Jesus garante que a ressurreição é a realidade que nos espera. No entanto, não vale a pena estar a julgar e a imaginar essa realidade à luz das categorias que marcam a nossa existência finita e limitada neste mundo; a nossa existência de ressuscitados será uma existência plena, total, nova. A forma como isso acontecerá é um mistério; mas a ressurreição é uma certeza absoluta no horizonte do crente. A ressurreição é, a esperança que dá sentido a toda a caminhada do cristão. A nossa vida presente deve ser, pois, uma caminhada tranquila, confiante em direção a essa nova realidade.

Os Saduceus da porta ao lado
(Lucas 20:27-38)

P. Manuel João Pereira Correia

A passagem do evangelho deste domingo é bela e desafiante... para todos! O tema é claro: é sobre a ressurreição dos corpos. E é de salientar que a imortalidade da alma não é aqui falada, o que é outra coisa. Os protagonistas são os saduceus. Esta é a única vez que encontramos o grupo de saduceus no evangelho de Lucas, ao passo que encontramos os fariseus inúmeras vezes.

Quem eram estes saduceus? Eram um grupo político-clerical secular da aristocracia do povo de Israel, proprietários de terras, ricos e poderosos, colaboradores do poder romano. Eles eram os líderes do povo, mas não gozavam da estima do povo. Foram eles que condenaram Jesus. Todos os sumos sacerdotes eram escolhidos por eles. Eram profundamente conservadores e tradicionalistas, e praticavam uma leitura fundamentalista das Escrituras, das quais apenas aceitavam a Torá, ou seja, o Pentateuco, os primeiros cinco livros da Bíblia. Não admitiam os Profetas (os profetas sempre falaram contra a injustiça dos ricos e poderosos!). Segundo eles, não havia ressurreição porque não se falava dela no Pentateuco. É preciso dizer que a crença na ressurreição dos mortos aparece relativamente tarde na Bíblia, por volta do século II antes de Cristo. Tudo se jogava no presente. A bênção de Deus era limitada à vida terrena.

Pois bem, aqui no seu "território," na capital e no templo de Jerusalém, durante os seus últimos dias, os saduceus também interagem com Jesus, este rabino galileu, que veio da periferia, das fronteiras do Norte. O tema é o favorito deles: a ressurreição. Não para pedir a opinião de Jesus, nem sequer para o pôr à prova, mas simplesmente para gozar com ele. E Jesus aceita o desafio, mesmo no estreito campo deles. Apresentam-lhe o ridículo e absurdo 'caso' de uma mulher sete vezes viúva e nunca mãe, como uma caricatura da crença na ressurreição. Tratar-se-ia da aplicação da lei do Levirato, que obrigava o cunhado a ficar com a mulher do seu irmão, viúva sem filhos, para garantir-lhe uma descendência e um nome (Deuteronómio 25).

A resposta de Jesus corrige, antes de mais nada, a ideia predominante sobre a vida futura, que era vista como uma mera reanimação do cadáver. Basta pensar que o famoso rabino Gamaliel declarava: "Chegará o momento em que a mulher dará à luz uma vez por dia"! Jesus reitera então a verdade da ressurreição, citando uma passagem do Pentateuco em que Deus se apresenta a Moisés como "o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, e o Deus de Jacob", comentando: "Deus não é dos mortos, mas dos vivos".

Na passagem paralela em Marcos e Mateus Jesus diz: "Estais em erro, porque não conheceis as Escrituras nem o poder de Deus"; e conclui: "Estais em erro grave"! (Mc 12,24, 27; cf. Mt 22,29), uma acusação terrível, dirigida aos sacerdotes que deveriam transmitir o conhecimento de Deus ao povo (cf. Os 4,6)!

OS SADUCEUS DA PORTA AO LADO

Os saduceus já não existem, mas o seu fermento permanece. Eles vivem entre nós, eles são os da "porta ao lado", usando esta expressão cara ao Papa Francisco. Com isto não me refiro ao vizinho de casa, mas ao nosso próprio coração, que não é uma única sala interior, mas um palácio com muitos quartos onde muitas formas de pensar e crenças, costumes e tradições estão instaladas, profundamente enraizadas ou nunca totalmente desalojadas.

Gostaria de partilhar quatro destes fermentos.

1. A porta do paraíso... que não existe!

A forma mais comum da mentalidade dos saduceus é viver fundamentando a própria vida nas esperanças terrenas. Como se não houvesse outra vida. Hoje atravessamos uma grande crise de Esperança. No passado, as pessoas pensavam demasiado no além, alienando-se do presente. Marx tinha razão quando disse que a religião era o ópio do povo. Hoje já não pensamos na vida futura, e o ópio é outro: o consumismo desenfreado. Queremos o paraíso aqui, agora. E tanto pior para aqueles - a grande maioria - que, em vez disso, vivem o inferno na terra!

Esta mentalidade também existe em algumas formas de religiosidade cristã, como em certos grupos pentecostais, que parecem ignorar o convite de Cristo a segui-lo carregando as próprias cruzes, "tornando vã a cruz de Cristo" (1 Coríntios 1,17). Uma sensibilidade à qual nenhum de nós é estranho. No fundo, acredita-se e ... não se acredita na vida futura!

A porta desta sala é aberta pela dúvida, pela influência do secularismo, pela mentalidade prevalecente, e este saduceu fermenta furtivamente a massa da nossa vida quotidiana!

2. A porta para o abismo do nada.

Mais radical ainda é uma visão da vida pura e simplesmente como um meteoro, uma faísca que irrompe da escuridão do nada e nesse nada rapidamente se precipita. O nada é o 'buraco negro' que engole cada raio de luz. É a perspectiva do não-sentido da vida. Tudo é "uma sombra de um sonho fugaz". O livro da Sabedoria faz uma bela descrição desta concepção da existência (capítulo 2).

A pessoa não sabe de onde vem nem para onde vai. O homem é aquele que caminha, e sempre se caminha para sair de casa ou para se tornar a casa. Caso contrário, é um vagabundo, não sabe para onde vai. Esta poderia ser uma metáfora para a condição actual da nossa sociedade.

Face a uma visão tão pessimista e niilista da vida, há duas possibilidades. A primeira é perseguir o momento fugaz, procurando o elixir da juventude eterna (cultivando o culto do corpo) e sonhando com o mito da imortalidade. A alternativa é viver no vazio e na angústia. Não há Deus e tudo o que nos resta é o que temos aqui.

Uma boa parte dos cristãos e católicos não acredita na ressurreição. Pergunto-me que sentido faz para eles celebrar a Eucaristia e serem cristãos. "Se temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos de entre todos os homens, os mais dignos de compaixão" (1 Coríntios 15:19).

Este saduceu também vive na sala ao lado e tem a sua porta sempre entreaberta! Dificilmente somos imunes à influência do materialismo, ateísmo e agnosticismo de uma sociedade que expulsou Deus do mundo!

3. A porta dos fantasmas ou o sub-mundo das sombras.

O povo de Deus antes de chegar à fé na ressurreição concebia a vida do além como o reino dos mortos, o submundo ou o sheol, o triste mundo das sombras, uma subforma indefinida de sobrevivência. Havia a tentação de estabelecer um contacto com os mortos, uma prática fortemente condenada na Bíblia (ver 1 Samuel 28). Isto é necromancia, uma prática que certamente não desapareceu mesmo entre certos cristãos "da noite". São os cristãos que acreditam que "algo existe" após a morte, mas algo fluido, indefinido que não suscita entusiasmo nem esperança.

Mesmo que esta porta permaneça (oficialmente) fechada, estes fantasmas podem vaguear na nossa imaginação, semeando confusão e perplexidade. Este é também um fermento negacionista dos saduceus.

4. A porta das almas recicladas e desencarnadas.

Este é um fermento negativo que sempre coexistiu com a crença na ressurreição. Trata-se da crença na reencarnação. A ideia de que, após a morte, a alma regressa para viver noutro corpo. É como o renascimento da alma ou espírito de um indivíduo num outro corpo físico. Isto poderia ser interpretado, na minha opinião, como uma "reciclagem de almas" (como se Deus não tivesse o suficiente!). Ou como uma espécie de expiação pelas falhas cometidas na vida anterior e pela necessidade de purificação, uma espécie de purgatório, em suma. O corpo é assim desvalorizado e instrumentalizado para benefício da alma.

Uma forma relacionada, embora muito diferente e com nuances proprias, é a noção filosófica da imortalidade da alma, que, no entanto, atribui um papel negativo ou pelo menos derrogatório ao corpo. O corpo seria um obstáculo, a prisão da qual a alma procura libertar-se. Um exemplo eloquente é o episódio de Paulo a ser ridicularizado quando fala da ressurreição dos mortos no Areópago de Atena (Actos 17).

Estas são ideias que também circulam nos círculos cristãos, mas que minam seriamente a identidade da fé. É por isso que São Paulo não hesita em usar palavras muito fortes contra este pensamento: "Agora, se se anuncia que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns de vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, Cristo também não ressuscitou" (1 Coríntios 15,12ss).

A ressurreição é a charneira da fé cristã. Tudo está pendurado naquele prego fundamental. Se isto cai, todo o edifício desmorona e o cristianismo perde a sua razão de ser.

Paradoxalmente, este tem sido desde sempre talvez o fermento mais insidioso dos saduceus porque alberga uma fé que nega a encarnação.

COMO NEUTRALIZAR O FERMENTO DOS SADUCEUS?

Proponho duas maneiras.

1. Cultivar a Esperança.

A resposta de Jesus aos saduceus sobre a ressurreição é bela e é o "segredo" da Esperança: "O Senhor é o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, e o Deus de Jacob. Deus não é dos mortos, mas dos vivos; pois todos vivem por ele".

Nesta preposição 'de,' repetida cinco vezes, está contida a razão última da ressurreição, o segredo da eternidade. O Senhor não pode pronunciar o seu próprio nome sem pronunciar também o daqueles que ama. Ele é o 'seu' Deus. Sim, Deus está ligado a nós, o Seu e o nosso destino estão interligados. Ele é o Deus do meu pai Manuel, da minha tia Maria, da minha madrinha Maria da Conceição, da minha avó Gracinda, do meu velho pároco P. Matias, do meu querido vizinho e grande amigo P. Zelito, a quem Ele tão rapidamente chamou a Si, ... E Ele é o MEU DEUS. Se Ele não é 'meu', Deus 'não está lá'. E se não sou dele, já estou morto, ou melhor, mergulhado no nada. Enquanto Deus estiver, eles estão e eu estou! Haverá uma esperança mais bela? "Eu sou do meu Amado e o meu Amado é meu" (Cântico das Canções 6:3).

2. Ouvir as testemunhas.

A nossa época é a idade das dúvidas e da suspeita. Não podemos evitá-lo. Só confiamos no que nós próprios "vimos e ouvimos".

Sempre que surgem dúvidas e suspeitas, repito para mim mesmo: Confia nas Testemunhas, nos santos e nos místicos; não nos 'não-videntes,' naqueles que nada viram, por mais brilhantes e inteligentes que sejam! E repito a profissão de fé: 'Creio na ressurreição da carne, na vida eterna'. Ámen".
P. Manuel João
Castel d’Azzano, 6 novembre 2022

Lucas 20,27-38

Caminhamos para o encontro

Queridos irmãs e irmãos,
Permitam-me começar com um episódio, quase uma anedota, de um escritor que visitou o nosso país e uma das coisas que o impressionou mais foi, nas estações de comboio, nas repartições públicas haver uma sala de espera. Ele ficou muito espantado com este povo peculiar que tinha até uma sala para a espera. Isto não quer dizer que nós saibamos esperar melhor do que outros povos.

Isto lembra aquilo que o Papa Bento XVI, que é um observador atento do catolicismo contemporâneo, na encíclica que ele escreveu sobre a esperança, Spe Salvis, salvos na esperança, começava por dizer: “Hoje, no interior do catolicismo, há um défice em relação à esperança.” Porque sobre a fé nós continuamos a perceber como ela é importante, como ela é significativa, como ela modifica e é central nas nossas vidas. Sobre a caridade, mesmo sendo difícil praticá-la, mesmo com toda a dureza de coração, é impossível nós não percebermos a centralidade que ela ocupa, e como ela é o primeiro dos mandamentos, que é o amor que nos revela o rosto de Deus. Mas, sobre a esperança aí nós temos de colocar muitas reticências. Porquê? Porque deixamos em silêncio esta categoria. É como se nós, contemporâneos, mulheres e homens desta modernidade tardia não soubéssemos já falar da esperança. E a pergunta sobre o que é que nos é possível esperar, o que é que eu espero, é uma pergunta que de certa forma se tornou um tabu cultural. Nós esperamos almoçar a seguir à missa, nós esperamos as pequenas coisas da vida. Mas em relação às coisas grandes há um silêncio incómodo, embaraçoso, que se abate sobre o nosso coração. E mesmo dentro do próprio espaço católico.

Há poucos anos fizeram uma sondagem no interior do catolicismo italiano, que é um catolicismo emblemático (ao menos para o espaço europeu), e verificou-se que 20% dos católicos italianos acreditam na reencarnação, não na ressurreição mas na reencarnação – porque dizem que é mais fácil acreditar na reencarnação. Se fizéssemos uma sondagem semelhante ao catolicismo português se calhar chegávamos a uma conclusão semelhante. Nós, quando ouvimos ‘reencarnação’ pensamos no Oriente, no budismo, no hinduísmo – não tem nada a ver com isso! Esta crença na reencarnação nasceu há 100 anos e nasceu com o espiritismo. Porque no hinduísmo a reencarnação é um mal, é um pesadelo e aquilo que nos salva é fugir do círculo inevitável das reencarnações. A pessoa só se salva, só fica resgatada quando já não tem de reencarnar porque reencarnar é ainda voltar a padecer. Esta visão circular da vida, de uma vida que não tem redenção, de uma vida que tem de regressar sempre ao seu princípio é uma visão que não é a visão cristã.

É interessante nós olharmos para a formação da fé na ressurreição, e eu usei de propósito a palavra fé. Porque uma das dificuldades em falar da esperança é porque nos faltam palavras para a dizer, as palavras são estreitas, desadequadas, ficam aquém do mistério, não temos palavras para dizer. E, de facto, nós no credo não dizemos: “E eu penso, e eu reflito, e eu cheguei a conclusões claras acerca da ressurreição dos mortos e da vida eterna.” Não se diz nada disso, diz-se: “Eu creio na ressurreição dos mortos.” A palavra “crer” vem de um verbo hebraico: Ãman. A palavra que nós dizemos tantas vezes: Ámen. Ãman quer dizer acreditar, confiar. Ámen quer dizer eu creio, eu confio. Não se trata de elaborar um pensamento acerca da ressurreição, mas trata-se de acreditar, de fazer confiança, de colocar o nosso coração aí.

É interessante nós olharmos para o itinerário bíblico, porque a fé na ressurreição só aparece no século II antes de Cristo. Reparem em tudo o que está para trás: uns acreditavam e outros não, e a maioria não acreditava. Há muitos livros da Bíblia em que não se fala na ressurreição, nem esse horizonte está presente. Por exemplo, o livro do Eclesiastes nós diríamos que é escrito por um agnóstico, alguém cujo horizonte de existência é unicamente o horizonte terreno, não há mais nada. Tudo desaparece debaixo do sol, tudo é vaidade ou, como diz o livro da Sabedoria de uma forma tão bela, “Tudo é a sombra de um sonho que passa.”

No século II antes de Cristo, muito a partir da resistência cultural que o Judaísmo começa a fazer ao Helenismo, que colonizava os países à volta, que entrava por Israel dentro, o inculturava e tornava outra coisa, surgem estes Macabeus que são os lutadores, os resistentes. Mas também resistentes culturais porque eles querem manter a integridade do Judaísmo face ao modos vivendi do Helenismo. Quando eles são perseguidos e são martirizados começam a dizer: “Não, Deus é fiel. Nós dizemos-lhe que sim e damos a vida por Ele. Sabemos que Deus há de garantir a nossa vida, sabemos que havemos de ressuscitar, havemos de ser levantados de novo em Deus. Por isso somos capazes de sofrer as maiores atrocidades, porque acreditamos nessa vida que o próprio Deus garante que é maior do que esta.”

Esta leitura que hoje lemos do Segundo Livro dos Macabeus é na Bíblia um dos textos mais antigos para falar da ressurreição. E “mais antigos” é o século II. No tempo de Jesus, dentro do Judaísmo, havia uma grande liberdade de pensamento em relação à ressurreição. Neste texto do Evangelho de Lucas que hoje lemos vêm os Saduceus, que não acreditam na ressurreição, colocar à prova Jesus. Jesus é mais da linha dos fariseus e acredita na ressurreição. Mas podia ser um bom judeu e acreditar na ressurreição ou não acreditar na ressurreição, não era um elemento decisivo, estruturante, da própria confissão religiosa e essa é também uma diferença em relação ao Cristianismo. Porque o Cristianismo faz da ressurreição uma verdade central da sua proposta. Nós somos cristãos e aquilo que nos distingue é precisamente a fé na ressurreição. Aquela manhã de Páscoa, aquele sepulcro vazio tornou-se o quilómetro zero da nossa história. Não quer dizer que não tenham existido dificuldades na fé na ressurreição e que ainda hoje elas não subsistam.

Nós lemos, por exemplo, as cartas de Paulo, Primeira Carta aos Tessalonicenses, Primeira Carta aos Coríntios, Segunda Carta aos Coríntios. Um dos temas fortes nessas cartas é o debate que Paulo tem com a comunidade porque alguns não acreditam na ressurreição. E também vemos a própria dificuldade de Paulo em explicar o que é a ressurreição. Ele começa por usar imagens muito realistas e depois vai usando imagens que sobretudo têm a ver com a transformação, com a mudança, têm a ver com o nascimento, com a imagem do parto. E é muito interessante isto que Jesus nos diz: “Porque nascem da ressurreição.” A ressurreição ser como uma espécie de parto, como uma espécie de nascimento.

Mas, para Paulo, para lá das imagens o que é que a ressurreição afirma fundamentalmente? Afirma que nós estaremos em Deus, que Deus estará sempre a garantir a nossa vida. A fé na ressurreição é a fé no Deus dos vivos, para quem todos estão vivos porque Ele é Deus dos vivos e não dos mortos, como Jesus nos afirma lendo Ele também o Antigo Testamento.

Queridos irmãs e irmãos, no credo que nós vamos rezar daqui a pouco nós vamos dizer: “Creio na ressurreição dos mortos e na vida eterna.” Nós somos chamados a acreditar na ressurreição dos mortos. Nós vamos ressuscitar, aqueles que partiram antes de nós ressuscitam em Deus.

E o que é essa ressurreição dos mortos? Uma das dificuldades em acreditar é muitas vezes a dificuldade da linguagem, a dificuldade de imaginar, a dificuldade de representar. Mas nós temos de saber que o limite é nosso. Hoje a própria ciência nos mostra que o que nós vemos do mundo é muito limitado – um microscópio vê muito mais que os nossos olhos. Por isso, seria irracional nós dizermos: “Eu só acredito naquilo que eu consigo compreender.” Não, a nossa capacidade de compreender é muito limitada também. Por isso, nós temos de abrir o coração a esta confiança: eu acredito na ressurreição dos mortos, e acredito nessa ressurreição como a assunção que Deus faz da nossa vida, completamente.

O que é acreditar na ressurreição da carne? Certamente não é acreditar na ressurreição destas moléculas, destas células, desta pele, mas é acreditar na ressurreição do nosso corpo, daquilo que nós somos.

E o que é o nosso corpo? Hoje a própria filosofia ajuda-nos a entender isso de outra forma. O nosso corpo não é apenas estes quantos quilos, estes quantos metros que assinalam um determinado espaço, estes quantos anos de vida. Mas o nosso corpo é linguagem, o nosso corpo é a nossa biografia, o nosso corpo são os nossos encontros, o nosso corpo é aquilo que nós amamos. O nosso corpo são as nossas paixões, são as coisas que fizeram bater o nosso coração. É isso, é isso o nosso corpo, é isso que nós somos e é isso que ressuscita em Deus. Não chegamos a Deus apenas como uma alma, apenas como um númeno, apenas como uma abstração. Não, nós chegamos a Deus com este conjunto do vivido, do encarnado, do experimentado, do sofrido, do sonhado, do amado que nós somos. E é isso que Deus abraça, é isso que Deus abraça.

Creio na ressurreição dos mortos, creio na ressurreição da carne. Isto é, creio que Deus abraçará isto que eu sou e será fiel a isto que eu sou. Porque em Deus nós sabemos que Ele é o Senhor da vida, que Ele é o Senhor da história. Por isso, nós não caminhamos para o apagamento, nós não caminhamos para o nada, mas nós caminhamos para o encontro. Nós caminhamos para esse grande parto que é, no fundo, a morte e a ressurreição. Esse grande momento transformador, esse grande momento de dom, esse grande momento de dádiva radical, esse grande momento de entrega total que é a nossa morte. Morte que hoje também deixamos de falar dela, temos medo de falar dela, adiamos, tornou-se um fantasma, um interdito das nossas sociedades, quando ela, de facto, é uma etapa fundamental na construção da nossa esperança.

E creio no mundo que há de vir. Creio nesse mundo que habita aquilo que Deus é, esse mundo que o próprio Deus tem no Seu seio, no Seu coração, esse mundo que é essa apocatástase, essa espécie de roda, essa espécie de lugar onde todos os vivos estão, essa espécie de solidariedade não apenas enquanto mortais mas de solidariedade nessa vida escatológica, nessa vida plena onde o próprio Cosmos também entra.

É um desafio nós pensarmos na esperança. Porque a esperança não é só para cada um de nós ter alguma ideia sobre a sua morte ou sobre a morte dos seus. A esperança marca o presente. Porque nós verdadeiramente vivemos conforme esperamos. E a verdade é que não podemos substituir a esperança pelo temor, por uma nebulosa: sei lá como é, não sei. E a verdade é que a maneira como vivemos diz que nós não sabemos, que nós temos muito medo, que é um susto. Porque a maneira que vivemos reflete isso, documenta o nosso medo, a nossa incerteza, a nossa ignorância. Mas quando nós sabemos há uma confiança, há uma simplicidade, há um desprendimento, há uma certeza, frágil que seja, mas que anima o nosso caminho.

Vamos rezar pela nossa esperança nesta sala de espera que é a nossa vida.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXII do Tempo Comum

José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org