Quarta-feira, 18 de Novembro de 2020
O Padre Manuel João Pereira Correia escreve-nos, mais uma vez, uma belíssima carta, intitulada “Mortes injustas” e na qual exprime quanto vai no profundo do seu coração. “O meu coração está inflado de tristeza”, afirma, antes de iniciar a contar o que está a acontecer na sua comunidade de Castel d’Azzano, onde já faleceram oito seus confrades, devido ao Covid-19. Só uma fé extraordinária em Deus, como a do Padre Manuel João, nos pode ajudar a suportar tudo quanto estamos a viver à nossa volta e um pouco por todo o mundo.

MORTES INJUSTAS

Caros amigos,
Alguns de vós estão a perguntar-me por novidades. Estou bem. De facto, viajo todos os dias, ou melhor, todas as noites (com bilhete de ida e volta!), caminho, falo, como... sempre à noite, nos meus sonhos! Eu costumava sonhar com a missão. Muitas vezes sonhei com Roma, onde vivi durante dezoito anos e deixei muitos amigos. Há já algum tempo que sonho com a minha terra natal com muita frequência. Não sei o que isso significa. Talvez um regresso às origens. De facto, nos meus sonhos, é como se eu estivesse a viver a minha vida ao contrário, a andar para trás.

É uma oportunidade para louvar o Senhor pelo dom da vida e vocação missionária, as pessoas que conheci e os amigos que me acolheram nos seus corações. Louvado seja o Senhor pela minha terra e pelo seu povo, pela sua beleza, pelas suas colinas e vinhas, trabalhosas, mas generosas, pelas cerejeiras, oliveiras e árvores de fruto....

Agora que a doença me tirou o prazer de provar a comida e a bebida, uma vez que sou alimentado por uma sonda, privando-me nestes últimos tempos de tomar o Corpo e Sangue de Cristo, pedi ao Senhor que quando chegasse às portas do Paraíso, onde espero entrar apenas pela Misericórdia de Deus, Ele me fizesse receber com um grande tabuleiro de cerejas e cachos de uvas, e um bom prato de bacalhau regado com o azeite da minha terra. E que os amigos do Paraíso venham ao meu encontro com um bom fornecimento de bons vinhos para brindar à vida e a todos os amigos!

Mas eu não estou a escrever para falar de sonhos. Venho pedir-vos que rezem pela minha comunidade. A maioria dos meus colegas e do pessoal que nos assiste contrataram a covid-19. A primeira vaga da epidemia poupou-nos, mas a segunda vaga atingiu-nos duramente, apesar de todas as precauções. Estou relativamente bem, apesar das habituais dificuldades respiratórias e perturbações de imobilidade. Estou confiante de que a baleia da minha doença (a ELA, esclerose lateral amiotrófica) não será intimidada por um "animalzito" tão vil e desprezível como o vírus. Esta minha amiga, não muito simpática, jurou durante 10 anos não me deixar e que me levaria com ela!

Falo em tom de brincadeira, mas o meu coração está inflado de tristeza. Nestes dias, o vírus do covid 19 levou oito dos meus colegas, um ou mesmo dois ou três por dia. Outros encontram-se em situações críticas. Há mortes tão serenas como as do P. Aleardo que morreu há alguns dias com a idade de 99 anos ou do P. Efrém que também morreu há alguns meses com a idade de 99 anos, cheio de dias e das bênçãos de Deus. E há mortes injustas! Como as causadas pelo vírus, que nos arrancam a vida com violência e traição. É injusta a morte de um jovem morto por um acidente de viagem que termina prematuramente o percurso da sua vida. Mas também é injusta a morte de um velho que um empurrão faz tremer e cair, impedindo-o de gozar serenamente os últimos dias da sua vida na companhia dos seus entes queridos.

Quem deve ser responsabilizado por estas mortes injustas? Deus? Penso que não, uma vez que Deus é o amante da vida. Em vez disso, penso no pai de todas as mentiras e inveja que introduziu a morte no mundo, juntamente com aqueles que lhe pertencem (Sabedoria 2,23-24). Então ficamos apenas com a raiva e a amargura? Não. Ainda temos a esperança. E isto leva-me a acreditar que a monstruosa e insaciável baleia do vírus, inchada com mortes injustamente arrancadas à vida, não escapará à mão de Deus e, tal como fez com o Profeta Jonas, colocar-nos-á na costa onde Deus nos espera.

Eu mantenho-vos no santuário do meu coração. Que Deus vos abençoe e vos proteja!
Manuel João Pereira Correia
Castel D'Azzano, 17 de Novembro de 2020