falado muitas vezes da dúvida deste apóstolo. Ora, não se trata de dúvida, mas de recusa à fé. Aliás, quanto a isto nós somos os seus irmãos «gêmeos», porque, para nós, a fé é muitas vezes difícil.

A aventura de Tomé pode nos reconfortar, porque nela podemos ver que o eclipse da fé não é forçosamente uma catástrofe e que o Cristo vem nos socorrer em nossa descrença. Ainda mais: os discípulos que anunciam a ressurreição de Jesus para Tomé contentam-se em chamá-lo de «Senhor».

Já Tomé, no final do relato, o chama de «meu Senhor e meu Deus». Os evangelhos não falam em «Deus», a propósito de Jesus. Eles o chamam de Filho do Homem, às vezes de Filho de Deus, mas nunca, a não ser aqui, de «Deus» simplesmente. Pela boca de Tomé, o discípulo que superou a sua descrença, o final do evangelho de João vai juntar as primeiras linhas nas quais, a respeito do Verbo, lemos que «Ele era Deus».

Da mesma forma que Zacarias, em Lucas 1,18, e que a «geração perversa e adúltera» que pede por um milagre, em Mateus 12,39, também Tomé exige ver para crer, e, no entanto, conforme diz Paulo, a fé vem pela audição, pelo acolhimento da palavra (Romanos 10,17).

É admirável que Cristo tenha se curvado à exigência do discípulo. Aliás, devemos observar, Tomé, o gêmeo universal, juntou-se então aos outros discípulos, que acreditaram porque tinham visto o Senhor (versículo 25). Daí podermos com isso nos tranquilizar e nos consolar, nas horas em que nossa fé se eclipsa.
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Ressuscitado e vivo para sempre
Enzo Bianchi

Estamos no último capítulo do Evangelho escrito pelo discípulo amado, onde nos é dado o testemunho da ressurreição de Jesus por parte de Maria Madalena, do próprio discípulo amado e dos outros discípulos, incluindo Tomé (o capítulo 21 foi adicionado pela comunidade do discípulo amado, tanto que os versículos 30-31 do capítulo 20 constituem a conclusão do Evangelho).

Sempre naquele “primeiro dia da semana”, o dia da ressurreição e, portanto, o dia do Senhor (Dominus, daí dies dominicus, domingo), à noite, os discípulos de Jesus ainda estão com medo, trancados em casa, apesar de Maria de Magdala ter lhes anunciado: “Vi o Senhor!” (Jo 20,18).

Onde estavam os discípulos? Em qual casa? Não nos é dito, mas o evangelista parece nos sugerir que, onde estão os discípulos, lá vem Jesus. Assim, o leitor compreende que, todos os primeiros dias da semana, no lugar em que ele se encontra com outros cristãos, lá vem Jesus ressuscitado e vivo.

Naquele dia da ressurreição, Jesus inaugurou outro modo de presença: ele está no meio dos seus não mais como antes, homem entre os homens, mas como Ressuscitado vivo para sempre. É sempre ele, Jesus, o filho de Maria, o enviado por Deus ao mundo, mas já não mais em uma carne mortal, mas sim em uma vida eterna no Espírito de Deus. Essa nova presença é mais forte e mais poderosa do que a presença física, porque vence todas as portas fechadas e todos os muros, e se torna credível, experimentada, vivida no marco de uma vida fraterna, de uma vida de comunhão: a Igreja.

Jesus, portanto, tendo vindo entre os seus na posição central (“pondo-se no meio deles”) de quem preside a assembleia, saúda os seus com a bênção messiânica: “A paz esteja convosco!”, e, ao entregar a paz, mostra-lhes seu corpo chagado, as mãos que trazem as marcas da crucificação (cf. Jo 19, 17) e o lado que recebera o golpe de lança (cf. Jo 19, 34).

Jesus está vivo, ressuscitou da morte, mas não deixa de ser o Crucificado: aquela morte, destino de todo ser humano, mas também a morte violenta dada a Jesus pela injustiça deste mundo, foi vivida e assumida por ele, faz parte da sua humanidade agora transfigurada em Deus, mas sempre presente, não apagada nem esquecida.

Sim, Jesus ressuscitado é vida eterna, divina, mas também vida humana transfigurada, de modo que agora não é mais possível pensar em Deus, dizer Deus sem pensar também no ser humano.

A essa percepção, os discípulos se alegram, realizando as palavras ditas a eles por Jesusantes da paixão: “Mais um pouco, e o mundo não me verá, mas vocês me verão, porque eu vivo, e também vocês viverão… Daqui a pouco vocês não me verão mais, porém, mais um pouco, e vocês me tornarão a ver… Quando vocês tornarem a me ver, vocês ficarão alegres, e essa alegria ninguém tirará de vocês” (Jo 14, 19; 16, 16.22).

Jesus, então, como Ressuscitado, sopra sobre aquela comunidade, alegre por crer nele, e os torna todos enviados, apóstolos. Enviados para quê? No quarto Evangelho, esses discípulos tornados apóstolos são enviados para dar às pessoas a possibilidade de experimentar a salvação na remissão dos pecados: perdoar os pecados, perdoar as dívidas, perdoar, esse é o mandato missionário. Nada mais, nada mais! Porque é disso que as pessoas precisam: o perdão, a remissão dos pecados, o apagamento dos pecados por parte de Deus e por parte dos seres humanos, seus irmãos.

A essa experiência da presença do Ressuscitado por parte dos discípulos, João acrescenta a experiência de um dos Doze: Tomé, aquele discípulo que dissera que queria ir a Jerusalém para morrer com Jesus (cf. Jo 11, 16), mas que, depois, na realidade, fugiu como todos os outros.

Tomé não quer crer, com base na palavra dos seus irmãos, na presença do Jesus ressuscitado e vivo, mas, oito dias depois, quando a comunidade está novamente reunida no primeiro dia da semana, ele está presente. E eis que, de novo, vem Jesus, está no meio e dá paz aos discípulos; depois, dirige-se a Tomé, mostrando-lhe as mãos furadas e o lado transpassado, os sinais da paixão em um corpo transfigurado. Tomé, então, não pode deixar de invocar: “Meu Senhor e meu Deus!”, pronunciando a confissão de fé mais alta de todo o quarto Evangelho.

Aquele Ressuscitado é Kýrios e Deus para a Igreja! É preciso crer nisso sem ter visto nada, mas acolhendo o anúncio da comunidade do Senhor e o dom de Deus que revela a verdadeira identidade do Jesus ressuscitado para sempre. Para Tomé, tocar o corpo de Jesus já se tornou inútil, e ele não o faz, porque a contemplação e o encontro com os sinais da paixão transfigurados lhe bastam.

Mas a operação mais difícil, tanto para Tomé quanto para nós, está precisamente no fato de ver nos corpos chagados o poder de uma transfiguração que faz das chagas cicatrizes luminosas e cheias de sentido: não mais sinal de morte ou de pecado, mas sinal de cura e de vida para sempre.
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