Quarta-feira, 31 de Janeiro de 2024
Inter mirifica” [Entre as maravilhosas invenções da técnica] são as primeiras palavras do primeiro documento publicado pelo Concílio Vaticano II, em 4 de Dezembro de 1963, denominado Decreto sobre a importância dos meios de comunicação social.
[Veja o anexo. Foto: Michael Dziedzic, unsplash]

Logo no segundo parágrafo, os Padres do Concílio reconhecem que “estes meios, rectamente utilizados, prestam ajuda valiosa ao género humano, enquanto contribuem eficazmente para recrear e cultivar os espíritos e para propagar e firmar o reino de Deus”. Todavia, logo a seguir advertem que “os homens podem utilizar tais meios contra o desígnio do Criador e convertê-los em meios da sua própria ruína” e, por fim, exprimem a “angústia pelos danos que, com o seu mau uso, se têm infligido, com demasiada frequência, à sociedade humana”. Este pronunciamento, passados 60 anos, não perdeu a actualidade.

É esta mesma actualidade que motivou o presente estudo. Se, por um lado, devemos continuar a falar de “maravilhosas invenções”, por outro, não podemos ignorar os possíveis danos que as novas tecnologias da comunicação e informação podem infligir à humanidade.

A experiência profissional – de comunicador e missionário, dentro e fora do Instituto comboniano, há mais de três décadas – ensinou-nos que, no mundo da comunicação entre os humanos, há uma sequência de alguns verbos prioritários que, diariamente, deveríamos relacionar e conjugar com particular atenção, antes de falar ou escrever sobre seja o que for. Primeiro, ler, ver e escutar com muita atenção e, depois, avaliar toda a informação recebida, tentando discernir sobre o que é verdadeiro e o que é falso ou distorcido. Ajudar a este discernimento, desde uma perspectiva ética, é um dos principais objectivos deste estudo.

Se nos perguntassem quais dos desafios éticos da comunicação mencionados neste estudo assumem uma maior relevância, tendo em conta a magnitude das alterações em curso, desde o nosso pequeno círculo quotidiano da vida privada à crise da ordem mundial, desde as grandes e rígidas polarizações dos cenários geopolíticos ao uso desproporcional das armas inteligentes, não exitaríamos em dizer que os mais desafiantes e preocupantes são a inteligência artificial (IA) e os algoritmos – estritamente relacionados com a IA –, sobretudo por causa dos seus possíveis riscos. Na verdade, as novas tecnologias digitais estão a assemelhar cada vez mais as máquinas aos seres humanos, ou seja, concedendo às máquinas – perigosamente – processos de decisão determinantes. É por isso mesmo que os responsáveis pelos destinos da humanidade estão cada vez mais conscientes de que é necessário e urgente dar uma ética tanto à IA como aos algoritmos, como se insistia na conferência internacional “Rome Call para a Ética da IA”, realizada no Vaticano, em 2020. Foi durante esta conferência que surgiu o conceito “algor-ética”.

Tanto é verdade que a questão crucial que esteve ao centro da primeira Cimeira da Segurança da Inteligência Artificial 2023 (AI Safety Summit 2023), que se realizou nos dias 1 e 2 de Novembro de 2023, em Bletchley Park (Buckinghamshire), no Reino Unido, foi identificar quais são os usos da IA mais perigosos e, por consequência, devem ser proibidos ou classificados como de alto risco. Nesta Cimeira, os participantes de 28 países e da União Europeia – na sua maioria governantes, investigadores e líderes de empresas no ramo da IA – comprometeram-se, na chamada “Declaração de Bletchley”, a trabalhar em conjunto e a estabelecer uma coordenação global sobre a supervisão do desenvolvimento da IA avançada, de modo a promover os seus benefícios socioeconómicos e a mitigar os riscos da sua utilização indevida e da segurança a nível mundial.

Também a próxima Cimeira dos países do G7 – Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Itália, Alemanha, França e Japão – que se realizará de 13 a 15 de Junho de 2024, sob a presidência do Governo italiano, terá na sua agenda os desafios da IA, entre outras questões candentes da actualidade. Em nosso entender, os governos e as empresas das democracias mais poderosas e industrializadas do mundo têm uma responsabilidade acrescida – ética e legal – e um papel preponderante na tentativa de encontrar um futuro equilíbrio entre a protecção dos seres humanos e o progresso das novas tecnologias digitais, sobretudo as relacionadas com a IA.

Como se poderá constatar ao longo deste estudo, a IA desafia o futuro da liberdade humana ou, ainda mais drasticamente, a nossa própria existência humana. Neste sentido, para que todos os sistemas tecnológicos digitais funcionem e evoluam, necessitarão de um controlo contínuo e progressivo. Outro problema não negligenciável é a percepção palpável de que o devir desta revolução digital não é acessível a todos, pelo menos até agora, e prevê-se que quanto maior for o custo da construção destes “paraísos digitais” do futuro, menor será o número dos que a eles poderão aceder. Portanto, caberá aos empreendedores, às autoridades políticas, civis e religiosas e a cada um de nós decidirmos em que direcção queremos avançar e que sociedade queremos construir, e, enfim, renovarmos o nosso empenho para que o futuro seja um bem comum para todos e não apenas para alguns. Daí a necessidade urgente de se agilizar uma formação ética e tecnológica de base e contínua, pública e privada, a todos os níveis etários e sociais.

Por fim, uma pergunta que o leitor se poderá colocar é sobre o porquê de não fazermos qualquer referência ao conflito entre Israel e o Hamas – nem às suas trágicas repercussões sobre a população palestina, sobretudo na Faixa de Gaza –, provocado pelo ataque terrorista do Hamas a Israel, no dia 7 de Outubro de 2023. O único motivo é porque o estudo foi dado por concluído e entregue para a publicação no “MCCJ Bulletin” – publicação oficial do Instituto comboniano –, no dia 4. Porém, tudo quanto afirmamos neste estudo, relacionado com a informação e a barbaridade das guerras, as fake news (notícias falsas), a desinformação e a informação propagandística, aplica-se também, mutatis mutandis, a este actual conflito no Médio Oriente.

P. Arlindo Ferreira Pinto
Dezembro de 2023

[O texto está publicado em: MCCJ Bulletin, n° 297, Outubro de 2023, pp. 40-82]

[Veja o anexo]