Quinta-feira, 16 de Outubro de 2025
O serviço missionário é uma tarefa e também um grande presente de Deus. Melhor, um ror de presentes! O Senhor da Missão, que chama e envia, também abençoa. Alguém me perguntou o que é que a missão me deu em 44 anos de vida missionária comboniana. Uma pergunta simples que me obrigou a fazer memória das muitas bênçãos que recebi por aceitar ser discípulo missionário de Jesus ao jeito de São Daniel Comboni.
Uma família muito alargada. Jesus promete a quem deixar os afetos e as raízes por causa dele uma recompensa cem vezes maior aqui e, depois, a vida eterna. Ele é um cavalheiro e honra a sua palavra! Deixei Cinfães, a família e os amigos para seguir Jesus como missionário comboniano. Estudei a teologia na Inglaterra (quatro anos) e trabalhei na Etiópia (doze anos) e no Sudão do Sul (mais sete). Também passei nove meses no México em formação permanente. Agora tenho uma família alargadíssima, espalhada pela Europa, África e América. Gente que são meus pais, irmãos e amigos. As redes sociais ajudar a mantem a comunicação com as pessoas que trago no coração como prenda de Jesus.
Um povo novo. A missão deu-me um povo novo com quem vivo uma relação esponsal, aceitando as suas luzes e sombras. No dia 16 de janeiro de 1993 cheguei à missão de Qillenso, no seio do povo guji do sul da Etiópia, pelas mãos do saudoso P. Ivo do Vale. Até esse dia, não sabia que havia um povo que se chamava guji que pertence à grande família oromo. Entretanto, aprendi a sua língua, as expressões da sua cultura, a sua cozinha, as tradições. Também ganhei algumas peças de vestuário típicas dos homens gujis. Esta é a terra sagrada que calco descalçado do meu próprio etnocentrismo. A aprendizagem de provérbios e de algumas estórias abriu-me a uma sabedoria nova, complemento das referências que pautavam o meu sistema de valores.
Novos modos de dizer Deus. Nós os portugueses temos as nossas maneiras de dizer Deus, de rezar, de crer – que variam de norte a sul. O povo guji também tem uma maneira tradicional de invocar o Todo-Poderoso. Nas orações próprias da cultura, invocam Deus como nosso pai e nossa mãe, nosso avô e nossa avó, nosso bisavô, aquele que nos deu à luz. É uma fórmula que codifica uma convicção não só bíblica, mas que foi encriptada por outros povos: viemos de Deus. Como disse São Paulo no Areópago de Atenas, «é nele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos». É interessante ouvir dizer que o silêncio atravessa Deus e que o amor seco (o amor sem obras) aleija! No Sudão do Sul, as pessoas tinham o hábito de dizer constantemente «Allah karim», «Deus é generoso» em árabe, outra invocação que juntei à minha ladainha dos nomes de Deus. A missão também é oração. Jesus iniciou as pessoas numa nova relação com Deus, chamando-lhe Abba, Papá. O missionário reza com a gente e ao seu jeito, facilitando e iniciando a experiência de Deus na escola de Jesus.
Uma nova vivência do tempo. O tempo – com o espaço – afiguram-se-nos como um conceito absoluto. Contudo, na Etiópia descobri que não há nada mais relativo do que a vivência do próprio tempo. Os etíopes contam o tempo usando um calendário diferente: estamos em 2018 desde o dia 11 de setembro, o primeiro dia de Meskerem, o mês que abre o ano etíope que tem 13 meses: 12 de 30 dias e um – Pagumê – de cinco ou seis, se o ano for bissexto. As zero horas são não à meia-noite, mas às seis da manhã. Depois, o Natal celebra-se a 7 de janeiro e a Epifania a 19; a Páscoa só de vez em quando coincide com a data do calendário universal como em 2025. A Assunção é a 22 de agosto e a Santa Cruz a 27 de setembro. Também aprendi que o tempo não se conta, mas faz-se através de encontros interpessoais e que a luminosidade é a forma natural de determinar as horas do dia. O relógio de pulso, esse é uma pulseira cara! Se o dia estiver enevoado, as horas são percebidas de uma forma diferente.
Mística do quotidiano. Na Etiópia, o dia-a-dia transcorre calmamente. Aprender o tempo é também desacelerar o viver. Nos primeiros oito anos, o serviço missionário era sobretudo feito a pé. Agora o asfalto já chegou ao território da missão e, onde não o há, as picadas são suficientemente largas para um carro passar. Vivendo devagar, caminhando pela floresta, voltei a tomar consciência do entorno: os pássaros e os seus chilreios felizes, os raios de sol a brincar com a neblina matinal por entre os ramos das árvores seculares, orquídeas selvagens, flores pequeninas a pintar o verde do chão... Recuperei a mística do quotidiano e até voltei a escrever versos.
Experiência profissional única. Em Portugal, exerci o meu serviço missionário sobretudo através do jornalismo, integrando a redação das revistas combonianas Além-Mar e Audácia durante uma dúzia de anos. O governo geral do Instituto comboniano convidou-me a integrar como diretor de informação a equipa de duas missionárias e um missionário encarregada de estabelecer a Rede de Rádios Católica no Sudão do Sul. Apesar da falta de meios técnicos, dos tiros na noite e de um clima abrasador, foi uma experiência profissional única. Comecei na Rádio Bakhita, em Juba. Quando as outras sete emissoras FM no Sudão do Sul e uma nos Montes Nubas, no Sudão, e mais uma estação dos Salesianos entraram em funcionamento montei uma redação própria com mais dois jornalistas. Foi um tempo exigente – preparar profissionais da informação e reportar o diário de um país a nascer, com alguns mal-entendidos com as autoridades à mistura – mas também muito proveitoso.
A missão dá à Igreja...
Outra pergunta: o que é que a missão dá à Igreja? A resposta engloba prendas múltiplas.
Identidade. A missão devolve a identidade à Igreja. A Igreja é missão. Jesus instituiu-a não para ser um clube isotérico de redimidos. Ele enviou-a aos confins do mundo, aos confins da vida para anunciar a Boa Nova do Reino de Justiça, Paz e Alegria já presente no meio de nós. A Igreja sem missão não é Igreja.
Partilha. O cardeal Luis Antonio Tagle, que chefia o Dicastério para a Evangelização – o ministério vaticano da missão, foi bispo da diocese filipina de Imus. Tinha muito poucos padres, mas quis partilhar alguns com a missão. Os conselheiros não estavam de acordo, mas eles partiram. E a diocese foi abençoada com uma abundância de vocações. A missão explica a matemática de Deus: para multiplicar é preciso dividir. A partilha é o caminho para a revitalização e renovação das Igrejas mais antigas.
Energia. A Igreja universal é a comunhão de todas as Igrejas particulares ou locais. As Igrejas jovens energizam as Igrejas mais antigas – mais exaustas, dão-lhes irmãs e padres para as servir nos diversos ministérios – calcula-se que cerca de quatro centenas de sacerdotes estrangeiros servem a Igreja em Portugal – no meio da seca vocacional extrema em que vivemos. A alegria com que as Igrejas mais jovens celebram a liturgia e a vida é estímulo às Igrejas mais antigas para balançar as normas litúrgicas com a criatividade do Espírito Santo que (co)move as comunidades. E recorda que a fé viva não é só cerebral (de ideias) ou cordial (de intimismos), mas que envolve o corpo inteiro: é palavra, música, dança, silêncio. As comunidades mais antigas estão mirradas e precisam da energia celebrativa das comunidades jovens que ensinam que todas as situações são boas e próprias para celebrar: a vida e a morte, a alegria e a tristeza. Celebrar juntos num ato de solidariedade efetiva e afetiva.
Hospitalidade. A hospitalidade é um preceito no Sul global. Nas comunidades do Norte impera mais a desconfiança. Proclamar Deus como o Pai comum é acolher a todos – mesmo os estranhos – como irmãos comuns. A hospitalidade mantém as comunidades acolhedoras e abertas às necessidades dos mais pobres e necessitados. E também se aprende. Nas minhas andanças pelas veredas do território guji, em novembro e dezembro, tempo da abundância de milho, se passasse por um miúdo a comer uma espiga cozida ou assada enquanto guardava o gado, ele imediatamente a partia e partilhava comigo. Eu sabia que até à noite não ia ter mais nada que comer, mas seria muito malcriado se não aceitasse a sua hospitalidade generosa. A hospitalidade faz-se e aceita-se. É um ato de humildade e de humanidade, é dizer que não sou autossuficiente, que o outro dá sentido à minha identidade.
Padre José da Silva Vieira, mccj