No Evangelho deste IV Domingo da Quaresma, Jesus apresenta-se como "a luz do mundo"; a sua missão é libertar homens e mulheres das trevas. Aderir à proposta de Jesus é enveredar por um caminho de liberdade e de realização que conduz à vida plena.

Perguntas e Olhares, um caminho para a Luz
Ano A - Quaresma - 4º Domingo
João 9, 1-41

Na liturgia deste quarto domingo da Quaresma Jesus apresenta-se como “a luz do mundo”. A sua missão é libertar os homens das trevas do egoísmo, do orgulho e da auto-suficiência. Aderir à proposta de Jesus é enveredar por um caminho de liberdade e de realização que conduz à vida plena. Da acção de Jesus nasce, assim, o Homem Novo, isto é, o Homem elevado às suas máximas potencialidades pela comunicação do Espírito de Jesus.

O quarto domingo da Quaresma é uma segunda catequese sobre o baptismo, a catequese da LUZ, depois da catequese da ÁGUA, no domingo passado. O protagonista é o cego de nascença curado por Jesus, que João nos apresenta no capítulo 9 do seu evangelho. É um texto muitíssimo belo que sempre foi lido como uma ilustração do baptismo. O homem nascido cego representa cada um de nós a quem Jesus recria (plasma: Génesis 2,7) e envia para a piscina de Siloe, o baptismo.

A vida nasce cega, a humanização é um processo de iluminação

A vida na terra surgiu no estado de não vidente e assim permaneceu durante milhões de anos. Mesmo o recém-nascido só gradualmente se torna capaz de ver. De facto, poder-se-ia dizer que a humanização é um processo lento e árduo de iluminação. Assim também para a vida de fé, que é enxertada neste processo e o leva à sua plena conclusão. A partir da visão da realidade natural, a fé inicia-nos para a visão do invisível, até entrarmos na Luz plena que é o próprio Deus. Sem a abertura da fé, a visão permanece atrofiada e corre o risco de cair de novo nas trevas do não-sentido: "Em ti está a fonte da vida, na tua luz vemos a luz" (Salmo 36,10).

Perguntas e olhares

O relato da cura do homem nascido cego é tecido à volta de uma longa série de perguntas (dezasseis). Vou tentar resumi-las em sete. As perguntas e respostas confrontam-nos com diferentes atitudes e olhares. Este evangelho também nos leva a fazer perguntas para tomarmos consciência da qualidade do nosso olhar e para vermos onde estamos na nossa jornada de iluminação baptismal.

A passagem começa por dizer que "Jesus, passando, vê" .... Jesus é Aquele que passa e vê, como o Samaritano na parábola: "passando, viu e teve compaixão dele" (Lucas 10). E ele continua a passar e a olhar-nos com compaixão. Mas somos cegos e muitas vezes nem sequer reparamos, habituados como estamos a passar e a não ver, ou talvez a olhar ou ser olhados com indiferença ou comiseração.

1. "Rabino, quem pecou, ele ou os seus pais, para que tenha nascido cego?"

"Jesus, ao passar, viu um homem cego de nascença". Os apóstolos também o viram e fizeram uma pergunta: "Quem pecou...?". Eis o olhar do preconceito, que culpa mesmo antes de tentar compreender a situação do outro!

2. "Não é aquele que estava ali sentado a mendigar?"

Os seus vizinhos e conhecidos perguntam-se: é realmente ele? Sim, sou eu! E como é que ele nos vê agora? Foi o homem chamado Jesus! E onde está ele? Não sei. E tudo acaba aí! É um olhar de curiosidade, superficial, que não está interessado em procurar, em aprofundar o que vê, mesmo que seja algo sem precedentes como um milagre.

3. "Como pode um pecador realizar tais sinais"?

Entra em cena o olhar inquisidor dos fariseus, que querem investigar se a lei foi respeitada. Parece que transparece um vislumbre de luz: "Como pode um pecador realizar um sinal deste género?", mas extingue-se de imediato. Eles não querem saber se um cego foi curado, porque não se preocupam com o bem da pessoa! Pouco lhes interessa a grandeza do sinal, mas só se importam que a lei do Sábado não seja transgredida!

A testemunha é interrogada. O seu olhar entrou num processo de iluminação. Quando lhe é perguntado: "Tu, que dizes dele, já que ele te abriu os olhos?" Jesus já não é apenas "um homem chamado Jesus", mas "ele é um profeta!".

4. "É este o vosso filho, que dizeis ter nascido cego? Como é que ele vê agora?

Os guardiães da lei não querem admitir a realidade porque ela não se enquadra no seu estado mental. A vida, para eles, não é autónoma. A realidade, também ela, deve submeter-se à lei! E questionam os seus pais que, por medo, se afastam do filho: "Não sabemos!". O olhar do medo não é solidário, mas abandona o outro ao seu destino, seja ele mesmo um filho!

5. "Nasceste todo em pecado e ensinas-nos?"

O cego que vê é novamente questionado, numa tentativa de o intimidar, de o apanhar em flagrante, de modo a salvar a lei e a eles mesmos, a sua posição como detentores do poder. Os fariseus ostentam todo o seu conhecimento: "Dá glória a Deus! Sabemos que este homem é um pecador". "Sabemos que... Nós sabemos!" Eles sabem tudo! A testemunha, pela sua parte, diz: "Uma coisa só eu sei: estava cego e agora consigo ver!". Eles insistem: "O que é que ele te fez? Como é que ele te abriu os olhos?". O cego que agora vê, cada vez mais confiante, torna-se ousado: "Porque é que o querem ouvir novamente? Quereis também tornar-vos seus discípulos?". E aqui é desencadeada a fúria do olhar da mentira, que não admite ser desafiado, de ser questionado: "Nasceste todo em pecado e ensinas-nos?" E expulsam-no. A escuridão torna-se mais espessa e fecha-se sobre a luz: "A luz brilha na escuridão, mas a escuridão não a recebeu" (João 1,5).

6. "Tu, acreditas no Filho do Homem?"

Então Jesus procurou-o e ao encontrá-lo também o interrogou: 'Acreditas, acreditas no Filho do Homem? Ele respondeu: "E quem é ele, Senhor, para que eu acredite nele? Jesus disse-lhe: Já o viste: é ele quem te fala. E ele disse: Eu creio, Senhor! E prostrou-se diante dele". É o olhar da fé. O cego está completamente inundado de Luz!

7. "Também nós somos cegos?"

A história termina com uma afirmação perturbadora de Jesus: "É para um julgamento que eu vim a este mundo, para que aqueles que não vêem possam ver, e aqueles que vêem fiquem cegos", seguida de uma pergunta preocupante, que, na verdade, todos nós nos devemos colocar: "Será que também somos cegos? A primeira iluminação é reconhecer que somos cegos! "Se fosseis cegos, não teríeis pecado algum; mas porque dizeis: 'Nós vemos', o vosso pecado permanece. Há um pecado “bom”, salvífico, que nos abre à misericórdia de Deus. E há um pecado 'mau', malfeitor, o daquele que se sente justo, em ordem, que nos fecha à graça.

Para concluir...

Convido-vos a reler o texto da segunda leitura: 'Irmãos, outrora estáveis nas trevas, agora sois luz no Senhor'. Por isso, comportai-vos como filhos da luz" (Efésios 5,8-14). A possibilidade de cair de novo na escuridão é um risco diário. Tomar consciência da nossa cegueira (Apocalipse 3,17-18) e cuidar do brilho do nosso olhar (Mateus 6,23) são uma tarefa quaresmal. Gritemos também ao Senhor, como Bartimeu: Senhor, que eu recupere a minha visão!

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Castel d'Azzano (Verona), Março de 2023

Domingo IV da Quaresma

No Evangelho deste IV Domingo da Quaresma, Jesus apresenta-se como "a luz do mundo"; a sua missão é libertar homens e mulheres das trevas. Aderir à proposta de Jesus é enveredar por um caminho de liberdade e de realização que conduz à vida plena. Nós, não podemos fechar-nos num pessimismo estéril, decidir que o mundo "está perdido" e que à nossa volta só há escuridão... No entanto, também não podemos esconder a cabeça na areia e dizer que tudo está bem. 

A realização plena do homem continua a ser a prioridade de Deus. Jesus Cristo, o Filho de Deus, veio ao encontro dos homens e mostrou-lhes a luz libertadora: convidou-os a renunciar ao egoísmo e auto-suficiência que geram "trevas", sofrimento, escravidão e a fazerem da vida um dom, por amor. Aderir a esta proposta é viver na "luz". 

ORAÇÃO 
Nós Te louvamos, ó Pai, porque nos julgas não segundo as aparências, mas olhas o nosso coração. Nós Te bendizemos pelo teu Espírito que nos dás e que faz de nós um povo real e sacerdotal. 
Nós Te pedimos pelos pais e pelos educadores, pelas autoridades nas nossas sociedades, responsáveis pelas boas escolhas. 
Nós Te damos graças, Cristo, Luz do mundo, que Te levantaste de entre os mortos, Tu que nos iluminas desde o nosso batismo. 
Nós Te pedimos: arranca-nos das trevas, que o teu Espírito nos faça viver como filhos e filhas da luz, e que Ele produza em nós frutos de bondade, de justiça e de verdade, que Ele nos torne capazes de agradar a Deus. 
Nós Te bendizemos pela nova criação realizada pelo teu Filho, que remodelou a nossa humanidade, e pela cura dos nossos olhos, quando estão fechados ao próximo e à luz da tua presença.

João 9,1-41

O que é receber a luz, o que é passar a ver?
É ganhar uma nova visão das coisas

Estes domingos, estes três domingos do meio da Quaresma, nós lemos o Evangelho de São João. Evangelhos desde a antiguidade cristã, destinados a explicar aos catecúmenos e a lembrar aos batizados, o significado do seu batismo.

Domingo passado tivemos a explicação do símbolo da água, com o Evangelho da Samaritana.

Este domingo, temos a explicação do símbolo da luz, com a cura do cego de nascença. No próximo domingo, teremos a explicação do símbolo da vida com a ressurreição de Lázaro.

São assim, três grandes símbolos: a água, a luz, a vida que explicam aquilo que é o impacto do dom de Jesus na vida de cada um de nós. Nós precisamos da Luz. Nós precisamos da Luz.

É interessante a situação que o Evangelho de São João nos relata, com a cura deste cego de nascença: há a cura do cego e há depois uma querela jurídica para saber se Jesus tinha ou não legitimidade, para fazer aquele sinal. E depois há o reencontro, o segundo encontro de Jesus com o cego.

O que é que nós vemos nas duas primeira partes, na cura do cego e na querela jurídica que se lhe segue? O cego tem consciência que é cego. Isto é, tem consciência da sua carência, da sua necessidade, da sua real situação.

Aqueles que promovem a querela em torno à cura e à legitimidade de Jesus curar ou não em dia de sábado, veem e não veem ao mesmo tempo, mas não têm consciência da sua cegueira.

E, no fundo, este é o ponto primeiro que o relato evangélico nos coloca:

Será que nós temos consciência da necessidade de Jesus? Será que nós estamos conscientes de quanto precisamos Dele?

Porque às vezes o nosso problema, e foi esse o problema dos fariseus, é perdermo-nos numa autojustificação. Isto é, nós temos explicação para tudo, sabemos tudo, percebemos tudo, vemos tudo, e nesta soberba, Deus não entra no nosso coração porque o nosso coração é pedra, o nosso coração é porta blindada, o nosso coração é um fecho de correr.

Só quando estamos conscientes da nossa fragilidade, e da nossa fraqueza, só quando percebemos até ao fim e até ao fundo, quanto carentes estamos do perdão, da misericórdia e da ternura de Deus é que, de facto, essa misericórdia é derramada nos nossos corações.

Ganhar consciência de que precisamos de ser tocados por Jesus, ser lavados no seu sangue, na água batismal, ser iluminados pela sua luz.

O que é receber a luz, o que é passar a ver? É ganhar uma nova visão das coisas.

Os Evangelhos têm muitas curas a cegos. E essas curas têm um papel simbólico muito importante. Porque a cegueira tem a ver com a nossa maneira de viver. Às vezes nós estamos cegos mas não temos consciência disso. Achamos que continuamos a ver. É uma imagem que já Platão utiliza na Alegoria da Caverna, i.e., nós pensamos que vemos, mas afinal estamos reféns das imagens e dos fantasmas.

Precisamos de ganhar uma nova visão. E essa nova visão, esse novo entendimento, essa nova maneira de compreender as coisas, é a luz que Cristo nos dá.

O Evangelho de São João tem uma particularidade em relação aos outros 3 Evangelhos.

É que, enquanto os outros três foram escritos para pessoas que ouviam pela primeira vez falar de Jesus, digamos, são os Evangelhos do primeiro anúncio, pensa-se que o Evangelho de São João foi escrito para pessoas que já eram cristãs e por isso não se tratava de aprender o b-a-ba sobre Jesus, o início, mas trata-se sim de um segundo encontro, de um aprofundamento da própria fé.

E, por isso, é muito interessante que no Evangelho de São João, as personagens não aparecem uma só vez, aparecem várias vezes, duas ou três vezes. Por exemplo, o Evangelho da Samaritana, ela aparece-nos a falar com Jesus mas depois aparece-nos a falar com as pessoas da sua terra. No Evangelho de Nicodemos, ele aparece-nos à noite a falar com Jesus mas depois aparece-nos com José de Arimateia a perfumar o corpo de Jesus e a sepultar Jesus.

As personagens não aparecem uma vez só, aparecem uma segunda e uma terceira vez.

Também assim com o cego. Ele era mendigo, era cego, foi curado.

Foi curado, mas acreditava que tinha sido um profeta. Não que era o Messias de Deus que o tinha curado. E então, depois daquela querela toda, Jesus encontra-o pela segunda vez.

E diz-lhe: “Acreditas no Filho do Homem?”

E ele pergunta: “Quem é Senhor, ainda não o vi”. Quer dizer, a cura não é apenas a cura da cegueira, é a cura é de uma cegueira espiritual.

E Jesus diz uma coisa absolutamente comovente, conjugada no verbo presente: “É este que fala agora contigo”. E o homem cai de joelhos, e diz: “ Senhor, eu creio”.

Queridos irmãos,

Nós estamos a viver o Tempo da Quaresma, nós já somos cristãos há um ano, há cinquenta anos, há mais ou menos tempo. Hoje temos aqui três irmãos nossos catecúmenos que se estão a preparar para receber o batismo no tempo pascal.

O que é verdadeiramente para nós o segundo encontro com Jesus?

O segundo encontro com Jesus é recebermos a luz de uma maneira nova.

A Quaresma tem que ser um sobressalto. Tem de nos tornar mais cristãos, melhores cristãos. Tem de nos dar uma compreensão mais lata do mistério de Cristo e do mistério do próprio homem e do mistério da vida.Com Cristo aprendemos uma nova gramática, um novo dicionário, um novo léxico da própria realidade.

Se, antes da Quaresma pensávamos uma coisa, ao chegar à Pascoa o nosso olhar tem que estar lavado. Em Itália, há uma tradição muito bonita, no Véneto, que é na manhã de Páscoa as pessoas vão ao rio lavar os olhos. E nós estamos aqui a lavar os nossos olhos, com esta palavra. Isto é, a lavar o nosso entendimento. A receber esta luz que é o próprio Cristo.

E receber a luz, implica muitas vezes, ver as coisas de uma forma completamente diferente.

Por exemplo, a 1ª leitura, a escolha de David como rei. Este homem, Jessé, tinha doze filhos e naturalmente o que podia ser rei era o mais velho, e no impedimento do mais velho, o filho segundo. Mas Deus vai escolher aquele que nem está em casa. Vai escolher o mais novo, aquele que, do ponto de vista jurídico, não tem direito algum. E Deus vai escolher o mais improvável, que é aquele rapaz chamado David. Deus escolhe o mais improvável, o mais pequenino, aquele que não se espera, o que não está legislado, o que nos surpreende, que não tem a ver com o nosso ponto de vista. Deus escolhe. Deus escolhe fora do nosso baralho e para lá das nossas contas.

E receber a luz de Cristo é nos abrirmos a um novo entendimento. No fundo, nos abrimos às surpresas de Deus. Ao desconcerto do modo como ele atua. À liberdade de Deus ser Deus em nós. À sua vontade que é sempre nova. Nos abrirmos. Nos abrirmos.

Que hoje nos sintamos como o homem cego. Este homem o qual Jesus tem misericórdia e cura, a quem lava os olhos, e a quem diz uma palavra. A quem encontra uma vez e uma outra vez. Uma segunda oportunidade, para lhe dizer: “Acreditas no Filho de Deus?”. Ele é aquele que está a falar connosco neste momento. O que Jesus diz ao cego, diz a cada um de nós : “Sou eu que estou a falar contigo, agora, agora”.

Homilia do Pe. Tolentino Mendonça, na Capela do Rato, a 30 de março de 2014

José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org