Marcas de um Brasil às portas do Carnaval e de Eleições Municipais

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Segunda-feira, 29 de Janeiro de 2024
O Brasil, mais continente que país, recebeu-me por dois meses, no tempo mais quente e húmido que me podia oferecer. Percorri milhares de quilómetros, de avião, comboio, autocarro, automóvel, metro e a pé... [Texto e fotos: Tony Neves]

Belo Horizonte, uma cidade enorme, cresceu com a exploração das minas. A Serra do Curral del Rey abraça a cidade e permite ter dela uma bela visão de conjunto.
Foto © Tony Neves.

Fiz São Paulo-Belo Horizonte ida e volta; São Paulo-Cruzeiro do Sul (Acre), via Brasília e Rio Branco, também ida e volta; fiz Cruzeiro do Sul-Tarauacá, ida e volta; peregrinei à Senhora Aparecida; vivi em diversas favelas e comunidades da periferia de São Paulo; tive ainda a alegria de visitar a ilha de Guarujá, ali mesmo em frente da cidade de Santos.

“Que Belo Horizonte!”

A primeira viagem de São Paulo para o interior durou mais de dez horas, saindo de manhã cedo e atravessando o primeiro grande pulmão, a serra da Cantareira, cheia de mata atlântica. Com algumas paragens nesta Rodovia Fernão Dias, chegamos a Contagem (às portas de Belo Horizonte) já bem de noite. 

Belo Horizonte é uma cidade enorme, como todas as capitais de Estado que já conheço. Cresceu com a exploração das minas. A Serra do Curral del Rey abraça a cidade e permite ter dela uma bela visão de conjunto. Por isso, em 1992, o Papa João Paulo II, ao começar ali a Missa, arrancou uma ruidosa ovação quando disse: “Mas que Belo Horizonte!” Confirmei com os meus próprios olhos à chegada ao local e, depois, no Mirante das Mangabeiras.

A 280 quilómetros de Belo Horizonte, há uma grande estátua à margem da Rodovia Fernão Dias. A placa da povoação não deixava dúvidas: Três Corações e a estátua tem o Rei Pelé.
Foto © Tony Neves.

Os Três Corações de Pelé

A 280 quilómetros de Belo Horizonte, fui surpreendido com uma grande estátua à margem da Rodovia Fernão Dias. A placa da povoação não deixava dúvidas: Três Corações e a estátua tem o Rei Pelé, melhor jogador do mundo de todos os tempos – assim me garantiram por ali. Paramos em plena auto-estrada para fazer uma foto e imortalizar o momento na terra onde o “Rei” nasceu.

Três Corações está cheia de plantações de café, a base da economia desta região, como de muitas outras no Brasil. Escusado seria dizer que é impossível entrar numa casa e de lá sair sem tomar um “cafezinho”! Mas também ali se cultiva muita cana-de-açúcar e pude, por isso, visitar um alambique onde se prepara (e donde se exporta) uma cachaça envelhecida nos cascos de carvalho de que fiz a prova.

A Catedral de Cruzeiro do Sul tem a forma de uma casa indígena e foi inaugurada nos anos 1960. Foto © Tony Neves.

A Catedral do Cruzeiro do Sul

Chegar ao Acre é missão complicada. Ir até aos seus confins, no Cruzeiro do Sul, pior ainda. Saí de São Paulo, mudei de avião em Brasília, aterrei em Rio Branco e, com muita ajuda climática, cheguei às 2h da manhã ao Aeroporto Internacional do Cruzeiro do Sul, onde só aterra um avião cada dois dias, quando o nevoeiro deixa! 

A cidade é pequena, linda, cheia de colinas, até parece que andamos na montanha-russa, quando viajamos de um bairro a outro! Os Missionários Espiritanos estão lá desde 1917, eis a razão da minha visita. A Catedral tem a forma de uma casa indígena e foi inaugurada nos anos 60 do séc. XX, começando pelo telhado que foi subindo à medida que construíam as paredes de tijolo. É uma obra tão original e imponente como todo o trabalho pastoral e social que a Igreja Católica ali foi levando a cabo ao longo de mais de um século.

Rio Itauruacá: Na viagem de ida e volta, atravessamos muitos rios e igarapés, bem como diversas Áreas Indígenas, onde não se pode construir nem desflorestar.
Foto © Tony Neves.

A “virada” em Tarauacá

O Acre faz fronteira com o Peru e a Bolívia e reúne condições excelentes para toda a espécie de tráficos, sobretudo de droga. A floresta amazónica e os grandes rios são estradas abertas ao trabalho dos traficantes, que semeiam o pânico na região. Com os Espiritanos que ali trabalham, percorri a famosa BR 364, uma estrada que começa quase na fronteira do Peru e chega às portas de São Paulo! Fomos interceptados por um jeep da Polícia Militar que nos complicou a viagem e percorremos os 220 quilómetros que separam o Cruzeiro de Tarauacá, cidade nascida da indústria da borracha, nos séculos passados. Há muito que toda a área está confiada aos Espiritanos.

A passagem de ano – ou “virada”, como eles chamam – deu direito a música alta e foguetes toda a noite. Apreciei a visita a alguns bairros, à cidade vizinha de Feijó e a conversa com pessoas idosas que ainda contam histórias do tempo dos seringais.

Na viagem de ida e volta, atravessamos muitos rios e igarapés, bem como diversas Áreas Indígenas, onde não se pode construir nem desflorestar.

A maioria das favelas alberga milhares de pessoas que vivem em construções de tijolo laranja, a desafiar todas as regras da física. Foto © Tony Neves.

A bela favela do Haiti

As favelas e outras comunidades pobres de São Paulo, tanto estão construídas no centro da cidade como nas suas periferias. A maioria alberga milhares de pessoas que vivem em construções de tijolo laranja, a desafiar todas as regras da física, habitações que deviam merecer prémios de arquitectura! Não se desperdiça um cm2 de terra, não sobra espaço para uma árvore naquela paisagem laranja que enche os olhos de preocupação, tal a pobreza que ali se espelha e as violências que ali se praticam, apesar da aparente normalidade do dia a dia. Vivi vários dias em diversas favelas e encontrei gente muito boa, mas com histórias duras e sofridas e sem grandes perspetivas de um futuro melhor.

No meio de um caos visual, há uma favela que quebra o tom laranja de todas as outras: a favela do Haiti.
Localizada no meio da cidade, mereceu a atenção de um projeto social estadual. Estudantes universitários pintaram a Praça Chicão,
na entrada da área habitada. Foto © Tony Neves.

No meio de um caos visual, há uma favela que quebra o tom laranja de todas as outras: a favela do Haiti. Localizada no meio da cidade, construída em conluio com a noite (como todas as outras!), mereceu a atenção de um projeto social estadual chamado Favela 3D. Assim, estudantes universitários de Design pintaram a Praça Chicão, na entrada da área habitada, premiando-a com um colorido que enche os olhos de beleza.

Há uma respiração de espanto quando vemos o mar e percorremos as longas praias da ilha de Guarujá, com ondas que permitem o surf
e povo que nunca mais acaba. Bem perto do mar, mantêm-se matas de floresta atlântica. Foto © Tony Neves.

A ilha de Guarujá

São Paulo, com os seus 11,5 milhões na cidade, 20,7 na Região Metropolitana e 44,4 milhões no Estado, é uma cidade de contrastes gritantes. Percorrê-la permite ver áreas residenciais muito ricas, prédios ultramodernos, helicópteros a toda a hora, mas também as favelas e milhares de pessoas sem-abrigo debaixo de viadutos ou abrigados pelas árvores dos grandes parques.

Vale a pena deixar a cidade e descer até ao Atlântico, na direção de Santos, rumando até à ilha de Guarujá. São 83 kms de sonho, começando no Parque Natural dos Imigrantes (com mata atlântica virgem), descendo o Parque estadual da Serra do Mar, cheio de colinas verdes a que nem a chuva intensa retirou beleza. Vamos vendo, ao longe, S. Vicente – o primeiro município do Brasil – e a grande cidade portuária de Santos. Mas há uma nova respiração de espanto quando vemos o mar e percorremos as longas praias da ilha de Guarujá, com ondas que permitem o surf e povo que nunca mais acaba. Bem perto do mar, mantêm-se matas de floresta atlântica, pulmão verde a enquadrar o azul do mar, mas a exigir olhares atentos das autoridades e sociedade civil para travar a especulação imobiliária que tomou conta da ilha, entregue a um turismo que pode matar a comunhão ainda existente entre pessoas e natureza.

Carnaval e eleições

Foram dois meses intensos, sem parar. Descobri um Brasil forte, a borbulhar de esperança, mas pleno de problemas e desafios, às portas de um Carnaval que trará samba, mas também de Eleições Municipais que já abanam o país. Não é por acaso que o cardeal Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo (cidade que celebrou, a 25 de Janeiro, 470 anos de fundação e 70 da catedral!), escreveu no Ano Novo: “Esperamos que o Brasil cresça em justiça, solidariedade e pacificação. Que tal investirmos nosso tempo ‘público’ nessas e em outras boas metas comuns?”

[P. Tony Neves, São Paulo (Brasil) – 7Margens]