O tempo gasto por Deus na conversa com Adão, com Eva é um tempo necessário. O tempo que Deus gasta com a nossa humanidade é um tempo necessário. Porque, amar, envolver, salvar não é senão partir da nossa realidade, partir da nossa fala. Deus escuta-nos, Deus não é uma super estrutura por cima de nós que quer nós vejamos ou não, quer nós estejamos ou não, quer conheçamos ou não, quer queiramos ou não, a Sua salvação, o destino que Ele programou vai acontecer. Não, Ele não nos trata como marionetes, Deus não nos trata como coisas, trata-nos como filhos e como filhos livres na sua liberdade.

A MORADA DE DEUS
Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria
Pe. José Tolentino Mendonça

Todos nos lembramos daquele poema célebre do Alberto Caeiro em que ele conta que o Menino Jesus fugiu do céu e veio viver com o poeta. Veio viver com o próprio Caeiro e criaram entre os dois uma cumplicidade muito bonita. É um poema extraordinário sobre a relação com Deus e, no fundo, sobre o desejo de Deus. É sobre isso aquele poema.

Mas, ao mesmo tempo, o poema também reflete as ideias de Fernando Pessoa e as ideias do tempo acerca de Maria e do seu papel na história da Salvação. E uma das coisas que segundo Pessoa/Alberto Caeiro fez com que o Menino Jesus abandonasse o céu foi porque a Sua mãe não era mãe, a sua mãe não tinha sido uma mãe. A sua mãe, diz o poema assim de uma forma um bocado crua, era uma mala que serviu apenas para Deus meter lá Jesus e ela o trazer para a terra. Digamos, era uma mãe simplesmente meio de transporte e não uma verdadeira mãe, que gera biologicamente mas gera para a vida, gera no seu todo, gera continuamente. A gestação e a maternidade não são um momento pontual, não são apenas um assunto biológico. A maternidade é uma questão de vida, é um acompanhamento, é uma arte, é um permanecer ao lado, é um dar a vida até ao fim. E ele diz: o menino Jesus não teve isto, teve apenas alguém que o pôs no mundo.

Ora, nós celebramos hoje a festa da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, em pleno tempo de Advento. Exatamente celebrando o contrário disto, aquilo que Fernando Pessoa não viu. É que Maria é uma verdadeira mãe de Jesus, é verdadeira mãe de Jesus. E ela gerou-o continuamente, ela acompanhou os grandes momentos da vida de Jesus. É verdade que os Evangelhos falam pouco de Maria, mas de uma forma discreta ela está presente em todos os momentos. Está presente na Anunciação, antes Dele nascer. Ele era uma história no coração dela antes Dele chegar, como acontece com todas as mães. Os filhos começam por ser um sonho, um desejo, uma imagem, uma semente até ao momento em que eles surgem. Depois temos os momentos da infância em que Maria vai também descobrindo o Seu Filho, muitas vezes com surpresa. Como as mães e os pais também descobrem os seus filhos, os filhos são fruto deles mas são outro, são uma alteridade. E essa descoberta delicada, respeitosa que ampara a alteridade do outro é muito o papel dos pais.

Depois, no momento da vida pública de Jesus, quando acusavam Jesus de ter perdido o juízo, de ter enlouquecido e estar num caminho de colisão com as instituições do tempo, Maria vai ao encontro de Jesus para busca-Lo para Nazaré. E o facto de ela não O levar para Nazaré também quer dizer alguma coisa da cumplicidade profunda entre os dois. E depois temos Maria aos pés da cruz, no Evangelho de S. João, naquele relato íntimo e comovente em que Jesus confia a Sua mãe ao discípulo amado e o discípulo amado, e nele toda a Igreja, à sua mãe.

De maneira que Maria tem, de facto, um papel contínuo na vida de Jesus. E o que Deus faz com Maria faz connosco, e isso é aquilo que para mim é extraordinário nas leituras que hoje escutamos. Porque, quer na primeira leitura do livro do Génesis, aquele relato, o poema do jardim, quer no relato da anunciação de S. Lucas nós temos muita conversa. Quer dizer, Deus não chega e diz: Meus amigos, vai ser assim. Não, Ele faz perguntas, Ele quer saber, Ele pergunta: Como é que é? Ele dá espaço para as nossas perplexidades, para que nós possamos dizer: Mas eu não vejo como é que isso vai ser? Quer dizer, Deus não nos atropela.

Como é que Deus nos salva? Deus salva aceitando o que nós somos, aceitando o que nós podemos dar, aceitando o que nós podemos ser em cada momento da nossa vida. Deus não passa por cima de nós a dizer: Eu vou-te salvar quer tu queiras quer não. Não, Ele dialoga connosco. Nesse sentido, o poema do jardim é incrível, porque Deus vem e pergunta a Adão: “Onde estás?” Os mestres rabínicos diziam que esta é uma das passagens mais complicadas da Bíblia porque, aparentemente, põe em risco a própria omnisciência de Deus. Quer dizer, Deus vai perguntar a um homem: “Onde estás?” Deus sabe tudo. Claro que Deus sabe onde Adão está. Se Deus sabe porque é que pergunta? Então, ou aquela passagem é um erro porque põe em causa a omnisciência de Deus ou é uma passagem que está a mais, um apêndice e deve ser retirado, porque na Escritura só está aquilo que é necessário.

Mas, de facto, o tempo gasto por Deus na conversa com Adão, com Eva é um tempo necessário. O tempo que Deus gasta com a nossa humanidade é um tempo necessário. Porque, amar, envolver, salvar não é senão partir da nossa realidade, partir da nossa fala. Deus escuta-nos, Deus não é uma super estrutura por cima de nós que quer nós vejamos ou não, quer nós estejamos ou não, quer conheçamos ou não, quer queiramos ou não, a Sua salvação, o destino que Ele programou vai acontecer. Não, Ele não nos trata como marionetes, Deus não nos trata como coisas, trata-nos como filhos e como filhos livres na sua liberdade.

Por isso, é muito belo aquele diálogo inicial: “Porque é que te escondes?”, “Onde estás?” E depois com a mulher: “O que é que aconteceu?” Ouvindo muitas vezes aquilo que o homem pode dizer, que nós podemos dizer. Muitas vezes sacudindo, desculpando-nos, sacudindo os verdadeiros motivos. Mas, Deus não diz a Adão: Isso não é assim. Não diz a Eva: Isso não é assim. Deus aceita, Deus acolhe a verdade também da nossa fragilidade, da nossa vulnerabilidade e da nossa liberdade. Deus toma-nos a sério, Deus toma-nos a sério.

E a mesma coisa nós temos no diálogo do Anjo com Maria. O Anjo diz-lhe uma coisa e ela fica perturbada com aquilo: “Mas o que é isto?” E, quando o Anjo lhe diz o que vai acontecer, ela fica perplexa e traduz a sua perplexidade: “Mas como é que isso poderá ser?” E, no final, ela dá o seu assentimento, ela diz que sim: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Tua Palavra.”

Queridos irmãs e irmãos, é importante sentirmos que a fé acontece num diálogo com a nossa vida, com o que somos. O que temos a dizer a Deus é muito importante. Deus gasta tempo connosco. Ele salva-nos amparando a mulher e o homem que somos, acudindo-nos, num amor incondicional. E essa é a Sua forma de nos salvar. Por isso, nós não nos vamos salvar apesar de nós mesmos, nós vamo-nos salvar connosco mesmos. Com o que somos.

E o presépio é muito isso. O que é que é o mistério da encarnação de Jesus? É a exaltação da nossa humanidade, é dizer: a nossa humanidade é a morada de Deus, é um lugar de Deus. Jesus veio dizer que a nossa carne é teomórfica, o nosso corpo tem a forma de Deus. Então, a nossa vida simples, pequenina, a patinar com as dificuldades todas, ela é o lugar de Deus, ela é a manjedoura de Deus. E isso faz-nos olhar para a nossa vida com uma confiança que nós precisamos. Eu acho que às vezes o que nos atropela e o que nos trava é uma desconfiança, uma insegurança, uma falta de amor em relação à nossa própria vida. Deus vem para dar-nos essa confiança incondicional. Porque, e isso liga-nos ao texto que hoje escutamos da Carta aos Efésios, o plano de Deus não é o castigo. Deus não é como aquelas diretoras de orfanato muito severas, que cuidam de filhos que não são delas e não têm paciência, e vivem com a ideia do castigo e da ordem e da lei. Deus não é assim, Deus é pai e mãe, Deus cuida verdadeiramente de nós. Deus escuta-nos, Deus toma a sério a nossa liberdade, a nossa humanidade.

E no princípio não está o pecado original, não está a falta original. Deus olha para nós e não diz: Falta-lhe isto, falta-lhe aquilo. Deus, quando nos olha, não olha para o que nos falta, não olha uma falta de origem, um pecado de origem, uma falha no sistema. Deus olha-nos com deslumbre, com amor. E é isso que nos escutamos na Carta aos Efésios: “Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto do céu nos abençoou com todas as bênçãos em Cristo. Ele escolheu-nos antes da criação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis na sua presença.”

O filósofo Paul Ricoeur ajudou-nos muito a ver que nós construímos uma cultura, também uma cultura cristã, muito com base na ideia do pecado original. Há uma coisa que nós temos de pagar. Há uma divida que nós temos de recompensar de alguma forma. Nós nascemos e já estamos em dívida. E ele diz: a esta visão nós temos de colocar a visão que nos aparece precisamente na Carta aos Efésios. Que é assim: mais do que uma divida, mais do que uma falha original nós temos de falar de uma graça original, de uma bênção original. Então, cada um de nós no princípio é essa bênção. Nós temos de viver da memória de um amor incondicional que é o nosso ponto de partida. Nós já somos amados, nós já somos salvos na pessoa de Jesus Cristo. O projeto da nossa vida é atualizar, é viver dessa memória de amor.

Isto é muito importante porque, por vezes, dentro de nós muitas vezes ainda subsiste uma imagem de Deus que não é a imagem de Deus que Jesus veio revelar. É um Deus totalitário, é um Deus que nos vigia, é um Deus que nos pune, é um Deus que desconfia das nossas intenções e daquilo que fazemos. Temos de colocar em vez desse Deus o Deus de Jesus. O Deus que é Abbá, o Deus que desde o princípio nos espera com amor, o Deus que respeita a nossa liberdade, o Deus que nos ama, o Deus que aceita as nossas respostas e que aceita até a nossa vulnerabilidade, aceita o nosso pecado.

A história da salvação, segundo o poema das origens, começa com a transgressão. Deus aceita a nossa transgressão, Deus aceita esta incerteza que entra na nossa vida. Deus aceita isso e faz caminho connosco e não desiste de nós. O presépio é a imagem que Deus não desiste de ninguém, Deus não deixa para trás ninguém e por isso Ele vem nascer. Vem nascer como um dos últimos precisamente para nos ganhar a todos, para ninguém ficar de fora, para todos sentirem o abraço de Deus, para sentirem que Aquele que nasce diz respeito a todos, a todos.

Eu lembro-me de há uns anos atrás quando eu estava em Roma a viver que havia um presépio, destes monumentais que as câmaras fazem (ou pelo menos em alguns lugares fazem presépios), na Praça de Espanha, muito bonito, e na Véspera de Natal desapareceu o menino Jesus. Depois veio-se a descobrir que tinham sido dois sem-abrigo que tiraram o menino Jesus do presépio para o levarem para o seu próprio presépio. Esta compreensão é a melhor proclamação do que é o Natal. Jesus vem para ser junto de todos, para ser o Emanuel, para ser o Deus connosco. Por isso, Ele é universal, Ele vai para lá de todas as estruturas, de todas as fronteiras, de todas as divisões económicas, morais, políticas, étnicas, de todo o tipo. Ele é o humano, Ele é humano, Ele é o Deus connosco.

Como dizia o Fernando Pessoa, naquele belo poema com que comecei: ‘Brincava com Ele de manhã, à porta de casa, às cinco pedrinhas, e eles riam-se os dois. E, à noite, quando o menino Jesus estava cansado, ele levava-O ao colo para a cama.’ O poema acaba assim: “um dia quando eu morrer e despir o meu ser cansado e humano, leva-me, tu, criança ao colo, e dá-me tu os sonhos com que eu vou brincar.”
Pe. José Tolentino Mendonça