O certificado de garantia da sua vida na sua mensagem. Uma breve biografia.

Os contemporâneos de Jesus perguntavam-lhe de onde vinha. A sua proveniência constituía o certificado de garantia da sua mensagem. Ele mesmo explica aos seus discípulos, que Ele é o Enviado do Pai... que quem O vê, vê o Pai. As obras e os milagres que Ele faz confirmam que (Ele) vem do Pai. Assim, chega a afirmar: «... 0 Pai e Eu somos um só» (Jo 10, 30).

Também nós podemos sentir o desejo de levantar esta interrogação a Daniel Comboni, agora que a Igreja o proclama «santo», para mergulharmos e, portanto, sermos enriquecidos pela fonte que nos da o certificado de garantia da sua vida e da sua mensagem.

 De onde venho?

 1. Da certeza da minha vocação

 Venho da certeza da minha vocação a ser Apostolo da Negritude; da vocação que senti como desejo na minha infância e que cultivei no Instituto «Mazza», até à decisão definitiva da minha entrega total a Deus, para a regeneração da Negritude. Eis o segredo da tenacidade com que vivi a consagração à causa da Negritude e a constância com que permaneci fiel a este ideal, contra todas as dificuldades, até à morte. Venho de uma resposta vocacional purificada e fortalecida no cadinho do deserto. Com efeito, sem sacrifício não há resposta à vocação. Assim, aconteceu que abandonei tudo, que me deixei possuir pelo Todo e que me entreguei totalmente a Ele, em vista de desempenhar a obra para a qual Ele me chamava. Vivi a vocação como uma peregrinação, como uma passagem para a outra margem, em que Deus me fez «esposo» e libertador da Negritude.

 2. Sim, venho do deserto

 Esta realidade é-me muito familiar, tanto na sua dimensão físico-geográfica como na espiritual.

Com efeito, venho das viagens intermináveis pelo deserto, que tive de atravessar por sete vezes, para chegar ao coração da Africa. Aquelas viagens eram verdadeiramente difíceis. Devíamos levantar das esteiras dispostas sobre a areia às duas horas da madrugada, ao grito do guardião dos camelos e, em cinco minutos, era necessário estar já na garupa dos animais que, chicoteados, partiam a um trote particular, que fazia sacudir o viajante de maneira definhante e opressora. Somente por volta das onze horas é que parávamos à sombra de algum rochedo e, às quinze horas, voltávamos a partir, para pararmos de novo somente ao cair da noite. Sentindo náusea no estômago, o desejo de comer passava totalmente. Beberíamos um pouco de agua fresca, mas só dispúnhamos de um pouco de agua quente, fétida e nauseabunda, estragada nas bolsas de pele de cabra, com o sol que fazia a temperatura subir a 55 e até mesmo a 60 graus de calor.

A vasta superfície do deserto, de Korosko a Berber, penetrou na minha carne e no meu espírito de «devotado» à Negritude. Trata-se de um deserto «vasto» e «de aspecto horrível», mas também saudável, porque na sua solidão, no silencio, no espaço interminável, sob um céu límpido, a alma é elevada e fortalecida. Caminhei por este deserto, procurando a outra margem, para onde Deus me enviava, povoada pelos rostos desfigurados dos meus irmãos, ajudado pelo próprio Deus que, com o seu Rosto paternal, me sorria e me estendia os braços do Alto da Eternidade...

Vivi o deserto da minha alma de maneira intensa e até mesmo dramática nas varias etapas do meu itinerário missionário, que culminou com a morte no campo de batalha.

Com efeito, o deserto interior é alma sozinha, vazia na aridez e na angustia.. É a minha situação de homem «só», disposto a dar mil vidas pela amada Negritude; è a experiência de uma aflição no coração, provocada pelo ímpeto da Caridade, que brota do Coração de Jesus Trespassado no Golgota, pelo que venho a encontrar-me desapegado de tudo e distante de todos e, ao mesmo tempo, moído como um grão de trigo para me tornar, juntamente com Jesus Cristo, pão que da vida à Negritude...

3. Venho da minha interioridade,onde habita um vigoroso sentimento de Deus

Não entrei no deserto à procura de aventuras exóticas ou de tesouros escondidos, mas sim disposto a perder todas as minhas seguranças humanas e desejoso de me deixar conquistar e amar unicamente por Deus... Para mim Deus, e somente Deus, é a única razão do meu ser missionário. A sua presença em mim é o meu Amor, a minha Riqueza e a minha Liberdade. A minha única felicidade é sentir-me continuamente permeado por esta Presença amorosa, que da calor à minha existência, mesmo na escuridão; a minha única felicidade é viver para a gloria deste Deus, que se faz companheiro de viagem da minha vida, enquanto aceito que Ele se sirva de mim para a felicidade dos Africanos.

Sim, só me sobrou ELE, a única certeza e garantia do meu caminho missionário. É dele que recebo a inspiração e o vigor para enfrentar os reveses da Missão. Comecei, desde a minha infância, a procurar unicamente a vontade deste Deus que me «consagrou» para as missões da Africa; vivi e continuo a viver sempre disposto a sacrificar tudo para cumprir esta Missão e com o propósito de viver e de morrer realizando unicamente esta vontade divina, sustentado pela certeza de que o seu cumprimento é a única consolação nos momentos de prova.

Na minha sede de Infinito, a Missão manifesta-se em toda a sua clareza como dadiva de Deus. Um Deus que procurei e encontrei, mas que me amou e me procurou primeiro e que, enquanto me salva, me escolhe também como instrumento desta mesma salvação para os meus irmãos que se encontram mais distantes dela. Assim, aprendi a depositar a minha vida nas suas mãos, com acção de graças e com alegria, e a oferecê-la como um presente a este Deus da vida, para a regeneração dos meus irmãos mais pobres e oprimidos.

4. Venho do Coração de Cristo

Percorrendo o deserto da minha alma, encontrei um «poço». Sim, porque também no deserto não existe somente areia; mesmo quando nada vemos e nada sentimos, encontramos sempre escondido nalguma parte um poço, onde podemos beber e readquirir as forças (cf. Gn 21,8-19).

Este poço é o Coração Trespassado de Jesus, Bom Pastor.

Penetrando no meu deserto, sacio a minha sede, bebendo em abundância deste «poço».

A agua que dele jorra é a «Virtude divina» que, penetrando no meu mundo interior, me leva a desenvolvê-lo sem descanso. É ela que torna cada vez mais forte em mim o sentimento de Deus e cada vez mais firme o vínculo de solidariedade para com a Negritude.

É a partir dela que nasce em mim aquela vida exterior exuberante, tenaz e coerente, que chama a tua atenção.

5. Venho do deserto da Negritudee da solidariedade para com ela

O deserto da minha alma cruza-se com o deserto da Negritude. Com efeito, o deserto fascinante e terrível, que tive de atravessar para chegar à Negritude, projecta-se sobre ela como uma «escuridão misteriosa», que a envolve. Trata-se de uma escuridão que nasce do entrelaçamento de fenómenos desconcertantes e que angustia os Africanos numa vicissitude de «pobreza radical» há mais de quarenta séculos, que os conserva afastados dos benefícios do progresso humano e da fé. É uma pobreza em todos os sentidos. Ela diz respeito ao meio ambiente natural, fascinante e, ao mesmo tempo, hostil à vida e à missão; às almas, aos corpos e ao tecido social; causando a índole mortificada dos negros, «sobre os quais parece que ainda pesa com vigor o anátema de Caim». Em síntese, é uma pobreza que, como o deserto, cava um vazio terrível ao seu redor e no meio da Negritude, tornando-a a imagem viva de uma alma que foi abandonada por Deus.

Todavia, a aurora maravilhosa do deserto, que ruboriza o céu, os montes e os planaltos como um incêndio de ouro; o sol que, pontualmente, nasce majestoso e faz arder o imenso vazio do deserto, são na minha alma sinais da presença providencial de Deus em todos os lugares, até mesmo no reino da morte. Esta presença impele-me a entrar e sustenta-me nessa «escuridão misteriosa» da Negritude, para participar em tudo com os seus filhos e as suas filhas, na certeza da sua regeneração.

Então, posso dizer-te que venho de uma existência vivida em solidariedade com os povos pobres e oprimidos da Negritude; unido e em comunhão com estes meus irmãos concretos. Venho da vida de indivíduos esquecidos e marginalizados pela historia, de quem a sociedade só se recorda quando eles dão noticia de si através de uma nova desgraça que os atinge, ou quando ela mesma encontra algum outro modo de os explorar.

6. Venho da comunhão com a Santíssima Trindade

Continuando o caminho do deserto da minha alma, mergulhado nesta «escuridão misteriosa» que paira sobre a Negritude e sustentado pela agua que jorra do Coração de Cristo, numa certa altura encontrei-me no Monte do Senhor.

Não sei precisamente se era o Monte Horeb, ou o Monte da Transfiguração ou ainda o Monte do Calvário. Talvez, desta vez, estes três Montes se tenham aproximado uns dos outros, apertando-me com o seu abraço e comunicando-me um pouco do Mistério de Deus, de que cada um deles é testemunha. Este facto teve lugar na Colina do Vaticano, enquanto eu rezava junto do túmulo de São Pedro, contemplando o Coração de Jesus por ocasião da Beatificação de Margarida Maria Alacoque.

Trata-se de um momento de oração, em que do Alto me são indicados todos os pontos do Plano para a regeneração da Negritude, que imprimem uma viragem definitiva e configuram o resto da minha vida missionaria. Nele esta presente toda a Santíssima Trindade. Com efeito, uma luz intensa, vinda «do Alto», ilumina no meu espírito a comunhão com a Santíssima Trindade, até então por mim vivida. Começo a experimentar a comunhão com a Santíssima Trindade de uma maneira que me é nova, enquanto a vislumbro como peregrina no caminho dos homens... Esta percepção, que permeia o meu espírito, é a veia escondida que da razão e forma à minha «paixão» pela Negritude, pelo que posso dizer-te que, na verdade, venho do Coração da Santíssima Trindade.

Venho da participação no dinamismo do Espírito Santo, «Virtude divina», que me revela no Coração trespassado de Jesus na Cruz o sinal e o instrumento perene do amor salvífico, que jorra eternamente do Coração do Pai, e o caminho da solidariedade com a vida de todos os homens. Assim, sou introduzido no dialogo inesgotável e na comunhão entre o Pai; que ama de tal modo o mundo que decide enviar seu Filho, e o Filho, que responde com a sua entrega redentora, obediente até à morte, e morte de Cruz, comunicando-me o dom desta mesma «Virtude divina» como chama de Caridade que brota do seu Coração trespassado.

Quando sou mergulhado na acção salvífica da Santíssima Trindade, mediante esta chama de Caridade, sou tirado da «escuridão misteriosa» que paira sobre a Africa e do medo do passado, em que «riscos de todos os tipos e obstáculos insuperáveis definharam as forças, criando o terror» nas fileiras missionarias. Agora, a Negritude transfigura-se diante dos meus olhos: começo a vê-la «como uma miríade infinita de irmãos que têm um Pai comum no Céu». Experimento o abraço de Deus Pai, assinalado pelo sofrimento destes seus filhos africanos, e no africano necessitado descubro um irmão, que ainda goza da bênção do Pai, que jorra da Cruz... pelo que, tem necessidade de ser encaminhado rumo a Ele.

7. Venho da Igreja, «minha senhora e minha mãe»

Como cristão, como missionário e, enfim, como Bispo, sou filho da Igreja, sou um «homem da Igreja». Dela recebi tudo: foi nela que conheci o Senhor Jesus, «que amou a Igreja e que se deu a si mesmo por ela, para a tornar santa» (Ef 5, 26); nela e por intermédio dela, recebi e vivo a minha vocação ao apostolado missionário na Africa, pelo que me sinto orgulhoso de ser Missionário Apostólico.

Na escola do Pe. Nicolau Mazza descobri as suas dimensões fundamentais: a santidade, a busca da verdade e impulso missionário. Assim, convenci-me de que só pertence plenamente à Igreja aquele que orienta a sua própria vida rumo a duas escolhas: tender para a santidade e servir através da opção vocacional. Não me passou despercebido o facto de que nem todos na Igreja entram profundamente no seu Mistério e, por conseguinte, nem todos estão à altura dos seus ideais. Isto contribuiu para me tornar cada mais consciente da minha pertença à Igreja e para compreender que devo ama-la como Ela é e a viver nela espiritualmente aos pés da Cruz, que constitui o «selo das obras de Deus» (S. 994).

Esta atitude deu-me a força da fidelidade à Igreja. Vivo a pertença à Igreja como uma grandiosa dadiva de Deus, que não é comparável com qualquer outro interesse. Sem ela, não sou mais eu mesmo. Ela é «a minha senhora e a minha mãe» (S. 7001). Por Ela, sinto-me amado e acolhido. Por Ela nutro respeito, amor e lealdade, procurando a verdade; em comunhão e participação com Ela, desejo realizar o Plano que me foi inspirado do Alto. Estou intimamente convencido de que eu mesmo, a missão e os meus projectos só são garantidos na e pela Igreja. Por isso, à sua autoridade cedi a minha vontade, a minha vida e todo o meu ser, e nela vislumbro a mão providencial de Deus, que me conduz ao longo da senda do meu apostolado missionário. Amo a Igreja com todo o meu ser, não por interesses humanos, mas pela vontade expressa de Jesus Cristo, que lhe deixou como deposito o Evangelho, que me mandou anunciar.

8. Venho do encontro com a Virgem Maria

Venho do encontro e da companhia de Maria, Mãe do Senhor, «rosto maternal de Deus», presença inefável de um amor que se entrega constantemente. Ela ocupa um lugar privilegiado na minha vida, porque è Mãe dos Apóstolos, conforto precioso do Missionário, sobre o qual vela para o defender dos perigos, Estrela Matutina do missionário que se esconde no coração da Africa, Mestra nas duvidas, Saúde e Fortaleza nas enfermidades, Guia nas viagens, Luz dos errantes, Porto de quem se encontra em perigo e Mãe da Consolação.

Ela è a Rainha misericordiosa e a Mãe amorosa da Negritude, a Mãe dos Africanos, dos crucificados de ontem e de hoje no Golgota do mundo, onde Ela os recebe como filhos, permanecendo firme ao lado do Filho crucificado. Com a sua poderosa intercessão, libertá-los-á da desventura e mergulhá-los-á no júbilo da fé, da esperança e da caridade (cf. S. 1644).

Vivo-a como Imaculada, a «mulher sem pecado», a «toda santa», a «toda pura», «prodígio da graça de Deus» e «milagre da omnipotência divina», «santuário da Trindade» e imagem ideal do homem e da mulher, sinal da vida verdadeira e «terra prometida» à Negritude. Vivendo em sua companhia, Maria - Filha predilecta do Pai eterno, morada do Filho eterno, habitação inefável do eterno Espírito divino (cf. S. 4003) - explica-me o que significa ser Templo de Deus, cela interior em que se vive ininterruptamente a comunhão com as Pessoas divinas da Trindade, casa em que o dialogo com Deus e a oração pelo advento do seu Reino é incessante.

A companhia de Maria revela-me ainda a dignidade e a habilidade da mulher, assim como a indispensabilidade do seu papel na minha árdua missão. Atribuo à presença de Maria na minha vida o facto de que sou o primeiro a fazer participar no apostolado da Africa Central «o ministério omnipotente da mulher do Evangelho, e da Irmã da Caridade, que é o escudo, a força e a garantia do ministério do Missionário» (S. 5284).

O encontro com Maria recorda-me que o início da minha vida cristã está vinculado aos gestos e à piedade de uma mulher simples quando, «ainda pequenino, eu aprendi a fazer o sinal da cruz no colo da minha mãe» (cf. S. 342). Desta experiência que me une a Maria, através da minha mãezinha, nasce a minha convicção da necessidade da formação da mulher africana, porque dela depende em grande medida a regeneração da grande família da Africa.

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Eis os centros vitais de que provenho: venho de Deus e de tudo aquilo que dele recebi como dádiva, para a minha plenitude humana e a realização da missão para a qual Ele me chama. Quando falo ou escrevo, refiro-me sempre e intensamente a Ele, e posso contar com numerosas e grandes obras exigidas para a realização da Missão na Africa Central, onde numerosos dos seus filhos e irmãos ainda vivem despojados da sua própria dignidade e esquecidos. Todavia, os votos mais sinceros que nutro no meu coração e que desejo transmitir também a ti, é para que a minha própria vida, na sua totalidade, constitua uma palavra que fale de Deus, uma palavra que nasça do meu dialogo pessoal com Ele![i]

 

Pe. Carmelo Casile, mccj

 


[i] Traduzido do italiano e publicado em: OMNIS TERRA, n. 84, ano IX, Novembro 2003

Carmelo Casile