Temos neste passo do Evangelho de Mateus (4,12-23), que hoje lemos, o início da vida pública, da missão de Jesus. Em literatura chama-se o incipit, o lugar onde as coisas começam. A forma como se começa é programática, diz muito daquilo que é a intencionalidade do próprio Jesus. A primeira palavra de Jesus, de certa forma, é o seu programa messiânico, o seu mapa para a ação missionária que Ele vai desempenhar. (...)

Em plena Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos e ao celebrarmos, neste domingo, o Domingo da Palavra, a liturgia coloca o nosso olhar sobre a pessoa de Jesus. Ele é a verdadeira luz que brilha nas trevas. Jesus começa a sua pregação nas sinagogas e nas aldeias por onde passava. Não sem antes ter chamado os primeiros quatro Apóstolos (dois pares de irmãos) para que sejam testemunhas d’Ele: do que viram e do que ouviram. É através da pregação que a Igreja, hoje, de forma particular, pode apresentar Cristo ao mundo. Pregação que fará brotar frutos de caridade.

FINALMENTE, PARTE-SE!

Mateus 4,12-23 
Domingo da Palavra de Deus

Hoje começamos a nossa leitura do Evangelho de Mateus, que nos acompanhará por mais de trinta domingos (excepto durante a Quaresma e a Páscoa, desde a Quarta-feira de Cinzas até ao Pentecostes), até ao final de Novembro. A passagem evangélica deste domingo relata o início do ministério público de Jesus. Hoje Ele entra em cena! O que vimos antes, o baptismo e a permanência no deserto, eram apenas o preâmbulo. Vejamos como se processa esta sua partida.

Crise e discernimento. Tudo começa com um acontecimento dramático: a prisão de João, um momento de crise também para Jesus. João era um amigo, ele era um ponto de referência. O seu desaparecimento de cena deve ter deixado os seus discípulos perplexos. "Quando Jesus soube que João tinha sido preso, retirou-se para a Galileia". Isto soa como uma fuga. Deixa a Judeia e retira-se para a sua casa. Mas este retrocesso torna-se um poderoso momento de discernimento. Jesus sente que o movimento iniciado por João não deve desaparecer. Alguém tem de o continuar. Jesus sente-se desafiado pelo Pai: chegou a sua hora, agora é a sua vez! E assim Jesus aparece: "deixou Nazaré e foi viver em Cafarnaum, à beira-mar". Deste modo, quando tudo parecia ter acabado, tudo começa de novo!

Pensamos muitas vezes que Jesus sabia tudo antecipadamente, que tudo era claro para ele desde o início: a sua identidade, a sua missão, os movimentos a fazer, o momento... Alguns até acreditam que Jesus estava ciente desde o ventre da sua mãe que ele era o Filho de Deus. Mas isso seria ignorar a encarnação. Jesus, como cada um de nós, "crescia" (Lc 2,40)! No baptismo ele torna-se consciente de ser o Filho de Deus, no deserto interroga-se sobre o seu messianismo....

Estamos no mistério insondável da autoconsciência de Jesus, claro, mas subjacente a ela está o da encarnação. Jesus também teve de passar por dúvidas, incertezas, reflexão sobre os acontecimentos, oração para discernir a vontade do Pai. "Ele próprio foi testado em todas as coisas como nós, excepto o pecado" (Hebreus 4:15). Um homem como nós, teve de aprender, mesmo dramaticamente: "Embora fosse Filho, aprendeu a obediência com aquilo que sofreu" (Hebreus 5:8).

E aqui também me vejo a mim, no meu próprio intenso processo vocacional, como tantos outros. Tendo entrado no seminário com a idade de onze anos, como sofri quando jovem com as minhas dúvidas sobre se esse era realmente o meu caminho! Invejava os meus colegas que estavam certos e seguros e queriam antecipar a profissão perpétua e a ordenação sacerdotal, enquanto eu tentava adiá-los o mais possível! E lamentava-me com Deus por Ele não ser mais claro. Não queria aceitar que essa fosse a lei da encarnação de Deus, da sua presença, da sua voz e dos seus sinais. E ainda hoje me surpreende que tenham sido duas raparigas, sem elas se darem conta, o sinal ou a luz que Deus me enviou para tomar a grande decisão. Foi no Verão de 1977, em Londres, enquanto trabalhava num restaurante com outros estudantes de diferentes nacionalidades. Nos últimos dias dessa experiência, duas raparigas (irlandesas?), tendo descoberto que eu era seminarista, confidenciaram-me que tinham notado algo 'especial' em mim e, para minha surpresa, encorajaram-me a continuar. Ali tomei consciência da pérola que levava dentro de mim e que, com o tempo e a rotina, se tinha tornado empoeirada, razão pela qual não sentia o seu fascínio. Esse foi o momento do meu recomeçar. De volta a Roma para terminar os meus estudos, pedi, com grande serenidade, a profissão perpétua e a ordenação.

Caminhar, a condição do cristão. No evangelho de hoje sinto-me atraído pela proeminência dada aos verbos de movimento, que aparecem nada menos do que nove vezes. Caminhar torna-se o modus vivendi de Jesus e dos seus discípulos, ou seja, daqueles que o seguem. Jesus deixa Nazaré e vai habitar em Cafarnaum, mas apenas como ponto de partida, porque imediatamente a seguir começa a caminhar pela Galileia, Palestina e territórios vizinhos, e não voltará a parar até regressar ao Pai que o enviou. A sua morada será o caminho, a tal ponto que ele próprio se tornará o Caminho (João 14:6).

A estrada aberta por Jesus será designada "o Caminho" e os cristãos "seguidores do Caminho" (Actos dos Apóstolos 9,2). E a partir daí, tudo acontece no Caminho. Portanto, não há condição mais contrária à vocação do cristão do que a de ter parado, de pensar que se caminhou suficientemente longe ou, pior ainda, de sentir que se chegou. Uma fé estabelecida, de poltrona, abrigada na cova da própria segurança, seja ela humana ou eclesial, é uma fé sem fôlego, paralisada.

Por onde se começa? De onde és, da tua Galileia, da tua esfera de vida, da tua vida quotidiana, da "Galileia dos Gentios", a nossa sociedade pagã. Aí a "grande luz" (ver primeira leitura, de Isaías) irá manifestar-se.

Para onde se vai? O destino é a "montanha da missão", a meta final do evangelho de Mateus (28,16-20). E o itinerário?! Não o conhecemos. Só sabemos que devemos seguir Jesus. Talvez até ele não o saiba de antemão. Também ele é guiado pelo Espírito e pelos acontecimentos da vida. Mesmo para ele, o Caminhante, não há estrada já mapeada, ao andar é que se faz o caminho! Pode ser uma viagem mais insegura, sujeita a acontecimentos imprevistos, mas respiraremos o sabor da liberdade e da novidade!

Que equipamento a levar? Não precisaremos de mochilas a transbordar. Tudo o que precisamos é da Palavra! E, neste domingo da Palavra de Deus, o Papa Francisco dá-nos instruções de uso: "Precisamos da sua Palavra: de ouvir, no meio dos milhares de palavras de cada dia, aquela única Palavra que não nos fala de coisas, mas que nos fala da Vida. Caros irmãos e irmãs, façamos espaço dentro de nós para a Palavra de Deus! Vamos ler alguns versículos da Bíblia todos os dias. Comecemos pelo Evangelho: deixemo-lo aberto na mesa de cabeceira em casa, levemo-lo no bolso ou na bolsa, visualizemo-lo no nosso telemóvel, deixemos que nos inspire cada dia. Descobriremos que Deus está próximo de nós, que Ele ilumina as nossas trevas e conduz as nossas vidas com amor" (26/01/2020).

Que a estrada se abra diante de ti,
que o vento sopre sempre às tuas costas,
que o sol inunde e aqueça o teu rosto,
que Deus te guarde na palma das Suas mãos!

(Bênção Irlandesa)

Castel d'Azzano, 20 de Janeiro de 2023
P. Manuel João Pereira Correia mccj
[comboni2000]

Mateus 4,12-23

“Transformai o vosso modo de pensar”

Temos neste passo do Evangelho de Mateus, que hoje lemos, o início da vida pública, da missão de Jesus. Em literatura chama-se o incipit, o lugar onde as coisas começam. A forma como se começa é programática, diz muito daquilo que é a intencionalidade do próprio Jesus. A primeira palavra de Jesus, de certa forma, é o seu programa messiânico, o seu mapa para a ação missionária que Ele vai desempenhar.

Jesus diz “Metanoiete”, a tradução aqui diz “arrependei-vos”, que é uma tradução muito na linha do Antigo Testamento. Mas verdadeiramente, “Metanoiete”, o imperativo grego, quer dizer “Metanoein”. “Metá” quer dizer mudar, ir além e “noein” vem de “nous”, que é o pensamento, a inteligência. “Ide para lá do vosso pensamento habitual, mudai o vosso pensamento, mudai a vossa maneira de pensar, a vossa maneira de julgar.” A primeira palavra de Jesus é este imperativo: “Mudai a vossa perceção, mudai a vossa compreensão das coisas.” Jesus provoca-nos a uma nova visão da própria realidade. Jesus não vem para somar com aquilo que nós já somos, com aquilo que nós já sabemos, com tudo o que trazemos habitualmente dentro de nós. Jesus não é mais um a somar ao existente. Jesus é tudo isso mas conjugado de uma forma nova, numa atitude nova, com um olhar outro sobre nós próprios, sobre o mundo, sobre o nosso destino, sobre a nossa própria missão.

“Transformai o vosso modo de pensar.” É interessante que nós podemos ler toda a ação messiânica de Jesus a partir deste verbo. Por exemplo, Jesus fez muitas curas, muitos sinais, muitos milagres durante a sua vida pública, e esses milagres, para os doentes a quem essa ação era feita, tinham um sentido literal – os cegos viam, os coxos andavam, os leprosos eram curados. Mas aquela ação de Jesus tornava-se para os outros também uma ação simbólica, também uma espécie de chamamento. E o chamamento era a quê? Era a ver com outros olhos, era a andar de outra maneira, com outra força, com outra vitalidade, de outra forma, era sentir-se purificado de todas as lepras, era sentir-se curado de todos os assediamentos que a morte nos faz. No fundo, é esta transformação vital de nós mesmos que Jesus vem anunciar.

Nós estamos a recomeçar um ano, estamos no terceiro domingo do ano comum, temos um longo caminho pela frente, domingo a domingo, e é importante que sintamos que há algo de novo a começar em nós, que há uma proposta de mudança, uma proposta de transformação que não é feita abstratamente, para o mundo em geral, mas é feita para mim. Eu sou desafiado a ganhar outros olhos, a ganhar uma outra inteligência para olhar-me a mim mesmo, para olhar os outros, para olhar para Deus. É esse o repto de Jesus. Porque Jesus constrói a nossa compreensão do mundo, Jesus constrói uma nova atitude, uma nova arte de ser. Sintamo-nos, por isso, muito desafiados a uma desinstalação.

Para nós cristãos – o Papa Francisco fala muito disso – os nossos grandes pecados acabam por ser a autorreferencialidade. Quer dizer, nós anulamos bastante a força profética, o desassossego destas palavras no conforto de uma religião que é vivida muito pacatamente, vivida como um manual de boas maneiras, como uma ritualidade que no fundo não nos tira do sério, não nos tira o chão debaixo dos pés, não nos põe à prova, não nos faz começar de novo a vida em cada domingo, mas é quase uma experiência de manutenção e não este choque de transformação que nós vemos na palavra de Jesus. Este é o primeiro pecado, uma certa autorreferencialidade, tudo é reconduzido a nós próprios e ao nosso conforto.

Outro pecado é a mundanidade, aquilo que o Papa Francisco chama com esse nome, que é, no fundo, uma cedência ao mundo, uma cedência aos apetites, uma cedência ao consumo, uma cedência ao egoísmo materialista, que não nos faz perceber a palavra de Jesus que diz: “Transformai a vossa forma de pensar, transformai o vosso modo de estar porque o Reino de Deus tornou-se próximo, porque o Reino de Deus avizinhou-se da vossa vida.”

E o Reino de Deus o que é? É a presença de Deus, é a possibilidade de Deus, é a hipótese de Deus que é colocada com toda a força, com toda a disponibilidade na nossa vida. Deus faz-Se presente e nós o que é que vamos ser? O que é que vai acontecer a partir disso? Jesus diz estas palavras e parte para junto do mar da Galileia e ali, junto daquelas vidas, vai chamando e dizendo àqueles pescadores: “Vem e segue-Me.” E eles deixaram tudo para seguir Jesus. Uma mudança de pensamento é isto: é deixar o nosso quadro habitual de resolver a nossa vida para resolvermos a nossa vida com Jesus, a partir de Jesus, a partir do chamamento que Ele nos faz. Este “Vem e segue-me” que Jesus diz àqueles pescadores em específico, não é apenas para eles. A vocação não é apenas pensarmos a vocação do matrimónio, a vocação religiosa, a vocação dos padres. A vocação é a nossa vida, é a nossa existência. Nós temos em cada dia de nos sentir chamados, convocados, porque em cada dia Ele passa pela nossa vida. Claro que há a condição com que vamos viver e dar forma à nossa existência, mas a vida de um cristão é toda ela vocacional, é toda ela vivida como escuta de Alguém que chama por nós.

Se no dia a dia muitas vezes parece que ninguém diz o nosso nome, parece que nada nos chama, parece que apenas a vida nos engole ou que vivemos em modo de voo, em modo de pausa, a verdade é que se estivermos atentos no fundo do nosso coração, na realidade da história, nas suas circunstâncias pequenas e grandes nós vamos ouvir a voz de Jesus que passa pelo mar da Galileia da nossa vida e repete: “Vem e segue-me”. E o que é importante é nós termos aquela disponibilidade que os discípulos tiveram, deixaram tudo para seguir Jesus.

Não tenhamos dúvidas, nós temos de deixar para poder seguir. O nosso mal é querermos compactuar: sim e sim e sim e sim e às tantas, de todos os nossos “sins” não se diz um “sim”, não se diz um “sim” que seja verdadeiro. Os discípulos tiveram de deixar para seguir Jesus e nós também temos de deixar para seguir Jesus. Seguir Jesus implica deixar algumas coisas que para cada um de nós possivelmente são coisas diferentes, possivelmente nem são coisas materiais, não são coisas espaciais. São atitudes, são vícios, são círculos viciosos, são modos – é tanta coisa! São coisas que nos prendem e que no fundo nós temos de deixar para seguir verdadeiramente Jesus. Há uma radicalidade na vivência cristã que nós próprios também temos de experimentar. Um cristão é um cristão. Não é um puzzle de coisas e de valores e de memórias diferentes. Não, um cristão é um cristão.

Está agora nos cinemas este filme de Scorsese, “O Silêncio”, que adapta o belo romance de Shusaku Endo também com esse nome. É um filme muito rico que dá conversas muito interessantes. Mas uma verdade evidente é que um cristão é alguma coisa que não se consegue apagar. Ali no filme é impressionante que nem no pecado, nem sequer na apostasia, quando pelas circunstâncias históricas, pelo medo por tanta coisa nós negamos Deus, Deus nos nega. Deus não nos nega. O cristão acaba por ser alguma coisa irremovível, o elemento cristão é alguma coisa irremovível dentro de nós. Por isso, mesmo aqueles que são apóstatas podem negar a Deus e negar a Jesus mas verdadeiramente continuam à luta com Jesus, continuam naquele combate sem fim com o desejo de Deus.

Um cristão é uma coisa muito séria e para nós a memória dos mártires e a memória de todos aqueles que nos precederam também nos deve dar o alento para não reduzirmos o ser cristão apenas a uma característica, mas fazermos dessa condição um foco de vitalidade que fertiliza a nossa vida, que nos dá uma criatividade de ser que potencia aquilo que somos, que nos rasga à sede e ao desejo de infinito que nos torna buscadores, exploradores de sentido em cada dia. Ser cristão é um acelerador de partículas. Nós já não estamos mais parados, não estamos mais estagnados. Estamos sempre em movimento, estamos sempre em caminho. Jesus passa pela nossa vida e diz “Vem e segue-Me” e esse é o nosso caminho.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III do Tempo Comum
José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org