Terça-feira, 2 de setembro de 2025
Os olhos da irmã Elisabete Almendra (ou Beta, como é carinhosamente conhecida por todos – ao centro, na foto) podiam ser azuis cor do mar da Ericeira que a viu crescer, mas são castanhos cor do chão que todos os dias calcorreia no Sudão do Sul. Prenúncio já da sua vocação missionária? Não saberemos. (...)
O que sabemos é que tinham um brilho especial quando a encontrámos para esta entrevista, num dos lugares da sua infância e adolescência, a Praia dos Pescadores. E ali, onde tantas vezes imaginou um futuro em África, brilham ainda mais cada vez que fala desse sonho concretizado.
Dias antes de terminar as férias e regressar à sua missão na diocese de Wau, a irmã comboniana contou ao 7MARGENS como foi bem acolhida neste curto regresso a Portugal, recordou as peregrinações que fez a Fátima e a Roma, e não escondeu as saudades que já sente das “suas meninas” no Sudão do Sul. O brilho dos seus olhos desvaneceu-se quando revelou que a realidade, para essas meninas, é ainda bem diferente do que gostaria. Por serem vítimas de uma sociedade desigual e de uma Igreja clerical, onde os abusos de diferentes espécies são muitas vezes perpetrados e dificilmente denunciados. Mas esse brilho não desapareceu totalmente. Porque, na Ericeira ou em África, o que a move é “o amor de Jesus” e isso dá-lhe a certeza de que vale a pena esperar… e continuar a trabalhar.
7MARGENS – Como são as férias de uma missionária?
IRMÃ ELISABETE ALMENDRA – Boa pergunta! Não há propriamente um programa e cada uma tem liberdade para escolher o modo como mais gosta de descansar… Mas há duas coisas que temos mesmo de fazer quando vamos de férias: ir ao médico para fazer um check-up, e tirar um tempo para rezar e ganhar energias espirituais!
7M – Imagino que também reze durante o resto do ano… [risos] Refere-se a fazer um retiro, por exemplo?
Isso mesmo! E os meus retiros nestas férias foram muito interessantes. Porque, mal cheguei, alguns casais amigos – que sabem que eu sou um bocadinho hiperativa! [risos] – perguntaram-me logo se eu queria ir com eles a Roma, ao Jubileu das Famílias. E lá fui, e foi muito bom, porque nessa altura – ali no princípio de junho – a cidade ainda não estava cheia de gente, e deu realmente para rezar, para atravessar as Portas Santas, para estarmos juntos…
7M – Houve algum momento do Jubileu das Famílias que a tenha marcado particularmente?
Sim, o momento do encontro geral das famílias, na Basílica de São João Latrão. Gostei tanto de estar ali, naquele ambiente, com os casais e os seus filhos, que têm uma dinâmica muito própria e que eu não experimento muito… Porque sou freira, não é? É claro que estou com outras pessoas no meu dia a dia, mas normalmente estou mais com jovens, ou com crianças, e poucas vezes tinha estado assim com um grupo tão grande de famílias.
7M – E famílias de todo o mundo, mas sobretudo europeias, com uma dinâmica muito diferente das famílias que encontra no Sudão do Sul…
Exatamente… Uma realidade muito diferente daquela que se encontra na missão. E eu tinha acabado de chegar de África! No Sudão do Sul, não vemos os casais juntos: vemos sempre a mulher com os filhos, o marido com outros homens, e é raro ver um casal a abraçar-se ou a beijar-se, não vemos essas manifestações de carinho. Mesmo em relação aos filhos pequenos, as mães expressam o seu carinho, mas poucos são os pais que o fazem em público. Portanto, ver esta realidade, quando se está a chegar de África… Ficas a olhar e dizes: “Que bonito!”. Pode parecer uma coisa muito simples, mas quase que choca, de tão diferente que é. Lembro-me de que, a certa altura, tivemos um casal de voluntários italianos a trabalhar no hospital gerido pelas irmãs combonianas, em Wau. No fim do dia, eles iam para casa de mãos dadas, e as jovens com quem trabalho olhavam e comentavam: “Ai, quando eu casar, também quero que o meu marido me dê a mão…”. Isto mostra como as realidades são tão diferentes. E por isso participar no Jubileu das Famílias encheu-me o coração. Como também me encheu o coração o modo como fui acolhida aqui…
7M – O que é que sente, cada vez que regressa à Ericeira?
É maravilhoso chegar a esta terra, a este mar… Sou sempre tão bem acolhida! São as pessoas que vêm ter comigo, a dar-me beijinhos e abraços, a perguntar como estou… É o modo como me fazem sentir em casa, apesar de já não ter cá os meus pais, que já faleceram… Fazem tudo por mim, para que eu esteja bem e para que possa regressar à missão ainda melhor!
Por exemplo, houve uma família que fez questão de que eu ficasse na casa deles durante este período, depois houve outra família que insistiu para que eu fosse lá almoçar todos os dias… Na paróquia, um grupo desafiou-me para ir a Fátima a pé – o que foi outra oportunidade para carregar as energias espirituais. E ao mesmo tempo fizeram uma angariação de fundos para o Sudão do Sul, que resultou num total de dez mil euros… Entretanto, houve uma senhora que faleceu e a família dela convidou todas as pessoas que foram ao funeral a, em vez de gastarem o dinheiro em flores, oferecerem o mesmo dinheiro para a nossa missão no Sudão do Sul… E a maior parte das pessoas nem me conhecia, mas aderiu!
Por isso, a sério: estou convencida de que nestas férias a Ericeira toda contribuiu para ajudar o Sudão do Sul e a Ericeira toda está comigo! Por mais que a vila cresça e se encha de turistas e nómadas digitais, e eu chegue aqui e já não conheça toda a gente como antes, sou sempre bem acolhida.
7M – Já sabe em que é que vão aplicar o dinheiro angariado?
Sim, esse dinheiro irá diretamente para os projetos que temos na área da educação. Uma parte será para pagar propinas, para assegurar que as meninas que apoiamos possam continuar a estudar, e outra para a criação de uma nova escola, que vamos começar do zero.
7M – É um trabalho muito intenso, não é? Há quanto tempo não tinha férias?
Não tinha férias há quatro anos… Vim a Portugal há dois, mas não foram bem férias, porque vim para acompanhar um grupo de jovens do Sudão do Sul à Jornada Mundial da Juventude e regressei com elas logo depois. E sim, o trabalho que fazemos é muito intenso, nas escolas, nos hospitais… e não é fácil sermos substituídas. Mas pelo menos de quatro em quatro anos temos mesmo de parar.
7M – Como é que é o vosso dia a dia, em Wau?
Em Wau, somos uma comunidade de seis irmãs combonianas, com idades entre os 65 e os 32 anos (eu tenho 55), oriundas de diferentes países: Itália, México, Uganda, Zâmbia e Portugal.
Levantamo-nos quando o sol está a começar a nascer, por volta das cinco da manhã, fazemos as nossas orações, vamos à missa às 6h30, tomamos o pequeno-almoço por volta das 7h15, e depois começa tudo a correr. Elas vão todas para o hospital (são médicas, enfermeiras, gestoras..) e eu, que sou a única que trabalha na pastoral, ou vou para a Cúria ou para as escolas e paróquias. Às vezes, vou para paróquias mais distantes de Wau, e fico lá por uma ou duas semanas… ou mesmo um mês.
7M – As deslocações não são fáceis…
Pois! Quando me refiro a paróquias mais distantes, estou a falar de 250 quilómetros, o que não é assim tanto, mas como não há estradas são precisos dois dias para conseguirmos lá chegar. E isto fora da estação das chuvas, porque se for no tempo das chuvas – mais ou menos entre julho e novembro – é impossível chegar, fica tudo inundado. E também não há transportes públicos… termos de ir num jipe da diocese.
7M – Apesar de não ser um trabalho fácil, já está com saudades?
Muitas!
7M – Do que é que sente mais falta?
Das minhas meninas. São cerca de 100 raparigas que estamos a apoiar em diferentes escolas, desde o ensino secundário até à universidade. É um grupo que foi crescendo ao longo destes anos de missão e em que temos uma regra: todos os domingos, encontramo-nos, seja para um tempo de catequese, seja para outro tipo de formação, seja para cantar, dançar, ou jogar futebol! O importante é tê-las sempre ali, muito envolvidas, e poder passar-lhes os valores de que precisam para a vida delas. Digo-lhes muitas vezes: “a educação não pode esperar, o namorado sim”. Porque o mais comum é as raparigas tornarem-se mães muito cedo… aos 14, 15 anos ficam grávidas, e é aquela gravidez em que o rapaz foge, não quer saber delas nem dos filhos, elas ficam mães solteiras e depois continuar a estudar é muito, muito difícil… Eu quero muito que elas sejam mães, que possam ter muitos filhos se essa for a vontade delas, mas que estudem primeiro, que cheguem à universidade, se possível.
7M – Trabalha só com as raparigas?
Não só, mas sobretudo com raparigas, sim. E até há quem diga que eu sou injusta por isso! [risos] Eu costumo dizer que, quando as raparigas estiverem ao mesmo nível dos rapazes, então trabalho mais com todos. Mas neste momento, olhando para a realidade no Sudão do Sul, elas estão tão abaixo, mas tão abaixo, que realmente precisam de alguém que as puxe. Numa escola secundária, por exemplo, se começarem 100 rapazes e 100 raparigas, no final desse ciclo de estudos o normal será estarem 100 rapazes e 20 raparigas. Pelo caminho, umas saíram porque engravidaram, outras porque casaram, outras porque não há dinheiro na família e a prioridade é educar os rapazes. E por isso é que é tão importante a nossa presença, a presença da Igreja, o falar de Jesus, o ensinar valores como o amor, o respeito, a igualdade… e proporcionar-lhes que continuem a estudar.
7M – E na Igreja, o papel das mulheres tem evoluído positivamente?
O papel da mulher na Igreja vai evoluindo devagarinho, muito devagarinho. Temos uma Igreja completamente clerical, onde não pode haver grandes oposições ao clero, ao padre. E daí surgem os abusos de poder e os abusos sexuais. Há abusos, em geral, em toda esta sociedade, e também na Igreja. E perante esses abusos há uma cultura de silêncio, em que não se fala, porque o perpetrador é o pai, é o tio, é o ministro, é o bispo, é o padre…
Toda esta gente tem poder e contra esse poder não se pode falar. No fundo, vivemos numa ditadura em que as pessoas entendem que não se pode falar contra o Governo, como também não se pode falar contra o bispo ou contra a Igreja, caso contrário é-se posto de lado. E as raparigas e mulheres, em particular, são presas fáceis. Eu digo muito às minhas meninas que falem, que exprimam o que sentem, o que vivem, o que veem, e trabalho com elas no sentido de lhes dar ferramentas para se protegerem desses abusos. Mas a mudança acontece devagar, devagarinho…
7M – A vossa presença pode contribuir para essa mudança?
Sim, a nossa presença como religiosas é muito importante aqui, também nesse sentido. Com esta mistura entre europeias e africanas, vamo-nos ajudando umas às outras a construir uma Igreja muito mais de escuta, de diálogo, que o Sínodo [sobre a sinodalidade] também veio contribuir para mostrar.
7M – Houve algumas mudanças na sequência do Sínodo?
O Sínodo veio sobretudo alertar-nos para a ideia de que todos somos parte da Igreja e que temos de fazer diferente. Na diocese de Wau, conseguimos trabalhar um pouco no âmbito do Sínodo em todas as paróquias e um dos frutos desse trabalho foi a definição de quatro prioridades, que agora estamos a tentar concretizar: evangelização, educação, saúde e autossuficiência. Mas não se refletiu muito ainda na mudança de atitudes, isso não.
Também porque a Igreja no Sudão é uma Igreja que procura estar de pé, com os seus cristãos, mas que ainda depende de fora, de tantos benfeitores, de muita gente que nos ajuda a fazer alguma coisa. E daí também vem a autoridade dos bispos e padres, que não dão a possibilidade às mulheres, e concretamente às religiosas, de gerirem os seus projetos, porque não confiam muito… Quando os projetos são grandes, há muito dinheiro associado e esse dinheiro por vezes desaparece…
7M – Também na Igreja há corrupção?
Sim, houve já vários casos na diocese de Wau, por exemplo. O dinheiro é algo bom, não podemos viver sem ele, mas também traz muito mal consigo. E a ganância é terrível! Como não há grande transparência na gestão desse dinheiro, as oportunidades surgem e há quem o ponha ao bolso, sem grandes trabalhos.
7M – Mas como há a “cultura do silêncio” que referiu, é difícil denunciar…
Realmente é muito difícil, porque a cultura, a tradição manda calar, e cala muito bem as vozes de todos nós. Já houve quem tenha sido expulso de uma diocese por ter denunciado ao respetivo bispo os abusos que eram praticados por um padre. Essa pessoa escutou as vítimas, escreveu um relatório e apresentou-o, no sentido de pedir ajuda. Pôs-se ao lado dos mais vulneráveis, dos mais fracos, e a seguir foi mandada embora, enquanto o abusador permaneceu no seu cargo de poder.
É isto que nos confunde, que nos deixa tristes, mas que ao mesmo tempo nos mostra o porquê de estarmos aqui e o quanto temos ainda de trabalhar e testemunhar o amor que Jesus tem por todos. Esse amor também tem de se manifestar no fim desta cultura de silêncio, no podermos dizer aquilo que vivemos, pensamos e desejamos, e denunciar as injustiças quando as sofremos ou vemos, sem ter medo de sermos expulsos, postos de lado, ou que algum mal maior nos possa acontecer.
7M – Apesar de tudo, sente que a vossa presença faz realmente a diferença?
Completamente. Porque ali a maior parte das pessoas tenta sobreviver no meio de uma enorme pobreza, e por isso acaba por não poder olhar mais além do que o seu próprio umbigo e fazer algo pelos outros. Fazemos realmente a diferença na vida de muitas pessoas, que não teriam acesso à educação ou a cuidados de saúde se não estivéssemos ali, até porque as escolas e hospitais públicos foram deixando de funcionar. E sinto que as pessoas reconhecem isso e nos respeitam muito por isso.
7M – Como é que soube que era esta a sua vocação?
Tenho pensado sobre isso e falado nisso aos jovens. A minha vocação nasceu ao ver imagens mais ou menos como as que agora nos chegam de Gaza, mas que na altura chegavam da Etiópia. Via aquelas crianças esqueléticas, a morrer à fome – embora por outro motivo – e só pensava: “Meu Deus, o que é que eu vou fazer? O que é que eu posso fazer por estas crianças?”. Foi na altura em que lançaram o tema We are the world, eu devia ter uns 16 anos. Estava muito envolvida na paróquia, era catequista, andava no grupo de jovens, e falei com o pároco da altura, o padre David Mendes, que está agora a celebrar 65 anos de sacerdócio. E ele foi muito importante no amadurecimento dessa vocação. Percebeu que eu tinha aquela urgência de salvar o mundo, mas sempre com muita paciência foi-me aconselhando, sugeriu que eu conversasse com os missionários que no verão iam à paróquia, e que conhecesse melhor as irmãs Servas de Nossa Senhora de Fátima, que eram vizinhas da paróquia. E com elas também estabeleci uma relação muito bonita… Ao perceberem que eu queria ir para África, diziam: “Mas nós também somos missionárias!”. Só que era um tipo de missão diferente… e eu queria realmente deixar tudo e partir para África.
7M – E como é que descobriu os missionários combonianos?
Através de uma revista que ainda hoje existe: a Audácia! Estava a preparar um encontro do grupo de jovens, em que iria falar sobre as drogas, e houve uma amiga que assinava a revista e que me emprestou um número que falava sobre esse tema. Comecei a ler e percebi que também falava dos missionários, do trabalho que eles desenvolviam em África, e pensei: “Uau! É isto! É isto!”. Então, decidi escrever-lhes a dizer que queria ser missionária, que queria ir para a Etiópia, e a perguntar o que é que tinha de fazer. Responderam-me, fui ter com as irmãs a Lisboa, e depois foi uma caminhada de anos. Elas disseram-me: “Beta, tu estuda, tem calma… primeiro estuda”. E eu lá fui para a faculdade, e tirei o bacharelato em Contabilidade e Administração, contente por serem só três anos e não quatro, como as licenciaturas na altura. [Risos] O que eu queria mesmo era ir para África!
7M – E agora, continuam a surgir vocações? A congregação tem-se renovado?
Da Europa, não. Tal como na generalidade das outras congregações, temos recebido muito poucas vocações da Europa. Mas há muitas de África, particularmente do Uganda, do Congo…
7M – Porque acha que é assim?
A verdade é que em África o sentido religioso está muito mais vivo, mais ativo… é muito mais forte na maioria das pessoas. Por exemplo, no Sudão do Sul seria impensável começarmos uma entrevista destas sem primeiro fazermos ambas o sinal da cruz, ou iniciar uma refeição sem rezar primeiro! Talvez isso se deva, em parte, às adversidades que enfrentam. Morre muita gente, as crianças morrem com muita facilidade… As mães sofrem, choram, mas depois seguem em frente, continuam a sua vida, porque “foi vontade de Deus”. Não vejo ninguém a entregar-se ao desespero por causa da morte de um filho, ou de um marido… Sabem que Deus está com eles e não têm vergonha de trazer este Deus para o seu dia a dia, e isso também é uma coisa muito bonita. Essa é uma das coisas que a mim me dá força e entusiasmo quando estou em África. Aqui não, aqui por vezes até temos medo de fazer o sinal da cruz ou dizer uma palavra a mais para não chocar a sensibilidade dos outros. A nossa fé aqui é vivida de um modo muito mais individual, lá a fé é vivida coletivamente.
7M – E as missas são bastante mais participadas e alegres…
Sim, para fazer festa, para cantar, para dançar, eles estão ali. As missas de domingo duram sempre mais ou menos duas horas e são grandes festas. E os funerais, se forem de pessoas idosas, também são festa! Põem os tambores ao meio e dançamos à volta dos tambores… Se for uma pessoa jovem, há ali mais sofrimento… mas também há tambores. Os tambores estão sempre lá. Eles celebram com facilidade, também porque, lá está, têm consciência de que a vida é efémera, de que naquele momento estão ali e no seguinte podem deixar de estar. Eles sabem disso e acho que por isso lhe dão mais valor. E também ninguém está muito agarrado às coisas materiais, porque não as têm.
7M – Não chegou a ir para a Etiópia, pois não? Ainda tem esse sonho?
Não fui… só pus os pés na Etiópia quando vínhamos para a JMJ! E sim, gostava de poder trabalhar lá, mas gosto muito do Sudão do Sul. Um país muito difícil, entre o clima, a pobreza, a guerra, as pessoas muito traumatizadas pela guerra…
7M – E agora a enfrentar um período particularmente complicado, com eleições à porta…
Pois, as eleições foram adiadas para 2026, mas não sei se vão conseguir ir para eleições sem entrar em guerra. Porque viveram anos e anos em guerra e parece que essa é a única coisa que sabem fazer bem, o que é uma pena… Vê-se tudo destruído por causa da guerra. Mas, ao mesmo tempo, também se vê a presença de uma Igreja que passou por ali, e vê-se muito a presença das irmãs combonianas. É um país de [Daniel] Comboni, o nosso fundador, que foi da Europa para lá e ali trabalhou tantos anos. As nossas primeiras irmãs viveram lá e morreram lá. Acho que estou na “terra santa” das irmãs combonianas e estou bem.
7M – Não sente medo ou insegurança? Segundo dados recentes da ONU, trata-se do segundo país mais perigoso do mundo para os trabalhadores humanitários, com muitas mortes e sequestros…
Não tenho medo, também porque sinto que a Igreja Católica ainda é muito respeitada. Mas, quando saio, procuro ir sempre bem identificada… Ou seja, uso o véu, e os padres andam sempre com cabeção. Caso contrário, é perigoso, sim, sobretudo para os “brancos”, porque associam-nos logo à Europa e ao dinheiro, então muitas vezes começam por abordar para pedir dinheiro e, depois, se a pessoa não dá, podem sequestrá-la, dar um tiro… Mas se perceberem que somos da Igreja, nada acontece, deixam-nos passar… Nunca tive nenhum problema.
7M – Antes de terminar as férias e regressar ao Sudão do Sul, ainda teve um último momento de “retiro”, porque também foi ao Jubileu dos Jovens. Veio de lá com as energias espirituais completamente carregadas?
Fisicamente, foi cansativo, claro, porque fomos de autocarro até Roma, mas também foi muito bonito, pelo percurso que fizemos até lá, passando por Barcelona, onde celebrámos missa na Basílica da Sagrada Família, e regressando por Lourdes. Depois, em Roma, não havia um programa muito estruturado como na JMJ, tirando os dois últimos dias, com a vigília e a missa de envio em Tor Vergata. Penso que, por não haver essa programação, a parte espiritual pode ter-se perdido um pouco… e foi mais turismo: passar as Portas Santas e depois ver isto, ver aquilo…
Mas houve uma coisa muito importante, que é a experiência da comunhão, da Igreja Universal. E isso é particularmente importante para estes jovens, porque muitos deles já não estão habituados a estarem juntos, a terem de decidir coisas juntos, a fazerem alguns sacrifícios, e isto acaba por ser uma lição de vida para eles. Porque no fim todos adoraram. E fizemos isto porquê? Porque somos Igreja. E somos Igreja por causa de Jesus. E realmente é bom ser cristão… Acho que todos sentiram isso.
7M – E o Papa Leão, correspondeu às expetativas?
O Papa Leão, logo no primeiro dia, fez-nos uma boa surpresa! No final da missa de abertura, que não foi presidida por ele e em que não estava prevista a presença dele, foi ao nosso encontro. Foi uma alegria enorme vê-lo ali a passar à nossa frente, no papamóvel, e acho que com esse gesto ele tinha a intenção de nos dizer: “Quero estar convosco! Obrigado por estarem aqui!”.
Depois, achei muito importante as mensagens que tentou passar em Tor Vergata. Percebe-se que ele está muito preocupado com a inteligência artificial e com tudo o que daí advém. Não foi a primeira vez que o ouvi falar sobre isto e ali insistiu que não há algoritmos, não há nada que possa substituir um abraço, uma palavra amiga.
E ainda bem que ele foi por aí, porque o mundo está como está, temos guerras por todo o lado, e estamos definitivamente a precisar de contactar mais uns com os outros para que o mundo seja melhor. Os jovens, que são todos das tecnologias e das redes sociais, precisam de entender e sentir isso. É muito bom termos as tecnologias e as redes sociais, sim, mas depois é importante estarmos juntos. E aí a noite da vigília – que acontece sempre nas JMJ e também aconteceu neste Jubileu dos Jovens – é um exemplo extraordinário: um milhão de jovens no mesmo lugar, em silêncio, com o Santíssimo exposto… arrepia. Porque é o silêncio de um milhão, um milhão em profunda adoração, em profunda relação com Jesus. E isto vale muito.
7M – E houve mais algum momento particularmente especial neste Jubileu?
Sim, e completamente inesperado… (Normalmente são os melhores, não é?) Foi no dia em que o grupo da nossa paróquia tinha planeado visitar a Basílica de São Pedro, mas quando lá chegámos percebemos que estava fechada por causa do encontro dos peregrinos espanhóis, que ia ser ali mesmo, na Praça de São Pedro. Como já era sexta-feira, e provavelmente não teríamos outra oportunidade de lá ir, decidimos esperar, pensando que acabaria por abrir, mas nada. O padre Tiago [pároco da Ericeira, que acompanhava o grupo] ainda fez várias tentativas para que nos deixassem entrar, sem sucesso. Até que, já eram quatro da tarde, e ele se lembrou de enviar mensagem ao cardeal Tolentino Mendonça, que foi professor dele, para ver se nos ajudava. O Tolentino respondeu pouco depois a dizer que em relação à basílica não havia nada a fazer, mas convidou-nos a ir à missa que ele iria celebrar ali perto, dentro de poucos minutos, na igreja de São Lourenço, que é onde está a cruz das Jornadas. É claro que o grupo, que estava superdesanimado por ter esperado tantas horas para nada, disse logo que sim. Fomos a correr, primeiro entrámos na igreja errada, mas depois lá conseguimos descobrir a certa, e chegámos estava a missa mesmo a começar. E foi bom, muito bom.
Na homilia, o Tolentino disse que o Jubileu da Esperança é um ano para não fazer nada, para deixar que Deus seja Deus, esperar tudo de Deus… o que é difícil para uma pessoa hiperativa como eu: deixar que Deus resolva as coisas. E realmente eu precisava daquela mensagem. E o próprio grupo também, porque estivemos horas daquele dia à espera, sem fazer nada, já sem esperança de ver a basílica, mas ficámos. E Deus manifesta-se em coisas extraordinárias. Depois da missa, os jovens ainda tiveram oportunidade de conversar com o Tolentino, fizeram-lhe perguntas sobre o conclave, sobre a vida dele… E, no final, o padre Tiago, com toda a sua lata, lembrou-o de que ele ainda estava a dever-lhe um jantar, por causa de uma aposta que tinham feito nos tempos da faculdade! E acabámos todos a jantar e a comer um gelado italiano com o Tolentino. Portanto, valeu mesmo a pena esperar. Vale a pena ter Esperança!
Clara Raimundo – 7Margens