Domingo, 19 de Novembro de 2023
Dia 20 de Novembro será o primeiro aniversário da beatificação do P. Ambrosoli, ocorrida em Kalongo a 20 de Novembro de 2022. Uma data não indiferente, se se pensar que o Beato José Ambrosoli foi a incarnação antecipada daquilo que se pode considerar um salto em frente na conceção do conteúdo unitário da evangelização, isto é, a sua ratio constitutiva (anúncio de Cristo e libertação integral) e a articulação do fazer missão (duas realidades que, embora na sua distinção, não podem deixar de se implicar mutuamente).

De facto, que evangelização seria aquela que não colocasse Cristo como prioridade absoluta e, ao mesmo tempo, relegasse a justiça e o desenvolvimento humano para consequências simplesmente faculta-tivas? A verdade é que, frequentemente, a nossa distinção das duas realidades significou uma separação na práxis.

Padre Giuseppe Ambrosoli no hospital de Kalongo no Uganda.

E, todavia, o Sínodo dos Bispos de 1971, no documento final, intitulado A justiça no mundo, afirma que «a acção em prol da justiça e a participação na transformação do mundo surgem-nos claramente como uma dimensão constitutiva (ratio constitutiva) da pregação do Evangelho, isto é, da missão da Igreja para a redenção do género humano e a libertação de todo o estado de opressão» (Documento final, 6). E ainda: «A missão de pregar o Evangelho, nos nossos dias exige que nos empenhemos na total libertação do homem já na sua existência terrena» (Ibidem, 37).

Também a Exortação apostólica de Paulo VI, Evangelii Nuntiandi (1975) reforçou esta estreita ligação, afirmando que «é impossível aceitar que na evangelização se possa ou se deva negligenciar a importância dos problemas, hoje tão debatidos, que dizem respeito à justiça, à libertação, ao desenvolvimento e à paz no mundo. Seria esquecer a lição que nos vem do Evangelho sobre o amor ao próximo sofredor e necessitado» (EN, 31).

Ambrosoli, enquanto padre e médico, manteve estreitamente unidas as duas realidades, sem ter de sacrificar nem o médico, nem o sacerdote, mas sabendo declinar na prática a relação de íntima ligação e de mútua dependência entre elas. Foi o primeiro exemplo entre nós de uma simbiose bem conseguida. O médico chegou à alma do paciente e o padre revestiu-se de mais concreta humanidade irradiante proximidade, respeito pelo outro, desejo de transformação e responsabilidade.

Folheando rapidamente a biografia do Beato Ambrosoli, procuraremos colher alguns elementos qualificantes da sua pessoa e os momentos cruciais que lhe exigiram escolhas determinantes. Prestaremos, portanto, atenção a alguns dados essenciais que, embora escassos, evidenciam a qualidade humana e espiritual da testemunha. De um modo geral, é preciso dizer que em Ambrosoli, salta imediatamente aos olhos que o Deus em que ele crê é unicamente amor inclinado a centrar-se na pessoa na sua humanidade, para aliviar o seu sofrimento e cuidar das suas necessidades, restituindo-a à sua plena dignidade. Para o Beato Ambrosoli, existem somente Deus e a pessoa necessitada que está diante de si. Esta prioridade revela que ele, e não apenas por uma certa inclinação natural, está sempre um passo atrás para criar espaço ao outro. Assim, o padre-médico, enquanto evangelizador, já não se preocupa em proteger a sua imagem e o seu trabalho, nem se perturba por querer defender-se. Aquilo que impressiona nele é que esta constante discrição estrutural humana, posta ao serviço do amor divino e do amor humano solidário, pode ser vislumbrada desde a sua juventude e aplicável a toda a sua vida.

Traços biográficos

a) Da entrada no Instituto comboniano ao sacerdócio (1951-1055)

José Ambrosoli chega aos Combonianos com um robusto percurso formativo que o moldou e, ao mesmo tempo, o tornou capaz de aceitar novos desenvolvimentos. Sem esquecer o muito que tinha recebido e sem arrogância pela sua preparação profissional, sem rigidez e sem fechamentos, permaneceu aberto a adquirir os conteúdos formativos combonianos que lhe permitiram refinar as suas qualidades humanas e espirituais e exercer a sua profissão médica com criatividade e autonomia.

Quando, a 18 de Outubro de 1951, José Ambrosoli entra no noviciado comboniano de Gozzano (Novara), tinha 28 anos. Tinha já atrás de si uma experiência educativa e profissional que o moldou para toda a vida: primeiro o “Cenáculo” em Como (1945-1950), depois a Universidade Estatal de Milão, Faculdade de Medicina (1946-1951), ou seja, um interior espiritual, académico e eclesial. O horizonte espiritual que o Cenáculo propunha era o heroísmo. Mario Mascetti, seu companheiro do tempo do Cenáculo, escreve: «Nunca desligou o círculo da graça, como se tivesse criado o hábito de verificar a cada momento (hoje diríamos em tempo real) a conformidade do seu agir com aquilo que agrada a Deus». Uma espiritualidade, todavia, continuamente desafiada pela realidade. No tempo escaldante da sessão eleitoral de 1948, José escrevia: «Não basta que os outros me considerem democrata-cristão; devem sentir a influência de Jesus que levo comigo; devem sentir que em mim existe uma vida sobrenatural expansiva e irradiante por sua natureza».

Também o estudo universitário, embora todo o empenhamento e rigor que exigia, à luz desta espiritualidade incarnada, estava isento de futuros benefícios pessoais e materiais: «Meter-me no apostolado entre os pobres com humildade, fazer-me como eles, ao seu nível, amá-los, interessar-me por eles». Não se tratava apenas de uma opção clara pelos mais pobres, mas também de uma opção feita no seio da comunidade eclesial, que se traduzia em capacidade de agir em grupo. Escrevia ao amigo Virginio Somaini, como ele delegado da Acção Católica na paróquia de Cagno (Varese), reconhecendo uma única matriz: «Os dois chamados pelo Senhor a dar-lhe glória no campo da Acção Católica, colaboramos, vivendo unidos na oração e na Graça, na troca das nossas aptidões, em tornar fecunda esta patente predilecção de Deus. Trabalhemos unidos, caro Virginio na A.C.! Ao domingo de manhã, na propaganda, terei a consolação de poder pensar que um outro jovem como eu, ao qual estou unido no amor a Cristo, realiza o mesmo trabalho pelo mesmo ideal».

Ambrosoli era, para todos os efeitos, um “diesel”. De facto, a 18 de Julho de 1949 defendeu a tese de licenciatura em medicina, e nos primeiros dias de Agosto estava na casa comboniana de Rebbio (Como), a pedir informações. Tranquilizado de que poderá exercer a sua profissão médica em missão, parte para Londres para frequentar o curso de Medicina Tropical até Agosto de 1951. A 5 de Setembro, escreveu ao superior geral dos Combonianos, P. Todesco, pedindo-lhe para entrar no Instituto e a 18 de Outubro já está no noviciado de Gozzano.

O horizonte futuro da missão permitiu-lhe enfrentar um ambiente restrito como o do noviciado e conseguir integrar-se entre 51 jovens, a maioria dos quais com idades compreendidas entre os 17 e os 19 anos, habituados apenas ao ambiente clerical restrito. José, habituado ao mais articulado mundo diocesano e ao ambiente laico da universidade, cresce espiritualmente, conservando o seu espírito perspicaz e autónomo, orientado para a missão. Espírito interior, missão, profissionalismo e comunidade são os pilares. José não aposta nunca em ser aquele que sobressai, o ‘fora do grupo’, ou a sentir-se – ou camuflar-se – como o diferente, o mais preparado, o superior por ascendências familiares ou por experiências adquiridas em vários campos. É alguém que sabe inserir-se cordialmente, não obstante as dificuldades iniciais, primeiro na comunidade do noviciado, depois na comunidade do escolasticado (1953). Estuda Teologia no escolasticado de Venegono, continuando a prática médica no vizinho hospital de Tradate e desenvolvendo frequentemente funções de “médico assistente” na numerosa comunidade.

Ao Dr. Aldo Marchesini, que foi para Kalongo em 1970 para exercer cirurgia, confidenciará que foi o cirurgião Angelo Zanaboni que lhe ensinou o essencial num ano, mas apressou-se a acrescentar: «Mas as oportunidades para aprender continuam para toda a vida. Pode-se aprender com toda a gente, mesmo com o pessoal não médico».

Sentindo-se parte viva da comunidade – irmão entre todos – convenceu o superior do escolasticado, P. Giuseppe Baj, que era um pouco sovina, a permitir-lhe instalar o sistema de aquecimento no velho gelado castelo de Venegono, afirmando: «É preciso preservar a saúde dos futuros mis-sionários, mesmo que em África não haja necessidade de aquecimentos!». O Dr. Tettamanzi Folliero, que o conheceu durante o estágio de José no hospital de Tradate, recorda-o como sendo muito dedicado no acompanhamento dos confrades para os quais tinha aconselhado o internamento no hospital, de modo particular em relação a um bispo africano, um tanto excêntrico e exorbitante nos seus pedidos. Às reclamações dos colegas, o P. Ambrosoli respondia com um sorriso e com uma simples frase: «O nosso uniforme é a caridade».

Entre as muitas qualidades do P. Ambrosoli na preparação para o seu futuro serviço missionário – e que ainda hoje são indispensáveis – sobressaem claramente algumas: um marcado sentido de comunidade, uma grande disponibilidade em fazer qualquer serviço, permanecendo “em segunda fila”, uma vontade de oferecer serviço profissionais, procurando sempre o melhor. Ambrosoli antecipa na prática o que diria mais tarde à Irmã Enrica Galimberti, sua ajudante no hospital de Kalongo: «Procura fazer as coisas na perfeição. Todavia, se conseguires, não as desfaças para as tornar perfeitas: arruiná-las-ias. Contenta-se em fazê-las bem. Mas procura sempre a perfeição». Um conceito nem pietista, nem moralista, nem superficial, mas de cariz puramente altruísta: para se dar o melhor de si, é preciso preparar-se continuamente.

b) Uma vida em missão – Kalongo (1956-1987)

O padre e médico Ambrosoli chega à missão os 33 anos, com uma óptima formação humana, espiritual e profissional. Já tinha dado provas no noviciado e no escolasticado, mas foi nos anos de missão que apareceu em todo o seu esplendor. Durante 31 anos, sempre no mesmo lugar, desde 19 de Fevereiro de 1956, quando põe os pés pela primeira vez no hospital de Kalongo, até à trágica evacuação da instituição à qual tinha dado tudo, a 13 de Fevereiro de 1987.

Em Kalongo, encontrou um irmão e uma irmã comboniana muito capazes: o P. Alfredo Malandra e a Irmã Eletta Mantiero. Graças a eles, o primeiro dispensário transformou-se numa verdadeira maternidade. Com a chegada de um médico, o sonho de uma Escola de Obstetrícia começa a ganhar forma. Ambrosoli insere-se, portanto, numa estrutura já existente e tornou-a totalmente eficiente em termos de pessoal e de funcionamento.

A St. Mary’s Midwifery School tornar-se-á a joia da coroa da estrutura hospitalar de Kalongo, mesmo à custa da sua própria vida.

Os inícios não são nada fáceis: a sua primeira tarefa é pôr em ordem todos os dispensários do Norte do Uganda (Aber, Padibe, Nyapea, Moyo e Angal) e encontrar um médico, especializado em obstetrícia e ginecologia em Inglaterra, para obter do governo britânico – que só é favorável em palavras – a aprovação da Escola de Obstetrícia. Uma lista de nomes sucedem-se naqueles anos, marcada por uma igualmente longa teoria de esperanças e pungentes desilusões: a médica polaca Lydia Wlosczyk; o casal de médicos doutores Remotti do Cuamm (Colégio Universitário Aspirantes Médicos Missionários, hoje Médicos com a África) de Pádua; a médica escocesa Jane Mac Shane; o doutor Pietro Tozzi, a médica Morelli, o médico holandês Bonnar, uma médica do Golfo Pérsico, a médica Doyle, etc).

Também o hospital vai gradualmente tomando forma e expandindo-se, até atingir uma capacidade de 200 camas. Entretanto, a fama do Aiwaka Madit (“grande médico”) ou Doutor Ladit (“grande doutor”) cresce e espalha-se por todo o Uganda e não só, chegando ao Quénia, à Tanzânia, ao Zaire, à Etiópia, ao Sudão, e até à Índia.

Os acontecimentos políticos que, com a independência do Uganda em 1962, deveriam dar início a um tempo de paz e de desenvolvimento, tecem, pelo contrário, uma teia com um pano de fundo demasiado volúvel e frequentemente dramático. Em 1963, todas as escolas elementares são nacionalizadas. Em Janeiro de 1967, dez missionários são expulsos, acusados de terem mantido contactos com os movimentos de libertação do Sudão do Sul e de terem divulgado notícias falsas acerca do Governo de Campala, a quem imputam acordos secretos com o governo de Cartum para a eliminação dos rebeldes. Em 1972, há uma nova expulsão de outros seis missionários por falta de documentação legal. Em Julho do mesmo ano, são recusados vistos de entrada a novos missionários, médicos, enfermeiros e professores. No final do ano, mais 50 missionários e missionárias são obrigados a abandonar o país. Em Junho de 1975, verificam-se novas expulsões de 16 missionários, escolhidos “cirurgicamente” em lugares cruciais.

Entretanto, não obstante a incerteza, Ambrosoli continuou a ampliar o hospital. No final de 1972, dá início à construção da nova secção de cirurgia, em substituição das quatro pequenas casas que constituíam a velha secção, e conseguiu concluir a obra em Maio de 1973. O bloco operatório dispõe agora de 67 novas camas. Ao mesmo tempo são construídos novos edifícios: uma ampla sala para demonstrações práticas, um espaçoso armazém de 13 metros, um bom refeitório para albergar 25 raparigas não qualificadas que trabalham no hospital, 6 pequenos cacifos, a enfermaria central e outros. Trabalha-se também num reservatório capaz no afloramento rochoso acima de Kalongo.

O P. Ambrosoli começa a interrogar-se se, dadas as condições difíceis em que se encontra o Uganda, toda aquela actividade de construção não parecerá uma loucura humana. Abrandar um pouco o ritmo seria uma hipótese plausível, mas que ele descarta imediatamente, porque só trabalha para a glória de Deus e para o bem das pessoas. Ele sabe perfeitamente – tal como o sabem todos os outros – que o hospital de Kalongo é a única estrutura de saúde num raio de 70 quilómetros. À irmã comboniana,Drª Donata Pacini, que lhe faz notar que aquela expansão implica necessariamente numa excessiva carga de trabalho, ele responde candidamente e sem possibilidade de réplica: «Os doentes precisam disto».

As estatísticas de 1973 dão conta de quanto os doentes tomaram conta da vida do P. Ambrosoli: consultas em ambulatório, 44 946; internamentos, 5488; partos, 885; consultas pré-natais, 1810; operações, 632; radiografias, 1128; exames de laboratório, 37 421. E era sobretudo o próprio P. José que executa as operações, ou a supervisionar os outros médicos, ensinando-lhes as suas técnicas, ou supervisionava os recém-chegados para que tudo corresse bem.

A fonte secreta

Onde é que ele encontra a força para levar por diante todas aquelas actividades e a coragem de continuar em tempos tão difíceis? Ao P. Ambrosoli não faltam certamente capacidades de gestão invulgares. Todavia, a fonte da sua actividade audaciosa e fulgurante deve ser encontrada noutro lado. Em Abril de 1973, numa carta aos amigos da Cáritas de Bolonha, escrevia: «Parece que este é precisamente o momento propício para fazer mostrar que não estamos a trabalhar para os nossos próprios interesses. Parece-me que este é mais do que o momento de pedir ajuda económica, é o momento de pedir ajuda espiritual, para que o Bom Deus salve a cristandade ugandesa». Ambrogio Okulu, um deputado acholi, escreveu sobre estes tempos dramáticos numa reconstituição póstuma: «Chegado em 1965 [o P. Ambosoli] viveu seis anos de luta política travada pelos Ugandeses para obter a independência dos Ingleses. Em seguida, viveu sob a primeira ditadura de Obote e a ditadura militar de Amin. […] Todas estas condições adversas levaram o doutor Ambrosoli a empenhar-se ainda mais e trouxeram-lhe a estima daqueles que odiavam os missionários. […] Na agitação do Uganda de então, o doutor Ambrosoli enfrentou com a mesma coragem religiosos zelotes, políticos vingativos e oficiais do exército indisciplinados. Perante eles nunca recuou um passo por medo».

O P. José não cedeu e continua a não ceder, porque alguns pontos fortes comandam a sua acção. Numa carta ao Prof. Canova do C.U.A.M.M. enumera três que considera fundamentais: «o primeiro, e mais importante, é o espírito de Cristo, formado por uma vontade decidida de trabalhar pela difusão do reino de Deus; o segundo, o espírito de sacrifício, e o terceiro, uma boa preparação técnica». É certo que reconhece que a cirurgia «tem também uma clara influência psicológica nas pessoas que a confrontam com a ineficácia dos curandeiros locais». Todavia, o ponto fixo de onde tudo deve partir e ao qual tudo deve estar submetido é uma afirmação escrita em Setembro de 1957, pouco mais de um ano depois de ter chegado a Kalongo: «Devo procurar “encarnar” o Mestre quando curava os doentes que vinham ter com ele». Uma fé cristológica que já ritmou a sua vida de estudante universitário responsável dos jovens da Acção Católica de Uggiate. Já nessa altura, escrevia a um amigo: «O nosso precioso tempo que dedicamos à A.C. tem, em cada momento, uma finalidade sobrenatural, e não há o risco de que possa esbanjar-se em coisas vãs, porque este trabalho leva-nos sempre para mais próximo d’Ele, o Cristo!». A estrela polar, portanto, é Cristo que está presente nos momentos mais difíceis e que o leva à formulação central do seu agir evangelizante: «Deus é amor. Há um próximo que sofre, eu sou o seu servidor». Não é uma frase sonante, mas uma concretização de quanto escreveu no seu “livro da alma” (diário): «É preciso que procure só a Ti, e in Cruce»; «devemos entrar no círculo da Trindade […] e chegar um pouco mais perto de Jesus à sua vida da Cruz»; «[quero] aceitar ser incomodado», ou seja, como Jesus, viver com os outros, sob os outros, e para os outros. Ambrosoli faz compreender de imediato que não tenciona deixar que a multiplicidade das obras se torne uma voragem exterior, uma visibilidade a todo o custo, um redemoinho que o arraste nas suas espiras inebriantes e, por fim, o torne escravo de si mesmo e da sua imagem.

A doença (1982) e a evacuação de Kalongo (1987)

É surpreendente a naturalidade com que o P. Ambrosoli consegue conciliar uma vida espiritual, na linha da essencialidade e da simplicidade, com o serviço cirúrgico cada vez mais exigente em termos de desempenho e competência. Neste sentido, o encontro com a espiritualidade de Charles de Foucauld ilumina-lhe o caminho, e assim o caminho que tinha feito quando jovem aprofundou-se e aproximou-o cada vez mais do Jesus histórico, abrindo-o «à oração de abandono» e à aceitação do «fracasso amado» de Foucauld. Escreve no caderno dos Exercícios Espirituais: «Resta-me continuar a esforçar-me por experimentar a presença de Jesus no meu coração e perguntar-me frequentemente o que faria ele no meu lugar». Ao amigo Piergiorgio Trevisan confidencia: «A única desilusão é que quando pergunto a alguém se se apercebeu de que mudei para melhor, oiço responder-me que não. De qualquer modo, vivo muito mais feliz do que antes, mesmo que haja mais sacrifícios». […] Agradeço sempre ao Senhor que o trabalho seja tanto, porque estamos aqui precisamente para isto, e é através do trabalho médico que podemos chegar à alma de tantos doentes. Nestes países, a pastoral passa sempre através do corpo. Parece estranho, mas é assim».

Afirmações sacrossantas que lhe voltarão à mente em Dezembro de 1982, no tempo do desaire da doença (um rim atrofiado e o outro gravemente comprometido, com a função renal reduzida a 30%) e durante os calamitosos anos após-Amin que marcariam dramaticamente a história do Uganda. Sucessivamente: o tempo do segundo governo de Obote (de 17 de Dezembro de 1980 a 27 de Julho de 1985), o breve interregno de Bazilio Olara Okello (27 de Julho de 1985) e do general Tito Okello (29 de Julho de 1985 – 26 de Janeiro de 1986) seguido da sua destituição, e a entrada em cena de Yoweri Kaguta Museveni, com a ocupação de Campala (26 de Janeiro de 1986) e a progressiva “libertação” do Uganda. O que resta do exército dos Okello foge, ou para o Norte ou para o Sul do Sudão. Outros ainda escondem as armas e ficam nas suas casas à espera do desenrolar dos acontecimentos. Naturalmente, depois da retirada e da derrota, os vencidos entregam-se a saques e assassinatos de gente do Sul do país. Nas regiões do norte, cresce o ódio tribal. Nem sequer as missões são poupadas. Numa crónica dos padres de Kitgum lê-se: «O que mais nos entristece a nós e ao povo é que os saqueadores são da nossa própria tribo: “São os nossos filhos”, dizem desconsolados». O clima é de grande confusão e medo, enquanto se espera que as tropas governamentais cheguem para restabelecer um mínimo de soberania e trazer um pouco de paz. Em Kalongo a situação também é dramática, a ponto de o P. Ambrosoli escrever: «1986 foi o ano mais difícil dos meus trinta anos em Kalongo».

O epílogo temido – o anúncio da evacuação do hospital de Kalongo – chegou a 30 de Janeiro de 1987. A 7 de Fevereiro é dada ordem peremptória para se repararem para partir. No dia 13, chegam 16 camiões. Forma-se um comboio: 34 carros e camiões, com 1500 soldados e civis. Para trás deixam os armazéns devorados pelas chamas que reduzem a cinzas víveres e medicamentos. De todo o material do hospital, apenas 20% pode ser levado.

O superior geral, P. Francesco Pierli, escreveu uma carta comovente ao P. Ambrosoli. Entre outras coisas pode ler-se: «Para todos nós o hospital de Kalongo era muito mais do que um simples hospital. Era um sinal deste apaixonado amor pelo povo, deste assumir as chagas da gente que constitui o núcleo mais belo da nossa vocação. […] Faço minhas as tuas palavras: “O coração sofre, mas a fé e a esperança mitigam tudo”».

O desgosto experimentado não mata a esperança: aquele êxodo de pessoas – missionários, missionárias, médicos, doentes, e enfermeiras de obstetrícia prestes a fazer os exames finais para a habilitação – é o acto supremo de amor e de identificação com um povo e com uma obra. Assim se explica a decisão do P. Ambrosoli de ser sepultado em África, ao lado do seu hospital. Isto explica também porque é que ele quis, à custa da sua vida, salvar a Escola de Obstetrícia para garantir os exames oficiais às raparigas que se tinham preparado durante tanto tempo. Isto ajuda-nos a compreender como as palavras que sussurrou ao morrer em Lira podem ser consideradas o ponto final e a revelação inequívoca daquilo que moveu e animou interiormente toda a sua vida: «Senhor, faça-se a tua vontade, ainda que fossem cem vezes…!». Eram as 13h50 de sexta-feira 27 de Março de 1987, quando morreu no limiar, aos 64 anos.

É a conclusão de uma experiência espiritual que atingiu o seu auge, porque revela um sentido forte e profundo do plano amoroso de Deus sobre toda a sua história de missionário. Aí se vislumbra um lúcido sentido da “hora de Deus”, na consciência de que ali todo o pensamento, todo o esforço, todo o projecto humano encontram o seu lugar e a sua solução. Estamos perante o momento mais alto da união com o Deus invocado e a expressão mais significativa do amor para com os irmãos e irmãs, entregues agora à sua liberdade e autonomia. O P. Ambrosoli selou definitivamente na morte o que sempre foi em vida: “uma pessoa entre as pessoas”.

Toda a sua vida no Uganda foi marcada por este duplo movimento de fé empática na pessoa que está ao seu lado, e de serviço médico oferecido na mais pura gratuidade. Para o missionário Ambrosoli, não se pode prestar um serviço profissional que eleva, cura e salva, sem um profundo amor pela pessoa; nem se pode mostrar empatia genuína, sem se esforçar por dar profissionalmente o melhor de si mesmos.

Na sua vida vemos realizado o aspecto fundamental da eclesiologia do Concílio Vaticano II: «A Igreja é, em Cristo, de certo modo o sacramento, isto é, o sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano» (Lumen Gentium, 1). Uma eclesiologia que é também hoje mais actual do que nunca: a missão da Igreja é cumprida, antes da concretização ou melhoramento das estruturas, com o primado reconhecido às relações humanas e nelas vivido concretamente. Tais relações, por sua vez, conduzirão a Igreja a uma correcta relação com o mundo e a sociedade, e levá-la-ão a responder com coragem e criatividade às tensões e mudanças das situações actuais.

Da vida do P. Ambrosoli indicações para ser evangelizadores hoje

Passemos agora da biografia do P. Ambrosoli para alguns valores que fizeram da sua vida um testemunho evangelizante. Encontramos aí uma surpreendente consonância a com a grelha de leitura que o Papa Francisco oferece na exortação apostólica Evangelii GaudiumSobre o anúncio do Evangelho no mundo actual. No quinto capítulo, Francisco indica um conjunto de valores que constituem outras tantas linhas de acção para uma missão actual (EG 250-274). Na prática, não se pode fazer missão sem a elaboração ou a inserção num projecto comunitário e sem uma bagagem de valores que dêem consistência à pessoa e ao grupo.

a) “Igreja em saída”– Abrir-se à diversidade

Na Evangelii Gaudium, Francisco insiste muito na necessidade de a Igreja «aprender a aceitar os outros, na sua maneira diferente de ser, de pensar e de se exprimir. Com este método, poderemos assumir juntos o dever de servir a justiça e a paz, que deverá tornar-se um critério básico de todo o intercâmbio» (EG 250). Afirmado este comportamento de fundo, que consiste na capacidade de sair dos esquemas pré-confecionados e na urgência de dotar-se de um espírito de abertura para narrar «as grandezas de Deus» (EG 259), Francisco invoca o Espírito Santo: «peço-lhe que venha renovar, sacudir, impelir a Igreja numa decidida saída para fora de si a fim de evangelizar todos os povos» (EG 261). Este “sair de si”, em escuta atenta das situações, é um dom e uma característica que torna possível identificar uma acção como acção do Espírito.

Desta abertura de espírito à diversidade, Ambrosoli é uma testemunha por excelência, um exemplo particularmente cativante.

Em 1944, durante a sua formação na Alemanha, o jovem José cruzou-se com estudantes de Medicina destinados a futuros missões na tristemente conhecida República Social de Salò. Num ambiente ideologicamente hostil, ele poderia fechar-se no seu pequeno mundo. Em vez disso, distingue-se pela sua concepção de puro serviço da actividade médica, pelo grande respeito das opiniões adversas dos seus camaradas, pelo sentido de medida e de convicção com que manifesta o seu credo religioso, e pela capacidade de abrir espaços de serenidade e de encorajamento num habitat desmotivado e por vezes violento. Camilo Terzaghi, seu companheiro de caserna escreve: «O soldado José Ambrosoli já desde o início mostrava um profundo conhecimento teológico, e os camaradas interrogavam-se a que fé política pertencia. Todavia, mesmo nas discussões com os ateus mais fervorosos, era conciliador, levando o seu contributo ao conhecimento, não se escandalizava com as contradições e defendia os princípios do amor e da fraternidade. Naturalmente, por esta sua pacatez angélica, era respeitado e considerado, ao passo que os outros crentes, pela sua intransigência, eram duramente atacados e até ofendidos».

O doutor Luciano Giornazzi, também ele camarada de José e de fé política tudo menos que favorável à Igreja, não pode deixar de constatar com admiração a união de vida e de palavra nele, que vai, todavia, sempre para além do puro existente, fosse ele pela sua vantagem pessoal ou os elevados ideais ou posição de pertença. Giornazzi escreveu: «Ei-lo enquanto, no fim da refeição do nosso escasso rancho, se retira para o seu próprio palharesco e em voz alta recita algumas orações na indiferença quase total. Ei-lo, enquanto ‘admoesta’ alguns de nós que impreca contra a má sorte que nos levou, querendo ou não, àquele maldito lugar. Tem uma palavra amiga para todos, e, por fim, consegue acalmar a raiva, a dor, a ansiedade. Recordo-o durante uma marcha de adestramento (15 km!) quando carrega, para além da sua, também a minha mochila por não poder caminhar devido a uma dor súbita num joelho. Recordo-o também quando, enquanto eu permanecia na ‘enfermaria’ (assim a chamavam) com febre alta e incapaz de me mexer, me trazia a ração duas vezes por dia, sempre com o sorriso nos lábios, sempre com alguma palavra de encorajamento (e tudo isto, fê-lo durante cerca de um mês). Numa palavra, para ser breve, durante aquele período Ambrosoli sempre esteve à disposição de todos e sempre foi um bom exemplo para todos. Era diferente de nós. Tinha algo superior, moral e material, que certamente lhe vinha da sua permanente serenidade».

Em 1964, num tempo de grandes polarizações de ideias e de partidos – portanto, um tempo de grandes oposições e exclusões –, José, convicto e activo militante da Acção Católica, sai dos simples parâmetros confecionais para se constituir existencialmente plataforma de diálogo, de entendimento, de testemunha de valores vividos sem proselitismos, mas, ao mesmo tempo, sem fingimentos. Aquilo que é, é aquilo que vive, abrindo espaços cada vez mais vastos de compreensão e de colaboração. Escreveu no seu caderninho de 1947: «O apostolado em família é muito importante e devo dedicar-me com decisão, banindo o respeito humano. O apostolado de ambiente: na escola, no hospital. Não basta que os outros me considerem democrata-cristão; devem sentir a influência de Jesus que levo comigo; devem sentir que em mim há uma vida sobrenatural expansiva e irradiante por natureza…

Devo amar os pobres e não temer estar com eles. Devo colocar-me ao seu nível e levar-lhes uma palavra amiga. O apostolado deve ser para mim não só de ambiente, mas deve estender-se também às classes sociais mais humildes, aos pobres, sem olhar se são operários em vez de estudantes. Meter-me no apostolado entre os pobres com humildade, fazer-me como eles, ao seu nível, amá-los, interessar-me por eles».

No entanto, é na missão que a diversidade se torna um estímulo para Ambrosoli passar da compreensão à aceitação, à mudança. Ambrosoli é alguém que, embora aceitando o existente, não se contenta com o existente. Ao encontrar-se com duas personalidades fortes, como o P. Alfredo Malandra e a irmã Eletta Mantiero, os dois pilares da missão de Kalongo e das suas estruturas, o espaço de manobra para ele médico novato em coisas de África tinha de parecer muito arriscado senão mesmo decepcionante. Para sobreviver, poderia ter reivindicado uma preparação médica bem superior e com isso ser a causa de tensões inconciliáveis. Ao contrário, insere-se levando a pleno florescimento aquilo que inconscientemente era o desejo profundo dos dois idosos missionários. Em Kalongo não se é derrotado nas próprias ideias, porque é impossível manter o confronto com alguém maior, mas é-se transformado pouco a pouco. Os sonhos, então, tornam-se realidade: a modesta maternidade da savana da Irmã Mantiero transforma-se num hospital de 350 camas, e uma condição feminina servil resgata-se numa Escola de Obstetrícia conhecida a nível nacional e obstinadamente sonhada pelo P. Malandra. Dito por absurdo, Ambrosoli era um elefante que sabia mover-se por entre a loiça de cristal. A missão obriga muitas vezes à coexistência de grandes projectos e de fragilidades.

O “pequeno hospital da selva” – como lhe chamava Ambrosoli –, que tinha crescido surpreendentemente ao longo dos anos, não fazia má figura nem sequer em relação ao Hospital de Lachor, em Gulu, o hospital da capital do lugar, portanto mais central e subvencionado pelo governo. O relatório anual de 1979 da diocese de Gulu permite uma comparação útil: em Kalongo trabalham 5 médicos, dos quais um completamente dedicado aos leprosos, enquanto que em Lachor operam 7 médicos, dos quais um ugandês; as enfermeiras em Kalongo são 14 e no Hospital de Lachor 13; as obstetras com curso são 62 em Kalongo, 63 no Hospital de Lachor; há 323 camas de hospital, 220 no Hospital de Lachor; em Lachor há 75 camas de maternidade, 34 no Hospital de Lachor; há 113 661 consultas externas em Kalongo, contra 39 735 no Hospital de Lachor; as grandes cirurgias em Kalongo foram 1012, no Hospital de Lachor 732; em Kalongo 1379 partos, no Hospital de Lachor 701.

A Escola de Obstetrícia constituía a fina flor, a criatura tão fortemente desejada e cuidada pelo P. Ambrosoli. De 1961 a 1978, o hospital formou 245 obstetras regularmente inscritas no álbum (enrolled midwives), das quais 65 de 1961 a 1967 e 180 de 1968 a 1978. Perante os excelentes resultados, em 1979 o Ministério da Saúde aprova um novo Curso para Obstetras a nível superior, que, porém, por causa da guerra, só pôde começar em 1980. Contudo, a Escola de Obstetrícia, nos seus 30 anos de actividade, viria a formar 400 obstetras profissionais, 40 das quais com o grau de obstetra-chefe (registered midwives).

Ambrosoli, já a este primeiro nível “da audaz saída de si”, interroga-nos se no nosso ser e fazer missão há esta abertura mental de pensar além do existente, com o são realismo de o querer fazer crescer com a ajuda de quem estava antes de nós e de quem permanecerá depois de nós. Ambrosoli estimula-nos a perceber quais são os campos de presença e de acção onde a mudança é mais urgente hoje. Exactamente o contrário de quem renuncia a pensar e se entrincheira na autodefesa, nas estéreis recriminações, no progressivo não ver, não ouvir, não questionar. Com isso, Ambrosoli coloca-nos questões incontornáveis sobre as quais se devem basear tantas das nossas reflexões e mudanças de ritmo na missão: quais são actualmente as experiências de missão significativas entre nós? Quais são as experiências, que recalcam um projecto com uma história, com opções feitas e testadas através de discernimentos e avaliações periódicas? As suas opções estão ainda aí, diante de todos.

b) Nem espiritualismos desencarnados, nem acções sem alma

O segundo aspecto de uma “evangelização segundo o Espírito” é vivê-la e propô-la como um compromisso total, mantendo estreitamente unidas contemplação e acção, isto é, contemplação em acção e vice-versa. «Do ponto de vista da evangelização, não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e acções sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração» (EG 262), escreve o Papa Francisco. E citando do Novo Millennio Ineunte de João Paulo II, acrescenta: «Há que rejeitar a tentação de uma espiritualidade intimista e individualista, que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com a lógica da encarnação» (Ibidem). Dividir as duas coisas significaria cair no esvaziamento de significado da acção, no intimismo e no individualismo.

No tempo em que viveu o seu serviço missionário, Ambrosoli contribuiu certamente para inserir plenamente o serviço médico na práxis evangelizadora, então entendida quase exclusivamente como anúncio da Palavra e celebração-prática dos sacramentos, em vista da fundação de uma Igreja local. Embora sem pôr em discussão esta opção de fundo, Ambrosoli, ao oferecer o seu profissionalismo médico, contribuiu para alargar o conceito e a realidade do anúncio. O serviço aos doentes como ele o viveu tornou- se uma modalidade de anúncio evangélico, tão nobre e necessária quanto a pregação. Disso dão testemunho o seu discernimento vocacional rigoroso, mantendo o exercício da actividade médica e o empenho pastoral; a decisão de escolher os combonianos, para a prioridade missio ad gentes, contrariamente à primeira escolha dos jesuítas; a clareza interior do seu pronunciamento; a decisão dos passos que deu; os prazos concretos inseridos num processo ou quadro global rezado, reflectido, e posto em prática. Ambrosoli não era tipo de decisões apressadas e entusiasmos passageiros, nem de acções sem reflexão ou reflexão sem acções. Convicções e práxis constituíam o duplo aspecto das suas decisões. A acção reflectia-se em valores interiores cultivados, avaliados e longamente contemplados (fruto de uma disciplina interior, de horários exigentes de oração, de espaços e tempos sob o signo da eficácia e da eficiência, do aprofundamento constante de virtudes específicas como o serviço, a disponibilidade, a compreensão, a humildade, etc.) e, pelo contrário, esta sua reflexividade e seriedade interiores procuravam a sua autenticação numa práxis elaborada em comum e prosseguida com constância, método e rigor.

Nos seus apontamentos tomados durante os Exercícios Espirituais de 1974 escrevia: «Oxalá pudessem ver Jesus em mim! Não se trata de fazer coisas diferentes, mas do modo de tratar os doentes. Devem sentir que o contacto é fraterno pela caridade de Cristo». E, de facto, o contacto fraterno só pode transmitir a solicitude de Cristo, se for um serviço específico – no nosso caso, médico – que se avale do contributo de todos, acontece através de cuidada preparação e competência, e realiza-se numa relação empática com o doente, portanto concilia respeito, atenção à pessoa e rigor técnico.

Escreveu o Dr. Augusto Cosulich, de Pordenone, em Kalongo de 1983 a 1985: «O que mais aprendi do José foi a sua eficiência na sala de operações, o facto de não dar importância à elegância do gesto cirúrgico, ao facto de a luz sobre o campo operatório não ser porventura a melhor ou de quem o ajudava não o fazer da melhor maneira. Ele estava habituado a avançar, mesmo que porventura houvesse uma hemorragia ou se o paciente não estivesse perfeitamente relaxado. O seu lema era obter o máximo resultado para o paciente com o mínimo dispêndio de recursos (sempre relativamente escassos em Kalongo). Podia fazer isto graças à enorme experiência que, unida às capacidades profissionais, lhe permitia compreender de imediato qual era o problema mal abria o abdómem do paciente (não se deve esquecer que em lugares como Kalongo ainda se fazem, e continuarão a fazer durante muito tempo, diagnósticos no momento da cirurgia, o famoso open and see), decidir o que fazer, e executá-lo o mais rapidamente possível de modo a não esbanjar material cirúrgico ou fármacos anestéticos mais do que o necessário. Deste ponto de vista, era por vezes até um pouco exagerado: podia reutilizar várias vezes gazes embebidas de sangue depois de as ter torcido; usava os fios de sutura de modo tão parcimonioso que teria sido de grande exemplo para todos aqueles cirurgiões italianos que desperdiçavam tão facilmente o material do hospital público. Dizem-me que até, mesmo nos primeiros anos, quando não havia ninguém para tratar da anestesia, ele mesmo efectuava as anestesias espinais ou epidurais (para esta última, tinha até concebido uma modificação da técnica clássica de inserção de agulhas) imediatamente antes de se vestir com roupa esterilizada para iniciar a intervenção cirúrgica propriamente dita. Demonstrava também um notável sentido prático e perspicácia, sempre com o objectivo de ajudar o doente e minimizar os custos hospitalares […].  Era um mestre paciente e validíssimo, amava ensinar com sinceridade tudo o que sabia, incluindo os ‘truques’ e todas aquelas pequenas dicas que fazem a diferença entre um cirurgião comum e um grande cirurgião, que ele era».

Na vida do evangelizador, a estreita ligação entre o aspecto humano e o profissionalismo, quer no campo médico, quer no campo pastoral, requer um requintado equilíbrio entre contemplação e acção e a sua necessária correlação. A verdadeira contemplação leva sempre a considerar um problema a resolver ou uma necessidade a satisfazer como exigências da pessoa. O aspecto personalista, tão evidente no P. Ambrosoli, condu-lo então ainda mais longe, a um serviço médico extremamente competente e esmerado. Com a sua práxis, ele põe o problema da preparação específica: que tipo de preparação e de programação actualmente nós garantimos perante as exigências da missão? O que está em causa é o tipo de percurso de formação, uma preparação não genérica, mas direccionada, e a capacidade de se inserir e colaborar num plano comum em que qualquer compensação pessoal oculta é banida. Ambrosoli faz-nos compreender que um projecto comum exige uma consistente interioridade, a qual, por sua vez, requer competências específicas. Talvez devêssemos reconsiderar a relação entre provisoriedade, preparação e continuidade, e pedir-lhe humildemente que nos ilumine!

Nas fontes do discipulado alegre e entusiasta

O evangelizador credível para o nosso tempo não pode ser senão «uma pessoa convencida, entusiasmada, segura, enamorada» (EG 266). O Papa Francisco identifica-o naquele que é buscador da glória de Deus (a melhor tutela do bem da pessoa e da defesa até ao fim dos indefesos e dos pequenos), homem ou mulher de oração (a via necessária a percorrer para lutar e obter a libertação integral). Escreve Francisco: «Trata-se da glória de Deus que Jesus procurou durante toda a sua existência» (EG 267), e é necessário ser «bem apoiados na oração, sem a qual toda a acção corre o risco de ficar vã e o anúncio, no fim de contas, carece de alma» (EG 259).

Bastaria recordar duplo legado inestimável de Ambrosoli, que não podemos deixar de referir  e que foi o fio condutor de toda a sua vida: o sopro da oração e o suspiro na morte através da entrega de si mesmo à vontade de Deus. Com um hospital evacuado, uma escola em condições precárias e a incógnita de ter de deixar o Uganda, antes de morrer ele sussurra: «Senhor, faça-se a tua vontade, ainda que fosse cem vezes!». O Deus invocado é o Deus reconhecido como o protagonista de tudo, do presente e do futuro. O aparente insucesso, então, pode bem ser chamado «amado insucesso». E não pode ser senão assim para quem, quando jovem, escreveu: «O apóstolo vale quanto reza». E enquanto cirurgião exímio, repetia: «É Deus quem faz. Eu sou ignorante!», e no leito de morte pediu: «Ajudai-me a rezar! Quero rezar». Muitas vezes fez exactamente assim com os doentes, quando não os podia curar, pedindo-lhes para rezar com ele, envolvendo na oração o pessoal presente na sala operatória. Escreveu o Dr. Luciano Tacconi, presente em Kalongo de 1978 a 1987: «Nos momentos mais dramáticos de uma doença, a preocupação de nós, colaboradores, era apressarmo-nos, porque considerávamos que o tempo que o P. Ambrosoli tirava ao doente era aquele que utilizava para o preparar para a sua última viagem. Mas apercebemo-nos que preparar um homem ou uma mulher para aceitar a morte também faz parte dos deveres do médico e reflecte o respeito que se deve ter por toda a pessoa: corpo e espírito».

Com a adesão total à vontade de Deus e com a oração, o médico Ambrosoli transfigurou o seu serviço num anúncio salvífico. Nele realizou-se à letra quanto o Papa Francisco escreve de um anunciador verdadeiro: «Jesus quer evangelizadores que anunciem a Boa-Nova não só com palavras, mas sobretudo com uma vida transfigurada pela presença de Deus» (EG 259). Endurecido pela missão, o P. José viria a resumir tudo isto no seu lema inesquecível: «Deus é amor. Há um próximo que sofre, e eu sou o seu servidor».

É inevitável a pergunta que nos devemos colocar, quer como indivíduos quer como comunidades missionárias: não tanto se rezamos ou por quem rezamos, mas qual é a qualidade da nossa oração.

A experiência de ser povo

Há uma outra condição indispensável para ser «evangelizadores com Espírito, quer dizer, evangelizadores que se abrem sem medo à acção do Espírito Santo» (EG 259): «O prazer espiritual de ser povo» (cfr. EG 268-274) Tal condição pode ser assim sintetizada: viver a proximidade, sentir-se espiritualmente próximos da gente. São palavras que têm um significado tremendamente concreto. A proximidade encerra vários matizes: “permanecer com” quando os outros fogem; amar com a intensidade de uma paixão que vai até ao “padecer”, olhar nos olhos; sentir o contacto; viver o espaço sem auto-defesas; estar presentes onde as coisas acontecem; ir além das aparências; etc. Só assim «aceitamos verdadeiramente entrar em contacto com a vida concreta dos outros e conhecemos a força da ternura» (EG 270), porque «ganhamos plenitude quando derrubamos os muros e o coração se enche de rostos e de nomes!» (EG 274).

O Papa Francisco oferece aqui um mostruário significativo desta proximidade: «Para sermos evangelizadores com espírito é preciso também desenvolver o prazer espiritual de estar próximos da vida das pessoas, até chegar a descobrir que sito se torna fonte de uma alegria superior. A missão é uma paixão por Jesus e, simultaneamente, uma paixão pelo seu povo» (EG 268); como Jesus, se falamos com alguém, «devemos fitar os seus olhos com uma profunda solicitude cheia de amor… alegramo-nos com os que estão alegres, choramos com os que choram e comprometemo-nos na construção de um mundo novo, lado a lado com os outros» (EG 269); «Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros… que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano» (EG 270).

Ambrosoli mostrou uma capacidade ímpar de estar com as pessoas, pela facilidade que tinha de criar relações com toda a gente, pela natureza do seu conviver com as pessoas mais díspares e a generosidade com que se mostra disponível a qualquer solicitação. Paciência e sentido de serviço, prontidão e esquecimento de si, temperados com o seu infalível sorriso, indicavam não só o quanto se sentisse em simbiose com o povo que girava à sua volta no hospital, mas sobretudo constituíam aquela via da alegria e da serenidade indispensáveis para sentir-se bem e para crescer juntos.

Na sua proverbial “paciência” tocamos a extrema fronteira da caridade do médico missionário Ambrosoli: o outro era aceite com toda a sua diversidade, fosse ele doente africano, ou o candidato ao serviço, ou o médico vindo para Kalongo para praticar cirurgia. À Irmã Silveria Pezzali, que passou 14 anos em Kalongo e que muito se lamentava pela sua infinita paciência, respondia infalivelmente: «Compreender, tolerar, perdoar e amar».

Muitos dos que o conheceram diziam dele: «Parecia que não tinha mais nada para fazer senão escutar a pessoa que tinha à sua frente». Ao contrário, era a aplicação diária de um seu critério interior assumido desde há muito tempo: «Para poder amar, tenho de ter um juízo de amabilidade sobre a pessoa que tenho à minha frente». O “juízo de amabilidade” foi o seu uniforme em privado e em público, com europeus e africanos, com gente instruída ou analfabeta. Aos olhos das pessoas simples este é o tema sensível onde é impossível batotar. Lino Labeja, um catequista de Kalongo, disse: «Nunca encontrei uma pessoa disposta a escutar como o P. Ambrosoli». E Martini Omach, também ele catequista: «Acolhia os pobres, as viúvas e os órfãos de um modo muito particular». Não surpreende, portanto, que um outro catequista, John Ogaba, no seu depoimento, tenha sentido a necessidade de usar as seguintes palavras de admiração: «Pelo seu modo de acolher as pessoas e de falar com elas, de aconselhá-las e de encorajá-las, tinha-se a impressão de estar diante de Jesus. Tinha um grande respeito para com todos, mas em particular para com os pobres e os abandonados». Numa palavra, quem se encontrava em dificuldades sabia que podia contar com o P. Ambrosoli. Se, num dado momento, embora sem perder a calma e a compostura, não tem medo de repreender, mesmo em público, um seu confrade arrogante e violento, mais tarde não hesitará em defendê-lo publicamente por ter sido, por sua vez, esbofeteado por um médico.

A admiração inigualável que lhe era dedicada estava ligada à sua proverbial mansidão, firmeza, simplicidade e acessibilidade. Não se impunha – não precisava de o fazer –, mas atraia todos.

O P. Ambrosoli expressou a sua “alegria de ser povo” ao querer permanecer em Kalongo a prestar o seu serviço médico, ao querer morrer entre o seu povo Acholi e ser sepultado como um pobre qualquer entre a sua gente.

Deus levou-o para junto de si, e a Igreja “restituiu-no-lo “, decretando a sua exemplaridade e venerabilidade. Um ano depois da celebração da sua beatificação, somos convidados a retomar em mãos vida e atitudes missionárias do Beato José Ambrosoli, para conhecê-las, compreendê-las, saboreá-las e exprimi-las nas nossas vidas para o bem da missão e da Igreja.

P. Arnaldo Baritussio, mccj
Postulador Geral