É o domingo em que confessamos a Triunidade de Deus. Em verdade, a Triunidade de Deus é confessada pela Igreja sempre, em cada liturgia, mas, recentemente, sentiu-se a necessidade de instituir uma festa teológico-dogmática, que não é conhecida nem pela antiguidade cristã, nem, ainda, pela tradição cristã oriental. No entanto, é a ocasião de um louvor, de um agradecimento, de uma adoração do mistério do nosso Deus, comunhão de amor entre Pai, Filho e Espírito Santo.

Celebramos a Solenidade da Santíssima Trindade, onde somos convidados a contemplar Deus que é amor, que é família, que é comunidade e que nos criou para nos fazer comungar nesse mistério de amor. O Deus da comunhão e da aliança, apostado em estabelecer laços familiares com cada um de nós, auto-apresenta-Se: Ele é clemente e compassivo, lento para a ira e rico de misericórdia. Deus que é comunhão, que é família pretende atrair os homens para essa dinâmica de amor. Somos chamados a contemplar um Deus cujo amor por nós é tão grande, a ponto de enviar ao mundo o seu Filho único; e Jesus, cumprindo o plano do Pai, fez da sua vida um dom total, até à morte na cruz, a fim de nos oferecer a vida definitiva. Nesta fantástica história de amor que vai até ao dom da vida do Filho único e amado, plasma-se a grandeza do coração de Deus.

O universo, a vida, nós, tudo navega no infinito mar do Amor!

João 3,16-18

 

Durante os noventa dias do tempo da Quaresma e da Páscoa, tendo como centro a Semana Santa da Paixão-Morte-Ressurreição de Jesus, experimentámos a acção salvífica do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Neste domingo, depois do Pentecostes, a Igreja convida-nos a contemplar esta acção de amor das três pessoas individuais em Deus na sua unidade e sinergia. "Esta festa é como um oásis de contemplação, depois da plenitude do Pentecostes" (P. Angelo Casati).

Hoje, portanto, celebramos a Festa, de facto, a Solenidade da Santíssima Trindade! Sim, porque existe uma hierarquia das festas. No topo, temos as solenidades, que têm precedência sobre as outras celebrações litúrgicas, com excepção dos domingos do Advento, da Quaresma, da Semana Santa e do período pascal, em que são geralmente transferidas para a segunda-feira seguinte. A um nível intermédio situam-se as festas. No último lugar da escala estão as memórias dos santos e dos acontecimentos especiais, que podem ser liturgicamente "obrigatórias" ou "facultativas".

O que celebramos nesta Solenidade? Um "mistério"? Sim, mas não como um quebra-cabeças que "humilha" a inteligência, mas como uma realidade de plenitude que ultrapassa toda a inteligência e nos enche de admiração. A Encarnação de Deus em Jesus de Nazaré e a Trindade, ou seja, um Deus trino, são os dois mistérios essenciais da fé cristã. Só quem professa ambos é considerado cristão.

Do exterior à intimidade de Deus

A unicidade de Deus (monoteísmo) foi alcançada pela inteligência humana através da filosofia. É possível a cada um chegar a esta "exterioridade" de Deus através da sua epifania na criação. À trindade de pessoas no único Deus, porém, foi a fé em Jesus que nos conduziu, porque ninguém tinha visto Deus, foi Jesus que o deu a conhecer (João 1,18). Não se trata, porém, de um conhecimento teórico ou dogmático, de pouca ou nenhuma utilidade, mas de uma introdução na intimidade de Deus, de uma imersão no imenso e surpreendente mistério de Deus. 

Hoje vivemos projectados para o mundo e para o universo, desejosos - e com razão! - de conhecer os mistérios do cosmos e da vida. Mas poucos estão interessados em mergulhar no Mistério de Deus! Além disso, a humanidade sempre procurou conhecer o "cosmos" que traz dentro de si: "conhece-te a ti mesmo"! E, apesar dos progressos espantosos das ciências, continuamos a ser um enigma para nós próprios. Talvez porque só o conhecimento de Deus e do seu Mistério pode revelar verdadeiramente o homem a si mesmo! 

"Deus-Trindade, o Mistério insondável, quem sabe, talvez seja o Fundo do ser, a criatividade do Universo, a Beleza do belo, a Bondade do bom, a Vida do vivo, a Informação do Cosmos, a Alma do mundo, a Consciência do Universo, a Ternura dos amantes, a Levedura da matéria, o Amor que me pede a cada momento para me exprimir plenamente e para captar a sacralidade de tudo o que existe" (Paolo Scquizzato).

A Trindade, uma exigência do amor

"Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna". Eis a afirmação mais extraordinária e revolucionária de toda a Sagrada Escritura! Deus é Aquele que não pode fazer outra coisa senão amar! É a primeira vez que encontramos o verbo "amar" no evangelho de João. Na primeira parte do seu evangelho, prevalece a fé, mas depois, na segunda parte, predomina o amor. A relação suprema do cristão com o Senhor é o amor. E a missão da Igreja é dizer a todos: Deus ama-te!

Na sua primeira carta, São João desenvolve esta verdade ao ponto de afirmar: "Deus é Amor" (1 João 4,8). A Trindade é uma exigência do amor: Deus é Amor, logo é Trindade! Caso contrário, seria um Deus solitário, solipsista e egocêntrico. Se Deus criou o homem "à sua imagem e semelhança"; se Deus disse que "não é bom que o homem esteja só"; se Deus criou a humanidade como família... (Génesis 1,26-27; 3,18), o relato bíblico deve indicar, de alguma forma, a natureza do Criador. Naturalmente a nossa linguagem é antropomórfica e, portanto, radicalmente inadequada. Deus será sempre Outro! 

Na meditação deste Mistério, permanece insuperável a intuição de Santo Agostinho, que define o Pai como o amante, o Filho como o amado e o Espírito Santo como o amor que os une. 

Enquanto não levarmos a peito esta novidade evangélica, corremos o risco de fazer de Deus um ídolo, construído à "nossa imagem e semelhança," desde a versão de um deus juiz até às distorções mais perversas, como podemos ver em certos fundamentalismos.

Exercício diário de oração para a semana

1. Fazer o sinal da cruz no início do dia, com a consciência especial de o viver em nome da Trindade. E no final do dia, antes de se entregar ao sono, repete-o como uma imersão no infinito Mar de Amor.

2. Durante o dia, repetir frequentemente, como ritmo do coração: Deus amou-me tanto que me deu o seu Filho! 

Trindade Eterna, sois como um mar profundo, no qual quanto mais procuro, mais encontro; e quanto mais encontro, mais cresce a sede de vos procurar. Vós sois insaciável; e a alma, saciando-se no vosso abismo, não se sacia, porque permanece com fome de Vós, sempre mais desejosa de Vós, ó Trindade eterna, desejando ver-Vos com a luz da vossa luz. (Santa Catarina de Sena).

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Castel d'Azzano (Verona), Junho de 2023

João 3,16-18

Uma comunhão de amor

Comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre as leituras deste domingo, festa da Santíssima Trindade. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

É o domingo em que confessamos a Triunidade de Deus. Em verdade, a Triunidade de Deus é confessada pela Igreja sempre, em cada liturgia, mas, recentemente, sentiu-se a necessidade de instituir uma festa teológico-dogmática, que não é conhecida nem pela antiguidade cristã, nem, ainda, pela tradição cristã oriental. No entanto, é a ocasião de um louvor, de um agradecimento, de uma adoração do mistério do nosso Deus, comunhão de amor entre Pai, Filho e Espírito Santo.

Alguém pode se surpreender que o texto evangélico escolhido pela Igreja para esta festa fala manifestamente apenas do Pai e do Filho, enquanto parece fazer silêncio sobre o Espírito Santo. Na realidade, o Espírito está presente como “amor de Deus” e como “companheiro inseparável do Filho” (Basílio de Cesareia), porque onde está escrito que “Deus amou tanto o mundo”, o cristão compreende que Deus amou o mundo com o seu amor, que é o Espírito Santo do Pai e do Filho.

Foi longo o caminho da revelação e, portanto, da adesão a ela por parte dos fiéis em relação à Triunidade de Deus. Gregório Nazianzeno reconhece isso com fineza: “O Antigo Testamento proclamava de modo claro o Pai, de modo mais obscuro o Filho; o Novo Testamento manifestou o Filho e fez entrever a divindade do Espírito; ora, o Espírito (…) concede-nos uma compreensão mais clara de si mesmo (…) Assim, através de ascensões, avanços, progressos de glória em glória, a luz da Triunidade brilhará com ainda mais clareza” (Discursos Teológicos 31, 26).

A Triunidade de Deus não é uma fórmula cristalizada, e não é preciso nomear sempre as três pessoas para evocá-la: Pai, Filho e Espírito Santo são termos que indicam uma vida de amor plural, comunitário, são uma comunhão que nós tentamos expressar com as nossas pobres palavras, sempre incapazes de dizer o mistério, de expressar a revelação do nosso Deus.

Não é por acaso que, muitas vezes, para dizer algumas palavras nossas sobre a Triunidade de Deus, depois de séculos, ainda recorremos à intuição de Agostinho, que vê no Pai o amante, no Filho o Amado, e no Espírito o Amor que intercorre entre os dois. E São Bernardo de Claraval, de sua parte, lia a Triunidade de Deus como um beijo “circular” e eterno: “O Pai dá o beijo, o Filho o recebe, e o próprio beijo é o Espírito Santo, aquele que está entre o Pai e o Filho, a paz inalterável, o amor indiviso, a unidade indissolúvel” (Sermões sobre o Cântico dos Cânticos 8, 2).

Mas nos detenhamos sobre o trecho evangélico. Estamos no contexto do colóquio noturno entre Jesus e Nicodemos (cf. Jo 3, 1-21), um “mestre de Israel” (Jo 3, 10) que representa a sabedoria judaica em diálogo com Jesus. Este é um diálogo fatigante para Nicodemos, que tem fé em Jesus, mas se esforça para acolher a novidade da revelação trazida por esse rabi “que veio de Deus”. Jesus responde às perguntas do seu interlocutor, mas a última resposta, a mais longa, parece contida dentro de uma meditação do autor do quarto Evangelho.

Portanto, nos versos que hoje a Igreja nos oferece, é Jesus que fala ou se trata de uma meditação do evangelista? Em todo o caso, são palavras de Jesus certamente não relatadas tais e quais, mas meditadas, compreendidas e ditas novamente no tecido de uma comunidade cristã que tentou acreditar nelas e vivê-las.

Assim inicia o trecho: “Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crer (…) tenha a vida eterna”. Pouco antes, está escrito: “É preciso que o Filho do Homem seja levantado, para que todo o que nele crer tenha a vida eterna” (Jo 3, 14-15). Essas duas afirmações são paralelas e explicam-se mutuamente.

Para que cada ser humano possa crer, aderir ao Filho do Homem e pôr a sua confiança nele, é preciso que ele conheça o amor de Deus por toda a humanidade, por este mundo. Tal amor de Deus teve a sua epifania em um ato preciso, datável, localizável na história e na terra: no dia 7 de abril do ano 30 da nossa era, um homem, Jesus de Nazaré, nascido de Maria, mas Filho de Deus, foi levantado na cruz, onde morreu “tendo amado até o fim” (Jo 13, 1), e, naquele evento, todos puderam ver que Deus amou tanto o mundo a ponto de lhe entregar o seu único Filho, por ele “enviado ao mundo”.

Naquela hora da cruz, “a hora de Jesus”, mais do que nunca foi manifestada a glória de Jesus como glória daquele que amou até o fim, narrando (exeghésato: Jo 1, 18) o amor de Deus através da oferta da sua vida a todos, sem discriminações. Aquela foi a hora da elevação do Filho do Homem, ao qual todos os seres humanos, de todos os séculos e de todas as gerações, olham com ao “transpassado por amor” (cf. Zc 12, 10; Jo 19, 37; Ap 1, 7).

Eis o dom dos dons de Deus: dom gratuito, dom de si mesmo, dom irrevogável e sem arrependimento; dom nunca merecível, mas que deve ser acolhido com fé; dom feito apenas por um amor louco de Deus, que quis se tornar homem, carne frágil e mortal (cf. Jo 1, 14), para estar no meio de nós, conosco, e assim compartilhar a nossa vida, a nossa luta, a nossa sede de vida eterna.

Eis o que aconteceu com a vinda na carne do Filho de Deus e com a descida do Espírito sempre é o companheiro inseparável do Filho; eis o mistério do amor de Deus vivido em comunhão, comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Aquele mundo (kósmos), que, às vezes, no quarto Evangelho, é lido sob o sinal do mal, do domínio de Satanás, “o príncipe deste mundo” (Jo 12, 31; 16, 11; cf. 14, 30), aqui é lido como humanidade, como universo que Deus viu como “coisa boa” (Gn 1, 4.10.12.18.21.25) e “muito boa” (Gn 1, 31), que ele amou até a loucura, até o dom de si mesmo, dom que lhe exigiu despojamento, pobreza, humilhação.

Ser salvo significa passar da morte à vida definitiva, e isso é possível para quem aceita o dom aderindo a Jesus Cristo, aquele que dá o Espírito da vida. Esse dom louco de Deus ao mundo não tem como objetivo o juízo do mundo, mas a sua salvação: Deus quer que a humanidade conheça a vida para sempre, a vida plena, que apenas ele pode lhe dar.

Mas, diante do dom, resta a liberdade humana. O dom é feito sem condições, portanto, pode ser acolhido ou rejeitado. Quem o acolhe, foge do juízo e vive a vida para sempre, mas quem não o acolhe, julga a si mesmo. Não é Deus quem julga ou condena, mas cada um, acolhendo ou rejeitando o amor, entra na vida ou se afasta da fonte da vida, percorrendo uma estrada mortal. Certamente, encontramos aqui expressões de Jesus muito duras, radicais, mas elss devem ser decodificadas e explicadas.

Se Jesus diz que “quem não crê já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito”, ele não diz isso manifestando uma condenação para as multidões de homens e mulheres que não puderam encontrá-lo na história, por serem pertencentes a outros tempos ou a outras culturas. Estes, se viveram a sua existência em conformidade com a existência humana de Jesus, marcada pelo amor aos irmãos e às irmãs, é como se tivessem participado, embora com todos os limites humanos, da vida humana de Jesus; e, assim, sem conhecê-lo, sem professar o seu Nome na fé cristã, conhecerão a vida eterna nele e com ele. Mas quem teve uma vida gravemente disforme à vida humana de Jesus e, até, em contradição com ela, não conhecendo o amor, este já está julgado e condenado: para ele, não há vida eterna.

A festa da Triunidade de Deus deveria não tanto nos induzir a especulações sobre esse mistério inefável, mas sim a fazer experiência da própria Triunidade na Igreja, que é a sua imagem, por ter nascido no coração do Pai, por ser fundada no Filho e por ser reunida pelo Espírito Santo. A Igreja é o lugar em que, dentro do possível para nós, humanos, nos é dado fazer experiência do coração de Deus e da sua comunhão plural.
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