Hoje, Jesus faz propostas paradoxais. Àquele que deseja segui-Lo, apresenta três exigências inegociáveis: 1) colocá-Lo acima da família e de si próprio; 2) carregar a própria cruz; 3) renunciar aos seus bens. São três condições que tocam todas as dimensões da pessoa: a relação com os outros, consigo mesmo e com o mundo. Trata-se de uma tripla imolação: dos afetos, da vida e dos bens.
“… Não pode ser meu discípulo!”
Lucas 14,25-33
Estamos a caminho com Jesus em direcção a Jerusalém. Uma viagem longa, não tanto pela distância, mas pela duração. Neste percurso, São Lucas insere muitos episódios, encontros e ensinamentos de Jesus. Trata-se de um artifício literário do evangelista para nos introduzir no mistério do seguimento do Senhor.
Lucas abre o relato dizendo: “Como estavam a chegar os dias em que havia de ser levado ao céu, Jesus tomou a decisão firme de se dirigir para Jerusalém” (Lc 9,51). A viagem concluir-se-á às portas da cidade santa, com o choro de Jesus: “Quando Se aproximou e viu a cidade, chorou sobre ela, dizendo: Se ao menos neste dia também tu compreendesses o que te pode trazer a paz!” (Lc 19,41). E o Senhor continua ainda hoje a chorar por sua cidade. E talvez também por nós, que ignorámos tantas das suas visitas!
Jesus, um profeta irritadiço?
Depois do almoço em casa de um dos chefes dos fariseus (texto do domingo passado), hoje encontramos Jesus novamente a caminho. Estamos já no coração da sua viagem (Lc 9,51–19,44). O Evangelho de hoje começa dizendo que “uma grande multidão seguia com Jesus”: uma multidão entusiasta, talvez exaltada. No entanto, Jesus parece quase incomodado com tanta gente. Ele não procura seguidores, mas discípulos. Terá talvez pensado: “Esta gente não percebeu nada!”. Jesus sente-se incompreendido. Quantas vezes terá experimentado momentos de desilusão, provando o amargo sabor do fracasso?
Jesus já tinha anunciado aos apóstolos, por duas vezes (cf. Lc 9,22 e 9,43-45), que as coisas em Jerusalém não terminariam bem. A sua viagem não era, de modo algum, uma marcha triunfal. Após o segundo anúncio da Paixão, o evangelista comenta: “Eles, porém, não entendiam estas palavras: eram-lhes tão misteriosas que não percebiam o sentido, e tinham receio de Lhe perguntar sobre isso” (Lc 9,45). Os apóstolos não compreendiam. Mas percebe-se que, talvez, nem sequer quisessem compreender. Tal como nós, que tantas vezes fazemos ouvidos de mercador diante da Palavra!
Na verdade, Jesus não foi brando nem mesmo com as multidões, desde que iniciou a viagem para Jerusalém. Se folhearmos os capítulos anteriores, encontramos palavras muito duras dirigidas ao povo: “Esta geração é uma geração perversa” (Lc 11,29); “Hipócritas! Sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu; como é que não sabeis interpretar o tempo presente?” (Lc 12,56). Jesus entra em confronto com todos. Só com os apóstolos se mostra mais terno, apesar de tudo (cf. Lc 10,21-24; 12,4-7; 12,32).
E, no entanto, as multidões eram atraídas por este rabino tão singular e continuavam a esperar que fosse Ele o Messias prometido. Talvez fossem as mesmas multidões que, até há algumas décadas, enchiam também as nossas igrejas!…
Jesus não tem medo de desafiar esta multidão de simpatizantes, como já o fizera um dia na sinagoga de Cafarnaum. Então, “muitos dos seus discípulos voltaram atrás e já não andavam com Ele”, murmurando: “Esta palavra é dura! Quem a pode escutar?” (Jo 6,60-66).
Jesus, um promotor vocacional desajeitado?
“Voltou-Se e disse-lhes:
Jesus sempre tinha sido franco e claro quanto às exigências do seguimento, tanto com os que se propunham segui-Lo como com aqueles que Ele próprio chamava (cf. Lc 9,57-62), mas nunca como agora. São frases duras, chocantes, provocatórias, destinadas a abalar a consciência das multidões de ontem e a nossa, de quantos as ouvimos hoje.
Jesus faz propostas paradoxais. Àquele que deseja segui-Lo, apresenta três exigências inegociáveis: 1) colocá-Lo acima da família e de si próprio; 2) carregar a própria cruz; 3) renunciar aos seus bens. São três condições que tocam todas as dimensões da pessoa: a relação com os outros, consigo mesmo e com o mundo. Trata-se de uma tripla imolação: dos afetos, da vida e dos bens.
Por que razão Jesus propõe estas exigências aos seus discípulos? Para os tornar livres! Todo o vínculo pode transformar-se numa escravidão. Pensando bem, Jesus não faz mais do que convidar-nos a antecipar voluntariamente aquilo que a vida acabará por fazer num futuro não muito distante: despojar-nos da família, das nossas forças, dos nossos projetos e sonhos, e dos nossos bens. No fundo, trata-se de viver aquilo que São Paulo dizia à comunidade de Corinto: os que têm esposa, vivam como se não a tivessem; os que usam os bens do mundo, como se não os usassem (cf. 1 Cor 7,29-31).
Para reforçar este ensinamento, Jesus conta duas breves parábolas exemplificativas: a do homem que quer construir uma torre e a do rei que se prepara para enfrentar uma guerra. Ambos devem primeiro sentar-se a refletir e calcular se têm os meios para levar a bom termo a empreitada. Da mesma forma, o cristão que deseja edificar a sua vida (cf. 1 Cor 3,12-15) ou enfrentar o combate espiritual (cf. 2 Tm 4,7), não pode ser superficial ou leviano, correndo o risco de falhar miseravelmente o próprio sentido da sua existência.
Qual será a nossa reação diante desta Palavra de Jesus?
Talvez estejamos demasiado habituados a escutá-la para realmente perceber o seu peso. Ou então pensamos que estas palavras são dirigidas apenas a alguns eleitos, chamados a uma vocação de especial consagração. Mas não é assim! Não existem cristãos de primeira e de segunda classe. Esta exigência diz respeito a todos quantos desejam ser discípulos de Jesus.
Pobres de nós, padres e pregadores, chamados a comentar este Evangelho! A tentação é forte: baixar a fasquia para não incomodar as nossas assembleias. E, no fundo, que exemplo damos nós, ao viver concretamente esta Palavra?
Que nos sirva de encorajamento o que escreve Orígenes — escritor eclesiástico dos séculos II-III, uma das grandes mentes da história da Igreja:
“Não quero acrescentar ao meu pecado de não o cumprir, o pecado de não o anunciar.”
P. Manuel João Pereira Correia, mccj
Seguir Jesus… Assumir riscos calculados
Sb 9,13-18; Fm 9b-10.12-17; Lc 14,25-33
Há muitas semanas nós nos encontramos a caminho para Jerusalém, e, há três semanas, no caminho, o Jesus do Evangelho de Lucas dá conselhos sobre a maneira de viver na Igreja: estar aberto a todos, acolher os pobres e os necessitados e estar pronto para rupturas, para escolhas dolorosas, para carregar a sua cruz! No fundo, o Evangelho nos coloca a seguinte questão: como fazer caminho com Jesus? Como querer ser seu discípulo sem preferi-lo a tudo, inclusive mais que à sua própria vida? É uma escolha cheia de consequências e de compromissos; é uma escolha crucial e, antes de escolher, precisamos sentar e calcular… De acordo com Lucas, quais são as condições para seguir o Jesus do Evangelho? Há três:
Para seguir Jesus, é preciso estar animado por um amor superior a todas as afeições familiares ou quaisquer outras: “Se alguém vem a mim e não dá preferência mais a mim que ao seu pai, à sua mãe, à mulher, aos filhos, aos irmãos, às irmãs, e até mesmo à sua própria vida, esse não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26). Enquanto Mateus se contenta em escrever: “Quem ama seu pai ou sua mãe mais que a mim não é digno de mim” (Mt 10,37), Lucas utiliza o verbo grego misein, que é traduzido por odiar. O que isto quer dizer? Isto quer dizer que para seguir Jesus é preciso amar verdadeiramente, e isso de uma maneira livre e total. O amor que sentimos pelos parentes, pelos outros e por nós mesmos nunca deve nos impedir de nos conduzir ao Cristo, porque os nossos próximos, os outros e nós mesmos somos imagens do Cristo e mesmo o próprio Cristo.
Mas, nesse caso, por que Lucas utiliza o verbo odiar, traduzido em nossas Bíblias por preferir? Simplesmente para nos recordar a radicalidade e a urgência do nosso compromisso de amar totalmente, livremente e gratuitamente. Recordemos os três graus do Amor, segundo Santo Agostinho: 1) Amar ser amado: isso diz respeito a todos… Quem não gosta de ser amado? 2) Amar amar: é generoso e virtuoso, mas isso também é ser egoísta; ao querer amar os outros isso nos faz bem, é gratificante e podemos fazer isso exclusivamente por nós mesmos. 3) Amar (simplesmente): gratuitamente, não para se comprazer, mas amar sem esperar nada em troca. É o Amor total, o Amor do Cristo da Páscoa.
Para seguir Jesus é preciso carregar a sua cruz, isto é, renunciar à sua própria vida esperando, às vezes, o pior. Novamente, é um compromisso radical que pode nos levar à rejeição, à condenação e à exclusão, como Jesus em sua ação e sua revolução (sua luta por justiça e liberdade). Ser discípulo de Jesus, comprometer-se a segui-lo, não é agir de maneira politicaly correct, para não desagradar as autoridades e determinadas pessoas. Comprometer-se a seguir Jesus é trabalhar pela justiça e pela liberdade, é partilhar com os mais necessitados, é recuperar a dignidade daquelas e daqueles que a perderam, por causa da sociedade ou da Igreja. Isso requer muita coragem, renúncia e determinação… E é por isso que, antes de fazer essa escolha, antes de assumir tal compromisso, é preciso sentar para calcular se somos capazes de construir uma torre ou apenas assentar os fundamentos (Lc 14,28-30) ou, saindo para guerrear, se temos condições de vencer o adversário (Lc 14,31-32). Uma coisa é certa: não devemos nos esconder atrás dos medos ou das incapacidades; devemos assumir riscos calculados…
Para seguir Jesus é preciso ser livre em relação a tudo o que possuímos. Renunciar a todos os bens não quer dizer não ter nada, mas que aquilo que possuímos não nos deve impedir de nos comprometer livremente com o seguimento de Jesus. O teólogo francês Marcel Metzger escreveu em 1992: “No Evangelho deste domingo, não se trata propriamente de renúncias e de medos, porque Jesus se dirige a nós de maneira categórica e radical: ele nos pede para preferi-lo a qualquer outra pessoa e ainda de renunciar a todos os nossos bens, caso quisermos ser seus discípulos. Tais renúncias podem nos parecer muito grandes, até mesmo impossíveis. E, no entanto, se nós não tomarmos a iniciativa espontaneamente e de bom grado, a existência se encarregará disso, no nosso lugar, porque à medida que avançamos na idade, nós nos tornamos progressivamente despojados, senão de riquezas, mas ao menos de saúde, dos parentes, e um dia, da vida. Podemos protestar, nos revoltar, mas nada podemos fazer. Podemos também, ao contrário, fazer desse despojamento irreversível uma caminhada para o Reino, colocar a nossa mão na mão de Jesus, esse companheiro fiel e seguro do qual nada pode nos privar, nem separar (Rm 8,35)”.
Podemos pensar que é impossível nos tornar discípulos de Jesus, podemos pensar que as condições para segui-lo são irrealistas e mesmo utópicas; e, no entanto, já no livro da Sabedoria, que temos na primeira leitura, esse livro escrito 50 anos antes da era cristã, cujo autor, um judeu de Alexandria, influenciado pelo pensamento grego, onde há dualidade entre corpo e alma, nos diz que o homem em sua materialidade é reduzido à impotência; seus sentidos limitam sua percepção ao horizonte terrestre e a Sabedoria que se encontra em Deus está fora do seu alcance: “porque o corpo corruptível torna pesada a alma e a morada terrena oprime a mente que pensa em tantas coisas. Mal podemos conhecer o que há na terra, e a muito custo compreendemos o que está ao alcance de nossas mãos; quem, portanto, rastreará o que há nos céus?” (Sb 9,15-16). Por outro lado, o Sábio reconhece que Deus mesmo nos deu sua Sabedoria, que é o Espírito Santo, e que nós somos mais que materiais, somos também espirituais; assim, somos salvos e capazes de alcançar a Deus: “Só assim se tornaram retos os caminhos dos que estão sobre a terra, os homens aprenderam o que te agrada e, pela Sabedoria, foram salvos” (Sb 9,18).
Nosso compromisso cristão, hoje, se ele é verdadeiro e autêntico, poderia transformar o nosso mundo, como foi capaz de transformar o mundo ou a sociedade no começo do cristianismo. Na segunda leitura de hoje, temos um dos escritos mais curtos do Novo Testamento, onde Paulo, na sua prisão, acolheu um escravo, Onésimo, que fugiu da casa de seu senhor, Filemon. No contato com Paulo, esse escravo pagão se converteu; ele foi batizado por Paulo e eis que Paulo o reenvia a Filemon, seu senhor, dizendo-lhe para acolhê-lo não mais como escravo, mas como um irmão querido. Imaginem a situação real da época em que o escravo era totalmente desprezado. No tempo de Aristóteles, colocava-se a seguinte questão: “Qual é a diferença entre um escravo e um utensílio? A única diferença é que o escravo se move. O escravo é um instrumento vivo”. Além disso, quando um escravo fugia ou roubava seu senhor, o senhor tinha o direito de vida ou de morte sobre ele. É, pois, uma revolução que o pensamento cristão impõe à sociedade da época: “Se ele te foi retirado por algum tempo, talvez seja para que o tenhas de volta para sempre, já não como escravo, mas, muito mais do que isso, como um irmão querido, muitíssimo querido para mim quanto mais ele o for para ti, tanto como pessoa humana quanto como irmão no Senhor” (Fm 15-16).
Imaginem a grande revolução trazida por Jesus: sempre no sentido da justiça, da igualdade, da dignidade e da liberdade! Hoje, 2013, o que Paulo pediria ao seu amigo Filemon para melhor seguir o Jesus do Evangelho? Ele lhe pediria, sem dúvida, para acolher o drogado, a prostituta, o homossexual, a divorciada, como um irmão, uma irmã, porque em Cristo temos todos e todas a mesma dignidade e somos todas e todos irmãos e irmãs.
Eu termino com esta bela oração do francês Michel Hubaut, que se intitula “Sentar para ousar arriscar”: “Senhor Jesus, para revelar o mistério do Reino de Deus, tu assumiste muitos riscos! Tu arriscaste a eternidade no tempo, tu arriscaste o invisível num rosto de homem, tu arriscaste o divino num corpo humano. Tu arriscaste a Palavra na fragilidade das nossas palavras, tu arriscaste a Bondade de Deus na banalidade dos gestos cotidianos. Tu inclusive te arriscaste a ser mal interpretado e desfigurado. Senhor, desde a tua Encarnação, como te seguir sem assumir riscos? Dá-me o gosto pelo risco e a coragem de tomá-lo com toda a lucidez. Dá-me a coragem de arriscar o meu coração, minha inteligência e minha razão, arriscar meus bens, meu futuro e minha reputação, arriscar a hostilidade, a indiferença e inclusive a cruz. Mas, tantos riscos, tu o compreendes bem, pedem reflexão, tantos riscos merecem que eu tome o tempo para me sentar para acolher, no silêncio da oração, teu Espírito, fonte e força das minhas escolhas, para verificar os fundamentos! Concede-me a graça de construir a minha vida sobre a Rocha da tua Palavra, de permanecer na tua Presença, de começar e terminar a obra da minha vida Contigo”.
Raymond Gravel
Tradução de André Langer