Após os três domingos que nos mostraram em grandes traços retratos do Ressuscitado (2º, 3º e 4º), temos agora três domingos para as despedidas (5º, 6º e Ascenção), referindo-se todos à hora em que Jesus deixou este mundo e foi para o seu Pai. Cristo dá então aos seus discípulos as suas últimas recomendações.

Deus é uma palavra insuficiente!

João 14,1-12

Com os últimos domingos do tempo pascal, entramos na preparação para as festas da Ascensão e do Pentecostes. São os domingos da despedida. O evangelho deste domingo e do próximo oferece-nos passagens do capítulo 14 do evangelho de São João, o discurso de despedida de Jesus aos seus discípulos na última ceia. É o seu testamento, antes da sua paixão e morte. Porquê retomar estes textos precisamente no tempo pascal? A Igreja segue a antiga tradição de ler durante este tempo os cinco capítulos de João relativos à Última Ceia, de 13 a 17, nos quais Jesus apresenta o sentido da sua morte, a sua "Páscoa". Além disso, poderíamos dizer que, tratando-se do seu legado, o testamento deve ser aberto após a sua morte. Jesus deixa-nos a sua herança, os seus bens, oferece-os a nós, seus herdeiros.

Não se perturbe o vosso coração!

Convém sublinhar que o texto do evangelho de hoje é um dos mais densos do evangelho de João. O contexto, o da última ceia após o anúncio da traição e da sua morte violenta, é triste e dramático. Jesus não esconde aos seus a gravidade dessa hora, mas consola-os, convidando-os a confiar. É a hora da provação, da crise, e a noite escurece no coração de todos. É uma palavra dirigida também a nós que, depois da "euforia" pascal, caímos de novo na dureza do nosso quotidiano. "Tende fé em Deus e tende fé também em mim", é a sua palavra de ordem! 

Vou preparar-vos um lugar!

Cerca de dez vezes, nesta passagem, encontramos verbos e substantivos ligados ao movimento. O homem é um viajante ("homo viator"). A fé implica também pôr-se a caminho:"Sai da tua terra... para a terra que eu te mostrarei" (Génesis 12,1). Foi assim para Abraão e continua a ser assim para nós. A Bíblia está cheia de estradas e caminhos, de bifurcações e encruzilhadas, de projectos e esperanças. "Feliz o homem que tem no seu coração os teus caminhos!" (Salmo 84,6). Mas o homem, no seu coração, procura uma morada estável onde possa finalmente encontrar descanso (Carta aos Hebreus 3-4 e 13,14). Jesus, com a sua "Páscoa", vai preparar uma morada para nós e voltará para nos levar consigo. Por conseguinte, a meta final, o objectivo do nosso caminho é a morada, o regresso a casa. Que morada é essa? É a morada do Pai. Mas onde é que o Pai habita? "Eu estou no Pai e o Pai está em mim",porque se habita onde se é amado! (Silvano Fausti). E onde está a minha morada? Onde me sinto em casa, onde está a minha identidade, o meu verdadeiro eu? O coração do Pai é realmente a minha morada?

[Permitam-me um parêntesis. Infelizmente, o sentido da vida, ou seja, a sua orientação, parece estar a faltar hoje em dia. Mais do que nunca, o que o dramaturgo francês Eugène Ionesco disse um dia torna-se realidade: "O mundo perdeu o rumo, não porque lhe faltem ideologias orientadoras, mas porque elas não levam a lado nenhum. Na gaiola do seu planeta, os homens movem-se em círculos porque se esqueceram de que podem olhar para o céu". Alguns pensadores vão muito mais longe, como o filósofo italiano Umberto Galimberti, que acusa a tradição judaico-cristã de ter introduzido na cultura ocidental o optimismo, a ilusão de que o "eu" está acima da natureza e pode dar-se um projecto. E denuncia a virtude da esperança. Cultivar a esperança é criar o desespero! A vida não tem sentido e o indivíduo está à mercê da natureza e existe em função da espécie. Segundo ele, é preciso regressar à visão grega do "drama" da vida (fatum, destino) e do ritmo cíclico da história]. 

Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida.

Jesus parte do princípio de que os apóstolos compreenderam isto: "E do lugar para onde eu vou, vós conheceis o caminho". Mas eles não o compreenderam, tal como nós também não o compreendemos. Tomé é o seu e nosso porta-voz: "Senhor, não sabemos para onde vais; como podemos saber o caminho?" E aqui Jesus dá-nos uma sua surpreendente e novíssima auto-definição: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida". Caminho, Verdade e Vida, três palavras que são basicamente equivalentes e podem ser aplicadas ao próprio Deus. O caminho é o amor, a verdade é o amor, a vida é o amor. E acrescenta: "Ninguém vem ao Pai senão por mim!". Jesus é o mediador entre Deus e os homens. Não como um intermediário neutro entre os dois, mas como aquele que toma em si as duas partes. Ele é a Aliança!

Quem me viu, viu o Pai! 

Nesta altura, ouvindo Jesus falar tanto do Pai, Filipe intervém e faz uma bela oração: "Senhor, mostra-nos o Pai, e isto nos basta". É o sonho de Moisés (Êxodo 33,18-20) e o desejo secreto de todo o homem: "Quando irei contemplar a face de Deus?" (Salmo 42,3; 27,8-9). A este pedido, porém, Jesus fica desiludido: "Há tanto tempo que estou contigo e não me conheces, Filipe? Quem me vê a mim, vê o Pai". É a mesma decepção que Jesus sente em relação a nós: "Mas como é que, há tantos anos que estás comigo, que vês o que eu faço e ouves a minha palavra, e ainda não me conheces? Quando te lavei os pés, era o Pai que estava ajoelhado diante de ti!" Na realidade, Jesus não é como Deus (que nós não conhecemos!), é Deus que é como Jesus! (Alberto Maggi). Ele é a imagem perfeita do Deus invisível (Carta aos Colossenses 1,15). "O que era invisível do Filho era o Pai, e o que era visível do Filho era o Pai" (Santo Ireneu). Por três vezes, Jesus repete esta mútua habitação: "Eu estou no Pai e o Pai está em mim".

Impressionou-me a declaração do monge Enzo Bianchi, numa entrevista há dois meses, quando lhe perguntaram quem era Deus para ele: "A palavra 'Deus' sempre me pareceu ambígua, insuficiente. Sinto uma grande relação com Jesus Cristo. Penso que vou ter com Deus, que o vou conhecer, através de Jesus Cristo, mas não sei quem é Deus, não sabemos nada, nunca ninguém o viu, falamos demasiado dele sem o conhecer. Na minha opinião, é um dos maiores erros continuar a falar de Deus quando Deus continua a ser desconhecido, "O Mistério". Para mim, Jesus Cristo é suficiente para me levar a Ele.... Não passo o tempo a questionar Deus ou a proclamá-lo". E no seu comentário ao Evangelho de hoje, diz: "Às vezes pergunto-me se nós, cristãos, herdeiros do mundo grego, não acabamos por professar um teísmo com um verniz cristão. Temos de ter a coragem de dizer que, para nós cristãos, Deus é uma palavra insuficiente".
P. Manuel João Pereira Correia mccj
Castel d'Azzano (Verona), Maio de 2023

João 14,1-12

“Eu sou o caminho, a verdade e a vida”

Após os três domingos que nos mostraram em grandes traços retratos do Ressuscitado (2º, 3º e 4º), temos agora três domingos para as despedidas (5º, 6º e Ascenção), referindo-se todos à hora em que Jesus deixou este mundo e foi para o seu Pai. Cristo dá então aos seus discípulos as suas últimas recomendações.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 5º Domingo do Tempo Pascal, do Ciclo A. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.

Referências bíblicas

  • 1ª leitura: «Eles escolheram sete homens cheios do Espírito Santo» (Atos 6,1-7)
  • Salmo: Sl. 32(33) R/ Sobre nós venha, Senhor, a vossa graça, da mesma forma que em vós nós esperamos!
  • 2ª leitura: «Vós sois a raça escolhida, o sacerdócio do Reino» (1 Pedro 2,4-9)
  • Evangelho: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida» (João 14,1-12)

Rumo à fonte

«Ninguém vai ao Pai senão por mim.» Mas por que é preciso ir para o Pai? Há muita gente que não sente esta necessidade. Muitos se contentam com viver o dia a dia, sem se preocuparem com esta Presença que nos conclama a nos movermos e a nos abrirmos para o Outro, para outro lugar.

Simplificando, podemos dizer que, sem escolher dirigirmo-nos a este encontro, estaríamos jogados no mundo sem nenhum referencial verdadeiro, e contando somente com a certeza da morte que virá bloquear toda saída. «Aqui estamos nós de volta em círculo para lugar nenhum.»

Ir para o Pai é buscar reunir-se à fonte inesgotável de toda a vida, de tudo o que vive. Todos os textos bíblicos que nos falam da sede, do desejo das águas vivas, do Salmo 42 ao encontro de Jesus com a Samaritana, em João 4, têm por objeto este desejo de viver, de se reunir ao Ser, lugar do perpétuo nascimento e renascimento.

Alguns chamam isto de buscar a felicidade, mas vê-se imediatamente a ambiguidade desta forma do desejo fundamental. De fato, ao que parece, a felicidade pode consistir no acesso à posse disto ou daquilo ou de tal ou qual situação.

Em «coisas», portanto. Ora a nossa verdade não pode ser encontrada em «alguma coisa»; necessita de alguém. Não de qualquer um, mas d’Este que funda todos os outros e que, através deles, vem nos encontrar. É preciso, portanto, «passar por», por todos os outros, próximos ou distantes, para que se possa ir rumo ao Todo-Outro que nos funda.

Jesus, aliança entre o Pai e o mundo

Jesus, o Cristo, não foi nomeado nem uma vez no parágrafo anterior. Esteve subjacente, no entanto, em cada linha. Quem nos prepara um lugar, uma «morada», lá onde está a fonte de onde jorra a vida? Jesus recapitula todos os «outros» pelos quais temos de passar, pois eles são a sua presença sensível.

Pensemos no «a mim o fizestes» de Mateus 25. Todos, de fato, viemos ao mundo nele, por ele e para ele (João 1,1-5 e Colossenses 1,15-17). Ele é, portanto, o único mediador entre nós e o invisível, porque recapitula tudo o que nos fala em nome de Deus, tudo em que Deus investiu-se a Si mesmo, inclusive o mundo mineral, o vegetal e o animal (ver o Salmo 19).

Tudo pode tornar-se caminho para Deus, porque tudo está n’Ele. A palavra ‘mediador’ deve ser bem compreendida. Jesus não é um intermediário, no sentido de alguém neutro entre as duas partes que cuidam de se acordar: nele estão as duas partes. Ele é a aliança entre elas. É preciso citar aqui mais uma vez Santo Irineu (Contra as Heresias 4,6): «O que era invisível do Filho era o Pai, e o visível do Pai era o Filho

Conforme Jesus havia dito: «Quem me viu, viu o Pai». Quando pronunciou estas palavras, estava no limiar da sua Paixão, da sua passagem deste mundo para o seu Pai. Ele, em si mesmo, é esta passagem que se realiza sem cessar. E nós somos assumidos neste movimento, que nos transporta de uma só vez para Deus e para nós próprios: para o lugar de repouso do nosso desejo.

O caminho, a verdade, a vida

Notemos que Jesus não diz que está a caminho, no ato de percorrê-lo. Ele, em si mesmo, é o caminho. Não está a caminho da verdade: ele é a verdade. E a vida está aí, nele. Estes três termos são no fundo equivalentes. A verdade da nossa vida é estar a caminho, em Cristo.

Para onde? Para a nossa entrada em Deus, a título de filhos; o caminho percorrido no Filho e com o Filho faz de nós filhos de Deus, na hora da finalização completa da nossa criação. Daqui até lá, estamos na mesma situação de São Paulo: «Não que eu já o tenha alcançado ou que já seja perfeito, mas prossigo para ver se o alcanço, pois que também já fui alcançado por Cristo Jesus» (Filipenses 3,12).

Sabemos que a imagem do caminho a ser percorrido marca todo o relato bíblico, tendo como centro o Êxodo de Israel. Mas este percurso começa bem mais cedo, com Noé ou Abraão. Da nossa parte, isto supõe uma abertura constante para o novo, para a mudança. O que é difícil, porque não se trata de mudar por mudar, mas de um crescimento na qualidade da nossa relação com os outros e, portanto, da nossa relação com Deus.

Conforme escreve Paulo aos Filipenses (2,5), temos de fazer nossas as atitudes que foram as do Cristo. Quais atitudes? Os Evangelhos nos mostram o amor de Cristo para com as pessoas com quem se encontrou, culminando este amor ao manifestar-se aos olhos de todos na hora pascal. Olhemos para Jesus: quem o vê, vê o Pai.
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