Celebramos o 3.º domingo do Tempo Comum e desde há 5 anos que o Papa Francisco nos pede que este seja o “Domingo da Palavra de Deus”. É um Domingo “dedicado à celebração, reflexão e divulgação da Palavra de Deus". O lema deste domingo é “Permanecei na minha Palavra” Celebrarmos este Domingo da Palavra é a oportunidade, de descobrirmos a importância da Palavra de Deus na nossa vida, quer como fiéis ouvintes, quer como anunciadores e testemunhas.

Com a Carta Apostólica “Aparuit Illis” (= Apareceu-lhes), o Santo Padre instituiu o 3° Domingo do Tempo Comum como o Domingo da Palavra de Deus. Com esta iniciativa, o Papa responde aos muitos pedidos para celebrar “o Domingo da Palavra de Deus em toda a Igreja e com unidade de intenções… Seja dedicado à celebração, reflexão e divulgação da Palavra de Deus” (n. 2-3). A carta revela uma clara intenção ecumênica ao instituir este domingo e sugere formas para chamar a atenção para a importância da proclamação da Palavra de Deus na Liturgia, como a entronização do texto sagrado, proclamação solene, valorização da homilia como serviço à Palavra, celebração do rito do Leitorado. Neste contexto proponho-vos uma meditação do cardeal Martini sobre o capitulo IV de São Marcos sobre as parabolas da semente, a Palavra de Deus.

As parábolas da semente

Nesta meditação queremos reflectir sobre o capítulo quarto de Marcos, chamado o “capítulo das parábolas”. Ele encerra principalmente três: 1) A parábola do semeador, com a explicação que segue; 2) A parábola da semente que cresce sozinha; 3) A parábola do grão de mostarda.

Estes parecem ser os três elementos que constituem a mais antiga unidade literária a partir da qual se desenvolveu o capítulo 4. A seguir foram acrescentadas outras duas breves parábolas: a da lâmpada sob a vasilha e a da medida evidentemente para colocá-las todas juntas.

Perguntamos: ao longo do itinerário dos Doze com Jesus, a que momento corresponde o ensinamento das parábolas? A que esquema vem de encontro? Qual o momento do caminho dos apóstolos com o Senhor que é assinalado? Parece muito provável que os ensinamentos das parábolas do cap. 4 correspondem a um momento de crise do ministério de Jesus. Por isso é necessário:

A) antes de tudo e brevemente, analisar a crise do ministério de Jesus;
B) ver, depois, como ela se reflecte e continua a agir na crise do catecúmeno que, na Igreja primitiva, lê este Evangelho;
C) considerar como esta crise pode espelhar-se em nós;
D) enfim, ver de que maneira as parábolas querem apresentar um ensinamento e vir ao encontro de tal momento de crise, momento necessário para a formação dos Doze no seguimento de Jesus.

a) Crise do ministério galilaico de Jesus

Os exegetas estão de acordo em que, depois dos primeiros momentos de sucesso, houve no ministério de Jesus um momento de crescente dificuldade. Esta dificuldade é acenada em várias partes de Marcos. Inicialmente trata-se de uma dificuldade de relações com os seus concidadãos, anunciada em Mc 6,3ss., onde Jesus é rejeitado pelos nazarenos que se escandalizam dele. Depois a coisa amplia-se; não vale só para Nazaré. Num certo momento, Jesus é levado a reacções como esta: “gemendo no seu espírito disse: Por que esta geração pede um sinal? Em verdade vos digo que não lhe será dado nenhum sinal, e foi para o outro lado do lago” (8,12).

É claramente um momento de choque, quase de ira de Cristo que não é compreendido. A sua mensagem não é acolhida e Jesus chega a ir embora, afasta-se. De resto, nem mesmo os próprios apóstolos o compreendem a fundo e poucos versículos depois, numa passagem que já lemos, Jesus pode repetir amargamente: “Ainda não compreendeis nem entendeis? Estais ainda com o coração endurecido? Já não vos lembrais, quando reparti cinco pães para os cinco mil, de quantos cestos recolhestes cheios de pedaços? Ainda não compreendestes” (8,17-21).

Isso significa que Jesus não passa de triunfo em triunfo, mas antes, depois da primeira grande onda de entusiasmo, que é expressamente anotado em 3,7 onde se fala de “grande multidão”, de uma grande massa de gente, gradualmente este entusiasmo vai diminuindo por vários motivos.

É também claro, por diversas expressões de Jesus, que muita gente que o segue não é da qualidade que Jesus quer; é gente que vai atrás de Jesus por motivos exteriores e que não sabe ver o fundo das coisas. Isso explica a insistência de Jesus: “Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça” (4,9); porque a gente que não sabe compreender bem, é gente que vê e não entende, ouve e não compreende e por isso não se converte e não é perdoada.

Jesus tem dificuldade para fazer entender a sua mensagem; inicialmente, o povo é atraído por sinais estrepitosos, mas depois, quando se trata de chegar ao âmago da questão, muitos voltam atrás. Temos assim outras afirmações em capítulos seguintes bastante negativas e pessimistas: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (7,6).

Temos afirmações mais amplas, que se referem a muitos outros ouvintes em 9,19: “ó geração incrédula! Até quando estarei convosco? Até quando tenho de vos suportar?” Elas indicam que Jesus, no seu ministério, nem sempre tinha consolações. Ou a dura repreensão de 8,38: “Se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras no meio desta geração adúltera e pecadora, o Filho do homem também se envergonhará dele”.

Portanto, a partir do fim do cap. 3 de Marcos, assistimos a um declínio do prestígio pessoal de Jesus. Ele é gradualmente contestado e rejeitado e já em 3,6 se começa a querer eliminá-lo. A oposição parte dos Fariseus, mas depois estende-se à gente simples até tornar-se oposição completa. Na parábola dos vinhateiros Marcos, 12,10, Jesus já fala de si como da pedra que é rejeitada pelos construtores. Ele sente que a sua vida se encaminha em direcção ao fracasso, que ela é rejeitada. A rejeição será gritada em 15,14, quando Pilatos perguntar o que fez ele de mal, e o povo gritar sempre mais forte: «crucifica-o!»

Portanto, o Evangelho de Marcos não cala de forma alguma que o caminho de Jesus, depois de um primeiro momento de entusiasmo e de êxito, teve que entrar em choque com uma desconfiança crescente, com o afastamento de muitos, sempre mais numerosos, até ser completamente rejeitado pela maioria do seu povo.

Os Doze participam desta experiência a partir do dia em que, com entusiasmo e de maneira solene, foram chamados do meio da multidão para seguir Jesus. Ela repercute no Evangelho: também eles participam de maneira dolorosa da crise do ministério de Jesus. Quando Pedro, por exemplo, em 8,32 começa a censurar o Senhor, mostra sofrer verdadeiramente porque não pode, não consegue compreender o sentido das coisas que acontecem, e faz isso apresentando-se a si mesmo e aos outros apóstolos como se dissessem: Mas assim não dá, não te seguimos para isso, era outra a realidade que parecias prometer. O mesmo desânimo encontra-se em 9,32, quando Jesus fala da sua próxima paixão e eles nada compreendem daquele discurso e têm medo de interrogá-lo. Da mesma forma em 10,32, quando Jesus, precedendo-os vai a Jerusalém. Eles “admiravam-se disso e tinham medo”. Portanto, parece claro que também os apóstolos são vítimas de um sentimento de desânimo e mal-estar; ainda estão com Ele, mas perguntam-se por que as coisas caminham nesse rumo; não esperavam isso.

b) A crise do catecúmeno na Igreja primitiva

O catecúmeno que lê este Evangelho e nele encontra descrito o caminho que o espera no seguimento do Senhor, como sente repercutir em si a crise que se verificou no ministério galilaico de Jesus?

Digamos logo que também o catecúmeno, na Igreja primitiva, depois de ter respondido generosamente ao primeiro chamamento, análogo ao chamamento junto ao lago, atravessa a sua crise; crise necessária.

Quais são as causas que criam a crise do catecúmeno, depois do primeiro momento de entusiasmo? Podemos imaginá-lo facilmente pensando na situação do catecúmeno que do mundo pagão, rico de toda uma tradição, de uma cultura, de uma estrutura social bem organizada, entra no pequeno rebanho dos crentes em Cristo e se pergunta: Por que tão poucos crêem e se convertem? Por que esta palavra de Deus se é verdadeiramente palavra de Deus não leva o mundo de roldão, não o transforma num instante?

Além disso, uma pergunta era feita com mais dor, amargura e abatimento pelos judeus convertidos: por que é que o povo não aceitou a palavra? Por que não há uma conversão em massa como se esperava pelas promessas? É um problema que angustiava também a Paulo, que era continuamente tentado e agitado por este pensamento: mas por que a palavra de Deus se é palavra de Deus não muda, não converte o coração de todo o povo?

E tanto para os judeus como para os pagãos, outros problemas que afloram nas cartas de Paulo: Por que um Messias crucificado? Por que uma mensagem tão obscura, tão dolorosa, tão diferente daquela oferecida pelo nosso ambiente?

Vemos como, na Igreja primitiva, o catecúmeno depois de ter consentido no seguimento de Jesus passa também ele através de uma prova de fé, análoga àquela pela qual passou o próprio Jesus e passaram os apóstolos. Ela consiste fundamentalmente em perguntar-se: mas por que a palavra de Deus não transforma imediatamente o mundo?

c) A nossa crise

Eis, então, que nesta luz podemos reflectir sobre as provações da nossa fé, aquelas pelas quais devem necessariamente passar todos aqueles que junto ao lago ou no monte ouviram o chamamento e lhe deram ouvidos. Cremos que as provações que a nossa fé atravessa são análogas às de Jesus, dos seus, daqueles que estavam com Jesus, dos cristãos primitivos e de todos os que o seguem.

As perguntas que podemos fazer do ponto de vista pessoal são: por que Deus não me faz melhor? Por que depois de tantos anos de vida ascética, de empenho, de oração, de meditação, somos sempre os mesmos, com os mesmos pequenos defeitos, com as mesmas pequenas dificuldades, como se estivéssemos no início da vida espiritual? Por que a palavra de Deus não nos transformou?

Além disso, olhando em torno de nós, podemos perguntar-nos: por que O Evangelho não muda o mundo? Por que é que o meu apostolado produz tão pouco fruto? Por que a nossa mensagem não é atraente, não tem uma resposta imediata do povo, de modo a ser logo compreendida, assimilada e posta em prática? Por que não há correspondência imediata entre a palavra pastoral bem anunciada e a resposta do povo? Por que pastoralmente não é possível programar de modo a ver logo uma resposta que nos permita fazer um ulterior programa com novas respostas sempre melhores?

Outras perguntas surgem em momentos particulares da vida, nos momentos dramáticos: por que o sofrimento? Por que esta morte, a interrupção de um apostolado que produzia tantos frutos? Por que Deus parece não ter necessidade de pessoas no ápice da actividade e do rendimento?

Todas situações nas quais podemos repetir: Por que o Reino de Deus caminha assim? Por que não há uma imediata correspondência entre o poder da Palavra e a sua realização?

Eis algumas repercussões desta perene purificação da fé que se realiza nos Doze, na Igreja primitiva e em cada um de nós.

d) A resposta em parábolas

Vejamos agora de que maneira o capítulo das parábolas responde a esta situação de crise.

As três parábolas que têm como protagonista comum a semente dão-nos, cada qual com uma mensagem diferente, a resposta à pergunta fundamental: por que a palavra de Deus não dá fruto logo e não transforma o mundo, não transforma os outros, não me transforma etc.?

A primeira parábola, a do semeador, é portadora, em substância, deste ensinamento: a palavra de Deus não produz fruto automaticamente.

A palavra de Deus é em si mesma boa e, se bem apresentada, produziria fruto; mas isso não depende só da palavra; depende também das diversas situações do terreno, das diversas respostas. Este é um ponto essencial do mistério do Reino de Deus, que não é um mistério a ser interpretado segundo categorias de eficiência. Em outras palavras, põe-se em acção certo número de meios e obtêm-se resultados adequados. Este é um mistério de diálogo em que é feita uma proposta que pode ser aceite ou negligenciada, apenas considerada ou rejeitada. Um mistério que os apóstolos são chamados a viver estando com o Senhor. Verificar, dia após dia, que o Reino de Deus vai avante através desta humilde proposta que, precisamente porque é proposta, contém em si todo o risco da negligência, descaso, não aceitação, oposição. E os apóstolos devem viver com Jesus este mistério da humildade da semente do Reino que, embora sendo Palavra de Deus e portanto a coisa mais perfeita, mais santa e mais poderosa que possa existir, aceita ser acolhida entre as pedras, entre os espinhos, em terreno impróprio e aceita situações tais em que não pode produzir fruto.

Talvez poderíamos perguntar-nos, com a Igreja primitiva, na explicação mais ampla da parábola do semeador, quais são as situações que impedem produzir fruto.

A parábola enumera três: a semente que é comida pelos pássaros, aquela que cai entre as pedras e não tem raízes, aquela que cai entre os espinhos e é sufocada. São anotadas as três grandes dificuldades nas quais incorre continuamente a pregação evangélica que, embora sendo santa, boa e apresentada pastoralmente bem, com frequência não produz fruto.

a) A primeira dificuldade: a semente devorada pelos pássaros é explicada com a menção de satanás: “Logo vem satanás e tira a palavra semeada neles”. Que significa esta vinda de satanás? Se nos referimos à figura de satanás, em outras passagens de Marcos, por exemplo, quando Pedro em 8,33 é censurado por Jesus, vemos que satanás traz no coração a incompreensão dos caminhos de Deus. A incapacidade de compreender os caminhos da cruz e, por isso, o desejo do crescente êxito. O catecúmeno que aceita o cristianismo como um modo de ser mais, de valer mais, de ter mais prestígio, mais autoridade, é como a semente comida pelos pássaros. Deverá dar-se conta de que o caminho não é aquele, que errou o caminho e que deve voltar atrás.

b) A segunda dificuldade: a semente sem raízes descreve a situação na qual a palavra foi aceite só externamente. Foi acolhida por um certo gosto estético da própria palavra, por certa forma de snobismo, não foi acolhida com aquela profundidade de adesão a Cristo, com aquele amor pessoal por ele que é o único a permitir conservá-la, sem escandalizar-se dele. Este enraizar-se em Cristo (de que fala São Paulo em Col 2,7) poderia ser a maneira pela qual a Igreja primitiva explicava as suas raízes: é preciso estar profundamente enraizados nele e no amor dele para poder fazer da busca dele não a moda do momento, mas algo de permanente e profundo, que não tema o escândalo.

c) A terceira dificuldade: a semente sufocada é de muitíssimos. As preocupações da vida presente, a atracção exercida pelo ter, pelo poder, pelo possuir. Para muitíssimos a preocupação em ganhar é obstáculo para a própria palavra. Tais preocupações da vida presente têm, aliás, uma aplicação muito vasta, se pensarmos que na censura feita a Marta, embora estivesse ocupada com a refeição de Jesus, volta a mesma palavra: “Marta, tu te preocupas com muitas coisas” (Lc 10,41). O juízo, pois, sobre o influxo negativo das preocupações excessivas, se realmente quisermos dar sentido e valor às palavras usadas por Cristo, é muito severo.

Para concluir, a palavra não produz fruto automaticamente, mas humildemente e, embora sendo divina, adapta-se às condições do terreno, ou melhor, aceita as respostas que o terreno dá e que com frequência são negativas. Assim Jesus explica aos apóstolos por que ele prega e a sua palavra não é eficaz. Na realidade, a palavra não é ineficaz, mas falta o acolhimento. Esta palavra quer ser a justificação de Jesus diante dos seus, que gostariam de um sucesso maior e quase automático.

segunda parábola, a semente que cresce sozinha é, como com frequência acontece no Evangelho, de certa forma o inverso da precedente. A primeira nos disse que a palavra não dá fruto sozinha; aqui, pelo contrário, afirma-se: “espontaneamente” sozinha (4,28).

Quer dizer aos apóstolos, que temem porque a palavra é rejeitada, que a palavra produz o seu fruto quando chegar o seu tempo. É preciso ter confiança, porque a palavra semeada vai avante sozinha. Portanto, lançai-a com coragem, não vos omitais dizendo que o terreno não é bom e é preciso esperar condições melhores; não julgueis serdes vós os senhores da palavra. Vós deveis espalhá-la, e depois podereis até ir dormir; não fiqueis mais pensando nisso, pois ela produzirá o seu fruto.

Enquanto a primeira exprime um ensinamento de realismo, esta apresenta-nos um ensinamento de confiança absoluta que a palavra, sozinha, frutificará. Basta semeá-la com coragem, com paciência e perseverança.

Quinta Meditação

JESUS EM ACÇÃO

A terceira parábola, a do grão de mostarda, também é apropriada a esta situação.

Os apóstolos que estão em torno de Jesus vêem, num determinado momento, que o seu grupo continua muito pequeno, não se desenvolve, muita gente não leva o Mestre a sério. E ele responde às suas mudas interrogações com a parábola do grão de mostarda, da pequena semente. Não tenhais medo diz, o Reino de Deus começa aos poucos. Não queirais pretender grandes resultados; deixai que as coisas se desenvolvam gradualmente: de pequenas sementes, de invisíveis inícios, nascerá o grande sucesso do Reino de Deus.

Em substância, Jesus pede aos apóstolos carta branca; pede confiança absoluta nele: vinde atrás de mim! Vós vedes que as coisas não vão bem e ficais imaginando que tendes um Mestre que arrasta as multidões, mas na realidade eu não sou bem isso. Isso não depende de mim, depende do facto que o Reino de Deus é poder de Deus e portanto se desenvolve com toda a certeza. De pouco, Deus produzirá o muito; do pouquíssimo, desenvolver-se-ão coisas imensas.

Jesus educa os seus e a Igreja primitiva repete este ensinamento aos seus catecúmenos a fecharem os olhos ao que parece realidade porque se vê, e abri-los ao que é; ou seja, à realidade misteriosa do Reino de Deus que está frutificando silenciosamente, enquanto nós não percebemos, e dará o fruto no tempo devido.

III Domingo do Tempo Comum (B)

Uma questão de tempos!

O tempo está cumprido e o Reino de Deus está próximo;
convertei-vos e acreditai no Evangelho!

Marcos 1,14-20

Com o terceiro domingo do Tempo Comum, retomamos o nosso caminho de fé, revivendo a aventura de Jesus tal como nos é apresentada no evangelho de São Marcos, o primeiro dos evangelhos, no qual podemos respirar a frescura dos inícios. Que o Espírito Santo nos conceda "a graça dos começos" para retomarmos o caminho com o entusiasmo da primeira hora!

Estamos conscientes de que a tarefa está longe de ser fácil. A experiência dos nossos fracassos pessoais, o sentimento de cansaço a nível eclesial e o ambiente de indiferença e ateísmo que nos rodeia contribuem para nos desmotivar. Em todo o caso, a perspetiva de escolher entre duas alternativas antagónicas (não há terceira via!) pode estimular-nos: por um lado, o sério risco de sermos sugados pelo vórtice da falta de sentido da vida; por outro, a crença na perene novidade do Evangelho. 

No fundo, trata-se da escolha dramática que a palavra de Deus nos apresenta desde sempre: "Eis que hoje te proponho a vida e o bem, a morte e o mal". (Deuteronómio 30,15). Sabemos bem que, para percorrer o caminho da vida, precisamos da graça, pois: "até os jovens trabalham e se cansam, os adultos tropeçam e caem; mas os que esperam no Senhor recuperam as forças, ganham asas como águias, correm sem se cansar, caminham sem se fatigar". (Isaías 40:30-31).

1. Uma questão de "tempos"!

Gostaria de abordar a Palavra de Deus de hoje na perspetiva do "tempo". A categoria do tempo une as três leituras. 

Na primeira leitura, fala-se de uma questão de dias: Jonas é enviado a Nínive, "uma cidade muito grande, de três dias de caminho", e o profeta começa a percorrê-la "durante um dia de viagem", anunciando um prazo: "Mais quarenta dias e Nínive será destruída!"

Na segunda leitura, o apóstolo Paulo diz à comunidade de Corinto que "o tempo escasseia".

No Evangelho, Jesus proclama que "o tempo está cumprido!". Encontramos ainda no evangelho o advérbio temporal "agora", que é um forte apelo à urgência destes "tempos". 

Há tempos e tempos, tempos de "chronos" e tempos de "kairos", tempos neutros e tempos "oportunos". O nosso problema é não saber discerni-los (Lucas 12,54-56). "Tudo tem o seu tempo, e cada acontecimento tem o seu tempo debaixo do céu", diz o Qohèlet (3,1). Creio que se praticássemos o discernimento dos tempos, a nossa vida mudaria radicalmente. 

2. Há um tempo para cada coisa!

Penso, em primeiro lugar, que a anotação do Evangelho: "Depois de João ter sido preso, Jesus partiu para a Galileia, anunciando o Evangelho de Deus", é muito significativa. Há um tempo para começar e um tempo para terminar. João termina o "seu tempo" e Jesus percebe que chegou o "seu tempo": deixa Nazaré e vai para Cafarnaum, junto ao lago. Jesus sente que chegou o momento da passagem de testemunho e de assumir o lugar de João. Isto exige, de ambos, uma grande coragem: para Jesus, é o momento de assumir abertamente e arriscar a sua própria vida; para João, é o momento de se retirar! 

Este discernimento falta-nos muitas vezes, numa sociedade em que os adultos se iludem de que permanecem eternamente jovens, de que podem começar uma nova vida em qualquer idade, ou de que se agarram a um estilo de vida que já deviam ter a coragem de "largar". Por outro lado, muitos jovens continuam a adiar o momento da tomada das grandes decisões. 

3. O tempo está cumprido, mas... tornou-se breve!

Num simples versículo, Marcos apresenta a síntese da pregação de Jesus em quatro pontos: "O tempo está cumprido e o Reino de Deus está próximo; arrependei-vos e acreditai no Evangelho!"Dois anúncios, seguidos de dois convites (imperativos)!

O tempo está cumprido e o Reino de Deus está próximo: o tempo amadureceu e Deus tornou-se próximo. É um tempo favorável, uma oportunidade a aproveitar sem duvidar. "Aquele tempo" de Jesus é o início de um tempo que dura ainda hoje, para o anúncio do Evangelho. Mas isto não significa que eu possa esperar por "amanhã", porque é "hoje": "Eis agora o tempo favorável, eis agora o dia da salvação!" (2 Coríntios 6,2). É por isso que São Paulo sublinha que "o tempo escasseia". Não há tempo a perder! E o autor da Carta aos Hebreus diz-nos: "Exortai-vos, antes, uns aos outros todos os dias, enquanto dura este dia!" (3,13). É hoje que Jesus passa e nos convida a segui-lo. Santo Agostinho dirá: "Teme a Deus que passa uma vez e não volta mais!

Convertei-vos e acreditai no Evangelho! O apelo à conversão assusta-nos, digamo-lo! Ouvimo-lo muitas vezes e talvez, com um esforço de boa vontade, tenhamos até tentado mudar, mas com poucos resultados e desanimámos. E arriscamo-nos a deixar de levar a sério este convite. Porquê este nosso fracasso? Talvez porque tenha havido pouco evangelho na nossa "conversão". Passámos ao lado da segunda parte do convite do Senhor: "Acreditai no Evangelho". O Evangelho é a alavanca para a "mudança de mentalidade" (é isto que significa "conversão"). E não se muda de um dia para o outro. É preciso um trabalho paciente e quotidiano de escuta da Palavra de Deus e de abertura à ação do Espírito Santo. A primeira conversão é à Palavra e à oração!

4. Um tempo de urgência!

É uma conversão permanente, mas isso não nos retira a urgência de responder ao apelo de Jesus: "Segue-me!". Um dos traços mais marcantes de Jesus no evangelho de Marcos é o sentido de movimento, de pressa e de urgência. Encontramos o advérbio "imediatamente" (euthys) inúmeras vezes: onze vezes no primeiro capítulo. Simão e André, Tiago e João captam este sentido de urgência e "deixaram imediatamente as redes e seguiram-no", sem saberem ainda como ou porquê. Os ninivitas de Jonas também se apercebem da gravidade do momento e convertem-se imediatamente. Esta urgência do tempo que "se faz breve" leva Paulo a dizer aos Coríntios que relativizem tudo o resto. E nós, temos este sentido de urgência em seguir Jesus?

Exercício para a semana
No início do dia, lembre-se do girassol e vire a corola do seu coração para o Sol de Cristo. E cada um dos seus dias será um dia de "conversão"!
P. Manuel João Pereira Correia, MCCJ
Castel d'Azzano (Verona), Janeiro de 2024

Depois de João ter sido preso, Jesus partiu para a Galileia e começou a proclamar o Evangelho de Deus, dizendo: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho». Caminhando junto ao mar da Galileia, viu Simão e seu irmão André, que lançavam as redes ao mar, porque eram pescadores. Disse-lhes Jesus: «Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens». Eles deixaram logo as redes e seguiram Jesus. Um pouco mais adiante, viu Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João, que estavam no barco a consertar as redes; e chamou-os. Eles deixaram logo seu pai Zebedeu no barco com os assalariados e seguiram Jesus.

Este Domingo da Palavra, ouvimos Jesus anunciar o Reino de Deus.
Vejamos o que diz e a quem o diz.
Papa Francisco

O que diz. Jesus começa a pregar assim: «Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo» (Mc 1, 15). Deus está perto: é a primeira mensagem. O seu Reino desceu à terra. Deus não está – como frequentemente nos sentimos tentados a pensar – lá em cima nos céus, distante, separado da condição humana, mas está connosco. O tempo da distância acabou, quando Se fez homem em Jesus. Desde então, Deus está muito perto; nunca Se separará nem Se cansará da nossa humanidade. Esta proximidade é o início do Evangelho, é o que Jesus – sublinha o texto – «dizia» (1, 15): não disse uma vez, e acabou; mas dizia, isto é, repetia-o continuamente. «Deus está próximo»: era o leitmotiv do seu anúncio, o coração da sua mensagem. E se este é o início e o refrão da pregação de Jesus, de igual modo deve constituir a constante da vida e do anúncio cristão. Antes de mais nada, há que acreditar e anunciar que Deus Se aproximou de nós, que fomos perdoados, «misericordiados». Antes de qualquer palavra nossa sobre Deus, está a sua Palavra para nós, que continua a dizer-nos: «Não tenhas medo, estou contigo. Estou perto de ti e continuarei a estar».

A Palavra de Deus permite-nos tocar com a mão esta proximidade, já que ela – como diz o Deuteronómio – não está longe de nós, antes está muito perto do nosso coração (cf. 30, 14). É o antídoto contra o medo de enfrentar a vida sozinho. Com efeito o Senhor, através da sua Palavra, con-sola, isto é, permanece com quem está . Falando connosco, lembra-nos que estamos no seu coração, somos preciosos a seus olhos, estamos guardados na palma das suas mãos. A Palavra de Deus infunde esta paz, mas não deixa em paz. É Palavra de consolação, mas também de conversão. «Convertei-vos»: acrescenta Jesus imediatamente depois de ter proclamado a proximidade de Deus, porque com a sua proximidade acabou o tempo de deixarmos à distância Deus e os outros, acabou o tempo em que cada um só pensa em si e avança por conta própria. Isto não é cristão, porque a pessoa que experimenta a proximidade de Deus não pode colocar à distância o próximo, não pode deixá-lo distante na indiferença. Neste sentido, quem frequenta a Palavra de Deus, obtém viragens salutares na sua existência: descobre que a vida não é tempo para se guardar dos outros e proteger a si mesmo, mas ocasião para ir ao encontro dos outros em nome deste Deus próximo. Assim a Palavra, semeada no terreno do nosso coração, leva-nos a semear esperança através da proximidade. Precisamente como Deus faz connosco.

Vejamos agora a quem fala Jesus. Dirige-Se, em primeiro lugar, a pescadores da Galileia. Eram pessoas simples, que viviam do trabalho das suas mãos labutando duramente noite e dia. Não eram especialistas na Sagrada Escritura, nem se salientavam certamente por ciência e cultura. Moravam numa região heterogénea, com vários povos, etnias e cultos: era o lugar mais afastado da pureza religiosa de Jerusalém, o mais distante do coração do país. Mas Jesus começa de lá: não do centro, mas da periferia. E fá-lo também para nos dizer que ninguém fica marginalizado no coração de Deus. Todos podem receber a sua Palavra e encontrá-Lo pessoalmente. A propósito, há um significativo detalhe no Evangelho, quando se observa que a pregação de Jesus chega «depois» da de João (Mc 1, 14). Trata-se de um depois decisivo, que marca a diferença: João acolhia as pessoas no deserto, aonde iam só aqueles que podiam deixar os lugares da sua vida. Diversamente, Jesus fala de Deus no coração da sociedade humana, a todos, onde quer que estejam. E não fala em horários e tempos pré-estabelecidos: «passando ao longo do mar», fala a pescadores enquanto «lançavam as redes» (1, 16). Dirige-se às pessoas nos lugares e momentos mais comuns. Tal é a força universal da Palavra de Deus, que alcança a todos em cada uma das áreas da sua vida.

Mas a Palavra também tem uma força individual, isto é, incide sobre cada um de maneira direta, pessoal. Os discípulos nunca mais esquecerão as palavras ouvidas naquele dia nas margens do lago, perto do barco, dos familiares e colegas; palavras que marcarão para sempre a sua vida. Jesus diz-lhes: «Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens» (1, 17). Não os atrai com discursos elevados e inacessíveis, mas fala às suas vidas: a pescadores de peixes diz que serão pescadores de homens. Se lhes tivesse dito «vinde comigo, farei de vós Apóstolos; sereis enviados ao mundo e anunciareis o Evangelho com a força do Espírito; sereis mortos, mas tornar-vos-eis santos», podemos imaginar que Pedro e André Lhe teriam respondido: «Obrigado, mas preferimos as nossas redes e os nossos barcos». Mas Jesus chama-os partindo da sua vida: «Sois pescadores, tornar-vos-eis pescadores de homens». Conquistados por esta frase, irão descobrindo passo a passo que viver a pescar peixes era pouco; o segredo da alegria está em fazer-se ao largo obedecendo à Palavra de Jesus. É assim que o Senhor procede connosco: procura-nos onde estamos, ama-nos como somos e, pacientemente, acompanha os nossos passos. Como àqueles pescadores, vai esperar-nos também aos locais da nossa vida. Com a sua Palavra, quer fazer-nos mudar de rumo, deixando de nos limitarmos a matar o tempo para nos fazermos ao largo com Ele.

Por isso, queridos irmãos e irmãs, não renunciamos à Palavra de Deus. É a carta de amor escrita para nós por Aquele que nos conhece como ninguém: lendo-a, voltamos a ouvir a sua voz, vislumbramos o seu rosto, recebemos o seu Espírito. A Palavra aproxima-nos de Deus: não a deixemos longe. Levemo-la sempre connosco, no bolso, no telemóvel; reservemos-lhe um lugar digno nas nossas casas. Coloquemos o Evangelho num lugar onde nos lembremos de o abrir diariamente, talvez no começo e no fim do dia, de tal modo que, no meio de tantas palavras que chegam aos nossos ouvidos, qualquer versículo da Palavra de Deus chegue ao coração. Para o conseguir, peçamos ao Senhor a força de desligar a televisão e abrir a Bíblia, de apagar o telemóvel e abrir o Evangelho. Neste Ano Litúrgico, estamos a ler o Evangelho de Marcos, o mais simples e curto. Por que não fazê-lo também em privado, meditando uma pequena passagem cada dia? Far-nos-á sentir próximo o Senhor e infundirá coragem no caminho da vida.
Domingo da Palavra 2021

Ele vem a cada instante
José Tolentino Mendonça

Nós estamos a começar o Tempo Comum, hoje estamos no terceiro domingo. O Tempo Comum é aquele eixo fundamental que atravessa o nosso ano litúrgico. Temos o Advento e o Natal que celebram o mistério da encarnação de Jesus, temos a Quaresma e a Páscoa que nos centram no mistério da nossa Salvação. Mas, o Tempo Comum acaba por ser o grande leito por onde a nossa vida flui, onde as águas do nosso coração correm.

A começar, com o sabor de começo, há esta reflexão que a Palavra de Deus nos propõe sobre como é que havemos de viver, como é que há de ser o tempo da nossa vida e que coisa é o tempo do ponto de vista cristão. Porque, o Cristianismo não é apenas uma proposta para ser vivida no espaço individual das nossas vidas, tem também uma visão global da própria história. Não serve apenas para pessoas, tomadas singularmente, mas é uma visão do destino humano, uma visão da própria criação, da própria realidade que o Cristianismo apresenta. Nesse sentido, é muito importante este passo da Primeira Carta aos Coríntios que hoje nós lemos e que pode soar até um pouco estranho aquilo que Paulo diz. Iremos a isso e faremos desse texto a base da nossa meditação.

Mas ainda queria, em jeito de introdução, dizer que no século XIX, no século XX revisitou-se muito a origem do Cristianismo e leu-se muito o Cristianismo na chave apocalíptica. Olhava-se para os primeiros cristãos, para Pedro, João, Paulo, para os seus escritos e aquilo que se entendia era isto: os primeiros cristãos viviam numa expectativa do regresso de Jesus, mas um regresso iminente. Paulo estaria convencido que ele próprio ainda assistiria à última manifestação de Jesus. E depois, como Jesus se foi demorando, como a escatologia não se realizava, os cristãos e o Cristianismo adotaram uma espécie de real politique, uma espécie de pragmatismo histórico a dizer assim: nós não podemos ser apocalípticos toda a vida porque já vimos que isto vai demorar um bocado, não sabemos nem o tempo nem a hora, então, vamo-nos adaptar pelo menos neste mundo vivendo na lembrança e na expectativa sempre do que virá, do que será, do que se revelará.

Hoje nós percebemos os limites desta interpretação do Cristianismo, considerando-o como uma forma apocalíptica de religião. Porque, de facto, o Cristianismo não é apocalíptico, o Cristianismo é messiânico, e nós somos um Povo messiânico. E o messianismo olha para o tempo de uma outra forma, de uma outra maneira. S. Paulo ajuda-nos muito a perceber qual é a essência do tempo cristão. Ele começa, nesta leitura que nós lemos do capítulo VII da Primeira Carta aos Coríntios, com uma imagem muito forte, ele diz: “Irmãos, o tempo foi abreviado.”

O que é que ele quer dizer com isso? A palavra em grego é usada para duas coisas. É usada, por exemplo, quando um animal está para dar um salto e encolhe-se todo para depois se esticar no ar. Isso é o verbo que Paulo usa para dizer que o tempo foi abreviado. Ou então, quando nós baixamos uma vela para depois a voltar a erguer. Então, o tempo é breve não quer dizer que temos um tempo breve, o tempo é o que é. Mas o tempo foi abreviado no sentido em que o tempo foi transformado. A experiência que nós agora fazemos do tempo não é a mesma. Do tempo cronológico, hoje ser domingo, amanhã ser segunda, hoje ser quase meio-dia, depois haver a tarde e a noite. A maneira de vivermos o tempo é transformada, é outra. E é transformada como? Como é que nós vemos isso? É transformada porque agora o tempo é messiânico, porque agora nós contamos com a experiência de Jesus. Jesus já veio, Jesus já Se revelou como o Messias, o Messias de Israel e o Messias universal. E isso dá-nos um entendimento outro da vida. Jesus não está atrasado. Na visão apocalíptica podemos dizer: os cristãos tinham expectativas que não se cumpriam e depois adaptaram-se pragmaticamente à realidade. Não, Jesus não está atrasado, no sentido em que nós podemos dizer que um comboio está atrasado. Não, Ele vem a cada instante, Ele vem a cada minuto.

O filosofo Walter Benjamin dizia: “Cada instante é a pequena porta por onde entra o Messias.“ Então, cada segundo da nossa vida, cada momento é o lugar onde Ele vem, onde Ele Se manifesta, onde Ele chega. É interessante que Paulo, e encontramos isso também nos Evangelhos sinópticos, fala de Jesus como oerkomenos, que é um particípio presente em grego do verbo vir, que quer dizer vir. Jesus é aquele que vem, é aquele que chega, não é aquele que chegou é aquele que está a chegar, que está chegando a cada instante da nossa vida. E isso, claro, tem consequências, tem de ter consequências na maneira como nós entendemos e vivemos a vida. E a consequência é uma espécie de revogação do modo habitual de viver. A forma da nossa existência que foi revogada. Por isso é que Paulo diz:” Os que têm esposas procedam como se não as tivessem, os que choram como se não chorassem, os que andam alegres como se não andassem, os que compram como se não possuíssem.” É uma revogação que acontece, mas uma revogação que diz: encontra na tua existência uma nova compreensão do teu lugar, encontra um novo uso para aquilo que és e vive a tua vida, vive o modo da tua existência oferecendo-lhe um outro significado.

É interessante que mesmo antes deste parágrafo que nós lemos do capítulo sétimo da primeira a Coríntios, S. Paulo está a dizer: “Se és escravo não desesperes com a tua situação mas percebe que como escravo também serás salvo, não desesperes porque também assim serás salvo.” Trata-se de percebermos que tudo aquilo que somos está como que marcado, assinalado por um significado outro. Se eu sou casado eu vivo o casamento com um significado outro, se sou celibatário vivo a minha condição com um significado outro, se as coisas me correm bem vivo o meu sucesso com um significado outro, se estou na tristeza, em momentos crucificantes vivo esses momentos de uma outra maneira dando um outro uso à minha vida. Quer dizer, não absolutizo as formas mas percebo que elas são apenas formas e que nelas eu tenho de encontrar as mediações de um uso novo. O Cristianismo não é o outro tempo, não é para nos preparar para o mundo que há de vir, mas é ajudar-nos a ver que Jesus é aquele que vem em cada instante, em cada momento. Por isso, nós não estamos à espera do fim dos tempos. Nós, no nosso presente histórico, já estamos a viver o tempo do fim.

Isto é, já ligamos cada instante, cada manifestação da nossa existência atual àquilo que é em plenitude o próprio Messias. Por isso, não estamos à espera daquele momento em que tudo vai acabar. Não, nós já vivemos o tempo do fim, já relacionamos cada parte da nossa existência a essa manifestação do próprio Senhor. Encontramos assim uma nova qualidade para o tempo da nossa vida e percebemos que não somos um povo desmobilizado. Pelo contrário, um povo messiânico é um povo mobilizado. Por isso, Jesus começa o seu anúncio, a sua vida pública também com uma palavra sobre o tempo. Jesus diz: “Cumpriu-se o tempo, o tempo encontrou a sua plenitude.” O tempo é o kairós, chronos é o kairós, o tempo é kairológico, o tempo é um momento oportuno. O tempo não é só tempo, não é este instante cego atrás de outro instante cego, este Chronos que devora os próprios filhos como é a experiência psicológica que tantas vezes nós fazemos do tempo, que não temos tempo e sentimo-nos devorados pela própria ideia de tempo. Não é isso, o tempo é um tempo kairológico, no sentido de que nos faz ver que este instante da nossa vida é o momento oportuno, é a oportunidade. Os cristãos olham para o tempo como uma oportunidade. Este momento das nossas vidas que estamos a viver é a oportunidade que Deus nos está a dar para vivermos plenamente o seu mistério, a sua relação com Ele, para acolhermos em plenitude, para o nosso coração ser a tal pequena porta por onde Ele entra.Faz-nos olhar para o tempo como um lugar onde o chamamento acontece. Por isso, queridos irmãs e irmãos, a nossa existência é vocacional. Nós somos mulheres e homens chamados, como Jesus passou à beira do lago e disse a Simão e André: “Vem comigo.” E disse a Tiago e a João: “Vem comigo.” Ele passa hoje na nossa vida e diz: “Vem comigo, vem comigo.” E é esse estar com Ele, esse fazer coincidir o nosso coração com o coração Dele que dá um outro sentido ao tempo da nossa vida.

Por isso, queridos irmãos, o Cristianismo não nos atira para lá da história. Não está interessado apenas nas razões últimas. O Cristianismo é muito interessado nas razões penúltimas, está muito interessado no aqui e no agora da nossa vida. Porque o tempo é um templo. O presente é já o futuro de Deus, é já o lugar teofânico, é já o lugar da irrupção desse grande encontro com o Senhor. Que esta compreensão do tempo nos mobilize, que este tempo comum não seja o anticlímax da nossa vida, dizendo: o tempo comum não é um tempo forte, é o mês de janeiro, é aquele mês para tentar recuperar forças e cabeças depois das loucuras todas de dezembro, depois fevereiro é para entrar um bocado na linha depois do Carnaval. Vivemos a vida um bocadinho como um anticlímax à espera dos momentos extraordinários. Não, a visão cristã do tempo não é essa. Cada momento do nosso presente é já a plenitude de Deus. Por isso, confiança, confiança, confiança. Por isso, vigilância naquilo que vivemos, por isso, compromisso com o Senhor que passa no aqui e no agora trémulo, inacabado, imperfeito, mas no agora Ele passa e dá um significado àquilo que vamos vivendo.

“O que tenho a dizer-vos, irmãos, é que o tempo abreviou-se.” O tempo abreviou-se, o tempo concentrou-se para poder dar o salto. Sintamos esta concentração, concentração do nosso coração, da nossa carne, dos nossos projetos, sintamos isso como desafio àquilo que somos, aos cristãos que somos. Porque Cristianismo vive no mundo com uma certa pretensão. Há coisas que nos fazem um bocadinho rir, não sabemos a origem das coisas. Por exemplo, a palavra “paróquia”. Nós dizemos: isso é paroquial. Olhamos para a paróquia como um velho uso que veio de séculos passados, que a gente não sabe o que é. Há dois verbos em grego para dizer os habitantes. Como hoje, há os cidadãos de pleno direito, que pagam os seus impostos ou nasceram aqui, ou de cidadania e, pronto, estão aqui, estáveis na cidade. E há aqueles que estão de passagem. Ou porque são turistas, têm um visto que vai expirar na data certa, ou porque são clandestinos. Esses são os de passagem e há os estáveis. A palavra “paróquia”, paroikos, quer dizer: “os de passagem”. Então, uma paróquia quer dizer a circunscrição daqueles que estão de passagem, daqueles que não são daqui, não estão aqui estavelmente. E de facto, nós somos esse povo. Esta pequena comunidade são pessoas que assumem a compreensão que estão de passagem, que não pertencemos aqui. Temos de viver qualificando o tempo de outra forma, à maneira de Jesus, seguindo-o à maneira destes que deixaram tudo e foram viver com Ele.

Sigamos Jesus. Ouçamos a Sua Palavra e façamos da Sua vida a oportunidade para a nossa própria vida.
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O Evangelho da vocação cristã
Enzo Bianchi

Cada um de nós, sobretudo se é idoso, vive muitas vezes com as suas lembranças do passado, em particular aquelas que remetem para um início, o começo de uma sequência de acontecimentos importantes, um amor que marca para toda a vida.

Também o cristão realiza esta operação de procurar no passado, como que para o reviver, a hora da conversão; ou melhor, a hora da vocação, quando ele se tornou consciente, no seu coração, de que talvez Jesus desejasse um maior envolvimento na sua vida do que até então.

A página do Evangelho deste domingo quer ser precisamente uma narração da vocação, em que pode espelhar-se quem se predispõe a tudo para escutar o chamamento de Jesus, ou constituir a oportunidade para a recordar como um acontecimento do passado, que pode continuar ou não a ter força ou significado.

Jesus regressa à Galileia, a terra da sua infância, para iniciar a proclamação de uma mensagem que sentia dentro de si como uma missão da parte de Deus Pai.

Começa esta vida de pregação e de itinerância depois que João, o seu rabino, aquele que o educou na vida conforme à aliança com Deus, e que também o imergiu nas águas do rio Jordão (cf. Marcos 1, 9), foi metido na prisão com Herodes. É o fim de quem é profeta, e Jesus desde logo se apercebe de que se quer continuar o caminho do seu mestre, mais cedo ou mais tarde conhecerá a perseguição e a morte violenta.

Jesus começa a proclamar a boa notícia, o Evangelho de Deus, consciente de que o tempo da preparação, para Israel o tempo da expetativa dos profetas, que o tempo da paciência de Deus chegou ao seu cumprimento, como o tempo de uma mulher grávida.

No fim da gestação acontece o parto, e assim Jesus anuncia: «Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; convertei-vos e acreditai no Evangelho». Eis a síntese da sua pregação: é o início de um tempo novo em que é possível fazer reinar Deus na vida dos homens.

Para que isto suceda, é preciso converter-se, voltar a Deus, e depois acreditar na boa notícia que é a presença e a palavra do próprio Jesus. Sim, é apenas um versículo que diz esta novidade, e todavia é o início de um tempo que chega até hoje e aqui: é possível que Deus reine em mim, em ti, em nós, e assim acontece a vinda do Reino de Deus.

Perante esta jubilosa notícia, mas também perante esta nova possibilidade oferecida pela presença de Jesus, estamos nós, homens e mulheres, que continuamos hoje a escutar o Evangelho. O que fazemos? Como reagimos?

Estamos talvez a viver o nosso dia a dia dedicados ao nosso trabalho, às nossas ocupações quotidianas, quaisquer que sejam, para ganhar o nosso sustento; ou estamos num momento de pausa; ou estamos a falar com outros… Não há uma hora pré-estabelecida. De repente, no nosso coração, sem que os outros se apercebam, acende-se uma chama.

«Será? Será que escuto uma voz? Conseguirei responder “sim”? Será uma voz que me chama a partir? Para onde? A seguir quem? Jesus? E como faço? Será possível?»

Muitas perguntas que se intersetam, desaparecem e regressam; mas se são escutadas com atenção, pode acontecer que nelas se ouça uma voz mais profunda em nós mesmos, uma voz que vem de fora de nós mesmos e, todavia, através de nós mesmos: a voz de Jesus. É assim que se inicia uma relação entre cada um de nós e Ele, sim, Ele, o Senhor, presença invisível mas viva, presença que não fala de maneira sonora, mas atrai…

Aqui, no Evangelho de domingo, este processo de vocação é sintetizado e, por assim dizer, estilizado pelo autor, que narra só o essencial: Jesus passa, vê e chama; alguém escuta e leva a sério a sua palavra «segue-me», e envolve-se na sua vida.

É isto que é verdadeiro para todos, e é inútil dizer mais: seria apenas ir atrás de processos psicológicos… Mas o essencial está dito, de uma vez por todas: escuta-se a vocação, abandona-se as redes, isto é, a profissão, deixa-se o pai e a barca, ou seja, a família, e assim, no despojamento, segue-se Jesus.

Atenção, porém: a vocação é uma aventura repleta de grandeza, mas também de miséria. Para compreendê-lo, é suficiente seguir nos Evangelhos a vida dos primeiros quatro chamados.

O primeiro, Pedro, em quem Jesus muito confiou, vivendo próximo dele muitas vezes nada entende dele (cf. Marcos 8, 32; Mateus 16, 22), ao ponto de Jesus o ter chamado de “Satanás” (Marcos 8, 33; Mateus 16, 23); chega a estar tão distante de Jesus que o contradiz (cf. João 13, 8); abandona-o para ir dormir (cf. Marcos 14,37-41 e paralelos); e, por fim, renega-o, diz que nunca o conheceu (cf. Marcos 14, 66-72 e par.; João 18, 17.25-27).

André, Tiago e João não compreendem Jesus em muitas situações, interpretam mal as suas palavras e desconhecem o seu coração; os dois filhos de Zebedeu, em particular, são asperamente criticados por Jesus quando invocam um fogo do céu para punir quem não os ouviu (cf. Lucas 9, 54-55); e também eles, no Getsémani, adormecem juntamente com Pedro.

Mas há mais, e Marcos sublinha-o implacavelmente: aqueles que «abandonando tudo seguiram Jesus», na hora da paixão, «abandonando Jesus, fugiram todos» (14, 50)…

Pobre seguimento! Sim, o meu seguimento, o teu seguimento, caro leitor. Não teremos muito de que nos vangloriar. Devemos apenas invocar da parte de Deus muita misericórdia e agradecer-lhe, porque, não obstante tudo, continuamos ainda atrás de Jesus, e tentamos ainda, dia após dia, viver com Ele.

Enzo Bianchi
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
http://www.snpcultura.org

Nos teus invernos há sementes que germinam
Ermes Ronchi

Marcos conduz-nos ao momento primordial em que uma notícia extraordinária começa a correr pela Galileia, anunciando com a primeira palavra: o tempo cumpriu-se, o Reino de Deus está aqui.

Jesus não demonstra o Reino, mostra-o e fá-lo florir das suas mãos: liberta, cura, perdoa, derruba barreiras, volta a dar a plenitude a todos, a começar pelos últimos. O Reino é Deus que vem para curar do mal de viver, como a vida que desponta em todas as suas formas.

A segunda palavra de Jesus pede para tomar posição: convertei-vos, voltai-vos para o Reino. Há uma ideia de movimento na conversão, como no girassol que a cada manhã volta a erguer a sua corola e a orienta na direção do sol. Convertei-vos: isto é, voltai-vos para a luz porque a luz já está aqui.

A cada manhã, a cada despertar, também eu posso converter-me, dirigir pensamentos, sentimentos e escolhas para uma estrela polar do viver, para a boa notícia de que Deus está hoje mais próximo, penetrou mais profundamente no coração do mundo e no meu, com mansidão e poderosa energia para o amanhecer de novos céus e nova terra.

Também eu posso construir o meu dia sobre esta feliz certeza; deixar de ter os olhos baixos sobre os meus mil problemas, mas levantar a cabeça para a luz, para o Senhor que me assegura: Eu estou contigo, nunca te deixo, nunca serás abandonado.

Crer no Evangelho. Não basta aderir a uma doutrina; é preciso atirar-se para dentro dele, para que a nossa vida seja submersa nele e dele derivem as nossas escolhas.

Caminhando ao longo do lago, Jesus vê… Vê Simão e nele intui Pedro, a Rocha. Vê João e nele perscruta o discípulo das mais belas palavras de amor. Um dia olhará a adúltera trazida à força para diante dele e nela verá a mulher capaz de amar de novo.

O Mestre olha também para mim; nos meus invernos vê sementes que germinam, generosidade que desconhecia ter, capacidades de que não suspeitava. O olhar de Jesus alarga o coração, torna-o mais amplo. Deus tem para mim a confiança de quem contempla as estrelas ainda antes que se iluminem.

Segue-me, vem após mim. Jesus não se alonga em motivações, porque o motivo é Ele, que te coloca o Reino recém-nascido entre as mãos. E di-lo com uma palavra inédita: farei de vós pescadores de homens. Como se dissesse: farei de vós buscadores de tesouros.

Como se dissesse: o meu e o vosso tesouro são os homens. Havereis de os tirar para fora da escuridão, como peixes sob a superfície das águas, como recém-nascidos das águas maternas, como tesouro desenterrado do campo. Passá-los-eis da vida submersa à vida ao sol. Mostrareis que o Evangelho é a chave para viver melhor.

Ermes Ronchi In “Avvenire”
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
http://www.snpcultura.org

Um projecto missionário, tão amplo como o coração de Deus

Depois do Baptismo no Jordão e da experiência no deserto, Jesus inicia a sua vida pública com um anúncio essencial, que Marcos – o evangelista que se lê neste ano litúrgico – apresenta em quatro pontos (v. 15): cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus; é preciso converter-se e acreditar nesta boa-nova.

O Evangelho de Marcos, embora na sua brevidade e concisão, tem uma mensagem global e completa. «O catecúmeno no Evangelho de Marcos – os cristãos de hoje, cada um de nós – é convidado a compreender que Deus está a tomar posse da sua vida e vai ao seu encontro com uma misteriosa iniciativa, que ele é chamado a aceitar» (Carlos Maria Martini). Do início ao fim, uma pergunta insistente percorre os 16 capítulos de Marcos: «Quem é Jesus?» Os numerosos milagres de curas e uma doutrina nova ensinada com autoridade por um Mestre surpreendente (1,27), culminam na profissão de fé de duas testemunhas oculares coincidentes: o discípulo Pedro, que afirma: «Tu é o Cristo» (8,29) e o centurião pagão, que aos pés da cruz declara: «Verdadeiramente este homem era Filho de Deus» (15,39). Tais afirmações – colocadas no meio e no fim do Evangelho de Marcos – recebem confirmação imediata no acontecimento da ressurreição (16,6).

O núcleo da mensagem de Jesus é que a iniciativa de Deus para salvar o mundo já está em acto: com a encarnação do Filho, Deus pôs a sua tenda definitiva no meio dos homens; em Jesus Cristo o Reino atingiu a plenitude; a salvação de todos passa necessariamente através da Pessoa do Deus que assumiu carne humana. O acontecimento é de tal ordem que justifica plenamente quer os pedidos de Jesus: «Convertei-vos e acreditai no Evangelho» (v. 15), quer a decisão radical em segui-lo «de imediato» deixando de lado afectos e interesses pessoais (v. 18.20) A conversão comporta uma mudança radical de mentalidade relativamente ao modo de se relacionar com Deus, com o semelhante e com o mundo criado. Da parte de Deus não haverá outras propostas: o Evangelho já está todo presente em Jesus, não haverá outro. O Evangelho/Boa-Nova não é um livro de doutrina ou de teorias espirituais: é uma Pessoa, é o próprio Jesus. Os primeiros quatro discípulos (v. 16-20), e depois os outros, não seguem uma doutrina ainda que admirável, mas uma Pessoa. Sentem que podem confiar nele, abrem-lhe o fundo do coração, confiam-lhe o seu destino. Embora com alguma fragilidade, seguem-no a ponto de dar a vida por Ele!

O Mestre chama os discípulos, forma-os, transforma-os, envia-os. O seguimento conduz sempre à missão: Jesus faz deles pescadores de homens (v. 17), portadores de um novo projecto de vida, a Boa-nova por excelência. (*) A família humana tem extrema necessidade do Evangelho, para poder viver em plenitude, como explica São Paulo (II leitura), mesmo no meio de situações de precariedade, sem sucumbir às seduções dos ídolos do momento, uma vez que «o cenário deste mundo é passageiro!» (v. 31).

Deus ama todas as pessoas e quer-nos todos felizes: prova disso é o acontecimento que se chama Cristo! Levar esta mensagem até aos confins do mundo é tarefa de todos os seus seguidores, chamados a ser discípulos e missionários de coração grande, a exemplo do coração de Deus. Não pessoas mesquinhas, teimosas e ciumentas como Jonas (I leitura), profeta que, num primeiro momento, foge (Jn 1) para não realizar o mandato missionário de Deus que o envia aos povos pagãos de Nínive. Em seguida, Jonas efectua o anúncio só parcialmente, «durante um dia de caminho» (v. 3,4), sentando-se depois a protestar contra Deus, porque «é bom e misericordioso» para com os habitantes de Nínive, sempre pronto ao perdão, sobretudo para com os que estão longe (Jn 4). Esta universalidade é um valor fundamental a todos os níveis: pelo conteúdo da mensagem (o Evangelho), pelos destinatários do anúncio (todos os povos, todos os crentes em Cristo), pelos missionários e as missionárias, que o Senhor chama, também hoje, a ser portadores da Sua mensagem de salvação.

A festa da Conversão de São Paulo (25/1) e a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos (18-25/1) oferecem pontos fecundos de reflexão missionária sobre a Palavra de Deus, a qual pede a cada pessoa uma mudança de mentalidade (conversão), abertura ao Evangelho de Jesus, disponibilidade a lançar sempre e a todos esta massagem de vida.
Romeo Ballan, mccj

CARTA APOSTÓLICA
SOB FORMA DE MOTU PROPRIO

APERUIT ILLIS

DO SANTO PADRE
FRANCISCO

PELA QUAL SE INSTITUI
O DOMINGO DA PALAVRA DE DEUS

1. «ABRIU-LHES o entendimento para compreenderem as Escrituras» (Lc 24, 45). Trata-se de um dos últimos gestos realizados pelo Senhor ressuscitado, antes da sua Ascensão. Encontrando-se os discípulos reunidos, Jesus aparece-lhes, parte o pão com eles e abre-lhes o entendimento à compreensão das sagradas Escrituras. Revela àqueles homens, temerosos e desiludidos, o sentido do mistério pascal, ou seja, que Ele, segundo os desígnios eternos do Pai, devia sofrer a paixão e ressuscitar dos mortos para oferecer a conversão e o perdão dos pecados (cf. Lc 24, 26.46-47); e promete o Espírito Santo que lhes dará a força para serem testemunhas deste mistério de salvação (cf. Lc 24, 49).

A relação entre o Ressuscitado, a comunidade dos crentes e a Sagrada Escritura é extremamente vital para a nossa identidade. Sem o Senhor que nos introduz na SagradaEscritura, é impossível compreendê-la em profundidade; mas é verdade também o contrário, ou seja, que, sem a Sagrada Escritura, permanecem indecifráveis os acontecimentos da missão de Jesus e da sua Igreja no mundo. Como justamente escreve S. Jerónimo, «a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo» (Commentarii in Isaiam, Prologus: PL 24, 17).

2. No termo do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, pedi que se pensasse num «domingo dedicado inteiramente à Palavra de Deus, para compreender a riqueza inesgotável que provém daquele diálogo constante de Deus com o seu povo» (Carta ap. Misericordia et misera, 7). A dedicação dum domingo do Ano Litúrgico particularmente à Palavra de Deus permite, antes de mais nada, fazer a Igreja reviver o gesto do Ressuscitado que abre, também para nós, o tesouro da sua Palavra, para podermos ser no mundo arautos desta riqueza inexaurível. A propósito, voltam à mente os ensinamentos de Santo Efrém: «Quem poderá compreender, Senhor, toda a riqueza duma só das tuas palavras? Como o sedento que bebe da fonte, muito mais é o que perdemos do que o que tomamos. A tua palavra apresenta muitos aspetos diversos, como diversas são as perspetivas daqueles que a estudam. O Senhor pintou a sua palavra com muitas belezas, para que aqueles que a perscrutam possam contemplar aquilo que preferirem. Escondeu na sua palavra todos os tesouros, para que cada um de nós se enriqueça em qualquer dos pontos que medita» (Comentários sobre o Diatessaron, 1, 18).

Assim, com esta Carta, pretendo dar resposta a muitos pedidos que me chegaram da parte do povo de Deus no sentido de se poder celebrar o Domingo da Palavra de Deus em toda a Igreja e com unidade de intenções. Já se tornou uma prática comum viver certos momentos em que a comunidade cristã se concentra sobre o grande valor que a Palavra de Deus ocupa na sua vida diária. Nas diversas Igrejas locais, há uma riqueza de iniciativas que torna a Sagrada Escritura cada vez mais acessível aos crentes para os fazerem sentir-se agradecidos por tão grande dom, comprometidos a vivê-lo no dia a dia e responsáveis por testemunhá-lo com coerência.

O Concílio Ecuménico Vaticano II deu um grande impulso à redescoberta da Palavra de Deus, com a constituição dogmática Dei Verbum. Das suas páginas que merecem ser sempre meditadas e vividas, emergem de forma clara a natureza da Sagrada Escritura, a sua transmissão de geração em geração (cap. II), a sua inspiração divina (cap. III) que abraça o Antigo e o Novo Testamento (caps. IV e V) e a sua importância para a vida da Igreja (cap. VI). Para incrementar esta doutrina, Bento XVI convocou em 2008 uma Assembleia do Sínodo dos Bispos sobre o tema «A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja» e, depois dela, publicou a exortação apostólica Verbum Domini, que constitui um ensinamento imprescindível para as nossas comunidades[1]. Neste Documento, aprofunda-se de modo particular o caráter performativo da Palavra de Deus, sobretudo quando, na ação litúrgica, emerge o seu caráter propriamente sacramental[2].

Por isso, é bom que não venha jamais a faltar na vida do nosso povo esta relação decisiva com a Palavra viva, que o Senhor nunca Se cansa de dirigir à sua Esposa, para que esta possa crescer no amor e no testemunho da fé.

3. Portanto estabeleço que o III Domingo do Tempo Comum seja dedicado à celebração, reflexão e divulgação da Palavra de Deus. Este Domingo da Palavra de Deus colocar-se-á, assim, num momento propício daquele período do ano em que somos convidados a reforçar os laços com os judeus e a rezar pela unidade dos cristãos. Não se trata de mera coincidência temporal: a celebração do Domingo da Palavra de Deus expressa uma valência ecuménica, porque a Sagrada Escritura indica, a quantos se colocam à sua escuta, o caminho a seguir para se chegar a uma unidade autêntica e sólida.

As comunidades encontrarão a forma de viver este Domingo como um dia solene. Entretanto será importante que, na celebração eucarística, se possa entronizar o texto sagrado, de modo a tornar evidente aos olhos da assembleia o valor normativo que possui a Palavra de Deus. Neste Domingo, em particular, será útil colocar em evidência a sua proclamação e adaptar a homilia para se pôr em destaque o serviço que se presta à Palavra do Senhor. Neste Domingo, os Bispos poderão celebrar o rito do Leitorado ou confiar um ministério semelhante, a fim de chamar a atenção para a importância da proclamação da Palavra de Deus na liturgia. De facto, é fundamental que se faça todo o esforço possível no sentido de preparar alguns fiéis para serem verdadeiros anunciadores da Palavra com uma preparação adequada, tal como já acontece habitualmente com os acólitos ou os ministros extraordinários da comunhão. Da mesma maneira, os párocos poderão encontrar formas de entregar a Bíblia, ou um dos seus livros, a toda a assembleia, de modo a fazer emergir a importância de continuar na vida diária a leitura, o aprofundamento e a oração com a Sagrada Escritura, com particular referência à lectio divina.

4. O regresso do povo de Israel à pátria, depois do exílio de Babilónia, foi assinalado de modo significativo pela leitura do livro da Lei. A Bíblia dá-nos uma comovente descrição daquele momento, no livro de Neemias. O povo está reunido em Jerusalém, na praça da Porta das Águas, a escutar a Lei. Aquele povo dispersara-se com a deportação, mas agora encontra-se reunido à volta da Sagrada Escritura «como um só homem» (Ne 8, 1). Durante a leitura do Livro sagrado, o povo «escutava com atenção» (Ne 8, 3), ciente de encontrar naquela palavra o sentido para os acontecimentos vividos. Em reação à proclamação daquelas palavras, brotou a comoção e o pranto. Os levitas «liam, clara e distintamente, o livro da Lei de Deus e explicavam o seu sentido, de modo que se pudesse compreender a leitura. O governador Neemias, Esdras, sacerdote e escriba, e os levitas que instruíam o povo disseram a toda a multidão: “Este é um dia consagrado ao Senhor, vosso Deus; não vos entristeçais nem choreis”. Pois todo o povo chorava ao ouvir as palavras da Lei. (…) “Não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa força”» (Ne 8, 8-9.10).

Estas palavras encerram uma grande lição. A Bíblia não pode ser património só de alguns e, menos ainda, uma coletânea de livros para poucos privilegiados. Pertence, antes de mais nada, ao povo convocado para a escutar e se reconhecer nesta Palavra. Muitas vezes, surgem tendências que procuram monopolizar o texto sagrado, desterrando-o para alguns círculos ou grupos escolhidos. Não pode ser assim. A Bíblia é o livro do povo do Senhor que, escutando-a, passa da dispersão e divisão à unidade. A Palavra de Deus une os crentes e faz deles um só povo.

5. Nesta unidade gerada pela escuta, primariamente os Pastores têm a grande responsabilidade de explicar e fazer compreender a todos a Sagrada Escritura. Uma vez que é o livro do povo, todos os que têm a vocação de ser ministros da Palavra devem sentir fortemente a exigência de a tornar acessível à sua comunidade.

De modo particular, a homilia desempenha uma função totalmente peculiar, porque possui «um caráter quase sacramental» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 142). Introduzir profundamente na Palavra de Deus, com uma linguagem simples e adaptada a quem escuta, requer do sacerdote que faça descobrir também «a beleza das imagens que o Senhor utilizava para incentivar a prática do bem» (Ibid., 142). Trata-se duma oportunidade pastoral a não perder!

Com efeito, para muitos dos nossos fiéis, esta é a única ocasião que têm para captar a beleza da Palavra de Deus e a ver referida à sua vida diária. Por isso, é preciso dedicar tempo conveniente à preparação da homilia. Não se pode improvisar o comentário às leituras sagradas. Sobretudo a nós, pregadores, pede-se o esforço de não nos alongarmos desmesuradamente com homilias enfatuadas ou sobre assuntos não atinentes. Se nos detivermos a meditar e rezar sobre o texto sagrado, então seremos capazes de falar com o coração para chegar ao coração das pessoas que escutam, de modo a expressar o essencial que é recebido e produz fruto. Nunca nos cansemos de dedicar tempo e oração à Sagrada Escritura, para que seja acolhida, «não como palavra de homens, mas como ela é realmente, palavra de Deus» (1 Ts 2, 13).

É bom também que os catequistas, atendendo ao ministério que desempenham de ajudar a crescer na fé, sintam a urgência de se renovar através da familiaridade e estudo das sagradas Escrituras, que lhes consintam promover um verdadeiro diálogo entre aqueles que os escutam e a Palavra de Deus.

6. Antes de ir ter com os discípulos, que estavam fechados em casa, e de lhes abrir a mente ao entendimento da Sagrada Escritura (cf. Lc 24, 44-45), o Ressuscitado aparece a dois deles no caminho que vai de Jerusalém a Emaús (cf. Lc 24, 13-35). Na sua narração, o evangelista Lucas faz notar que se verificou no próprio dia da Ressurreição, ou seja, no domingo. Aqueles dois discípulos conversavam sobre os recentes acontecimentos da paixão e morte de Jesus. O seu caminho é marcado pela tristeza e a desilusão, devido ao trágico fim de Jesus. Esperaram n’Ele como Messias libertador, e agora embatem no escândalo do Crucificado. Discretamente, o Ressuscitado em pessoa aproxima-Se e caminha com os discípulos, mas eles não O reconhecem (cf. Lc 24, 16). Ao longo do caminho, o Senhor interpela-os, dando-Se conta de que não compreenderam o sentido da sua paixão e morte; chama-lhes «homens sem inteligência e lentos de espírito» (Lc 24, 25) e, «começando por Moisés e seguindo por todos os Profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que Lhe dizia respeito» (Lc 24, 27). Cristo é o primeiro exegeta! Não só as Escrituras antigas tinham predito aquilo que Jesus havia de realizar, mas Ele próprio quis ser fiel àquela Palavra para tornar evidente a única história da salvação, que n’Ele encontra a sua realização.

7. Por isso a Bíblia, enquanto Escritura Sagrada,fala de Cristo e anuncia-O como Aquele que deve passar pelo sofrimento para entrar na glória (cf. Lc 24,26). E d’Ele falam não só uma parte, mas todas as Escrituras. Sem estas, são indecifráveis a sua morte e ressurreição. Por isso, uma das mais antigas confissões de fé sublinha que Cristo «morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, e apareceu a Cefas»(1 Cor 15, 3-5). Uma vez que as Escrituras falam de Cristo, consentem acreditar que a sua morte e ressurreição não pertencem à mitologia mas à história, e encontram-se no centro da fé dos seus discípulos.

É profundo o vínculo entre a Sagrada Escritura e a fé dos crentes. Sabendo que a fé vem da escuta, e a escuta centra-se na Palavra de Cristo (cf. Rm 10, 17), daí se vê a urgência e a importância que os crentes devem dar à escuta da Palavra do Senhor, tanto na ação litúrgica, como na oração e reflexão pessoais.

8. A «viagem» do Ressuscitado com os discípulos de Emaús conclui com a ceia. O misterioso Viandante acede ao pedido insistente que os dois Lhe dirigem: «Fica connosco, pois a noite vai caindo e o dia já está no ocaso» (Lc 24, 29). Sentam-se à mesa; Jesus toma o pão, pronuncia a bênção, parte-o e dá-o a eles. Naquele momento, abrem-se-lhes os olhos e reconhecem-No (cf. Lc 24, 31).

A partir desta cena, compreendemos como seja indivisível a relação entre a Sagrada Escritura e a Eucaristia. O Concílio Vaticano II ensina: «A Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o próprio Corpo do Senhor, não deixando jamais, sobretudo na sagrada Liturgia, de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida, quer da mesa da palavra de Deus quer da do Corpo de Cristo» (Dei Verbum, 21).

A frequência assídua da Sagrada Escritura e a celebração da Eucaristia tornam possível o reconhecimento entre pessoas que são parte umas das outras. Como cristãos, somos um só povo que caminha na história, fortalecido pela presença no meio de nós do Senhor que nos fala e alimenta. O dia dedicado à Bíblia pretende ser, não «uma vez no ano», mas uma vez por todo o ano, porque temos urgente necessidade de nos tornar familiares e íntimos da Sagrada Escritura e do Ressuscitado, que não cessa de partir a Palavra e o Pão na comunidade dos crentes. Para tal, precisamos de entrar em confidência assídua com a Sagrada Escritura; caso contrário, o coração fica frio e os olhos permanecem fechados, atingidos, como somos, por inumeráveis formas de cegueira.

Sagrada Escritura e Sacramentos são inseparáveis entre si. Quando os Sacramentos são introduzidos e iluminados pela Palavra, manifestam-se mais claramente como a meta dum caminho onde o próprio Cristo abre a mente e o coração ao reconhecimento da sua ação salvífica. Neste contexto, é preciso não esquecer um ensinamento que vem do livro do Apocalipse; lá se ensina que o Senhor está à porta e bate. Se uma pessoa ouvir a sua voz e Lhe abrir a porta, Ele entra para cear junto com ela (cf. 3, 20). Cristo Jesus bate à nossa porta através da Sagrada Escritura; se ouvirmos e abrirmos a porta da mente e do coração, então Ele entra na nossa vida e permanece connosco.

9. Na II Carta a Timóteo, que de certa forma constitui o testamento espiritual de Paulo, este recomenda ao seu fiel colaborador que frequente assiduamente a Sagrada Escritura. O Apóstolo está convencido de que «toda a Escritura é inspirada por Deus e adequada para ensinar, refutar, corrigir e educar na justiça» (3, 16). Esta recomendação de Paulo a Timóteo constitui uma base sobre a qual a constituição conciliar Dei Verbum aborda o grande tema da inspiração da Sagrada Escritura, base essa donde emergem particularmente a finalidade salvífica, a dimensão espiritual e o princípio da encarnação para a Sagrada Escritura.

Apelando-se, antes de mais nada, à recomendação de Paulo a Timóteo, a Dei Verbum sublinha que «os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Escrituras» (n. 11). Porque estas instruem tendo em vista a salvação pela fé em Cristo (cf. 2 Tm 3, 15), as verdades nelas contidas servem para a nossa salvação. A Bíblia não é uma coletânea de livros de história nem de crónicas, mas está orientada completamente para a salvação integral da pessoa. A inegável radicação histórica dos livros contidos no texto sagrado não deve fazer esquecer esta finalidade primordial: a nossa salvação. Tudo está orientado para esta finalidade inscritana própria natureza da Bíblia,composta como história de salvação na qual Deus fala e age para ir ao encontro de todos os homens e salvá-los do mal e da morte.

Para alcançar esta finalidade salvífica, a Sagrada Escritura, sob a ação do Espírito Santo, transforma em Palavra de Deus a palavra dos homens escrita à maneira humana (cf. Dei Verbum, 12). O papel do Espírito Santo na Sagrada Escritura é fundamental. Sem a sua ação, estaria sempre iminente o risco de ficarmos fechados apenas no texto escrito, facilitando uma interpretação fundamentalista, da qual é necessário manter-se longe para não trair o caráter inspirado, dinâmico e espiritual que o texto possui. Como recorda o Apóstolo, «a letra mata, enquanto o Espírito dá a vida» (2 Cor 3, 6). Por conseguinte, o Espírito Santo transforma a Sagrada Escritura em Palavra viva de Deus, vivida e transmitida na fé do seu povo santo.

10. A ação do Espírito Santonão diz respeito apenas à formação da Sagrada Escritura, mas atua também naqueles que se colocam à escuta da Palavra de Deus. É importante a afirmação dos padres conciliares, segundo a qual a Sagrada Escritura deve ser «lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita» (Dei Verbum, 12). Com Jesus Cristo, a revelação de Deus alcança a sua realização e plenitude; e, todavia, o Espírito Santo continua a sua ação. De facto, seria redutivo limitar a ação do Espírito Santo apenas à natureza divinamente inspirada da Sagrada Escritura e aos seus diversos autores. Por isso, é necessário ter confiança na ação do Espírito Santo que continua a realizar uma sua peculiar forma de inspiração, quando a Igreja ensina a Sagrada Escritura, quando o Magistério a interpreta de forma autêntica (cf. ibid., 10) e quando cada crente faz dela a sua norma espiritual. Neste sentido, podemos compreender as palavras ditas por Jesus aos discípulos, depois que estes Lhe asseveraram ter compreendido o significado das suas parábolas: «Todo o doutor da lei instruído acerca do Reino do Céu é semelhante a um pai de família, que tira coisas novas e velhas do seu tesouro» (Mt 13, 52).

11. Por fim, a Dei Verbum especifica que «as palavras de Deus, expressas por línguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes à linguagem humana, como outrora o Verbo do eterno Pai Se assemelhou aos homens, tomando a carne da fraqueza humana» (n. 13). Isto equivale a dizer que a encarnação do Verbo de Deus dá forma e sentido à relação entre a Palavra de Deus e a linguagem humana, com as suas condições históricas e culturais. É neste evento que ganha forma a Tradição, também ela Palavra de Deus (cf. ibid., 9). Muitas vezes corre-se o risco de separar Sagrada Escritura e Tradição, sem compreender que elas, juntas, constituem a única fonte da Revelação. O caráter escrito da primeira, nada tira ao facto de ela ser plenamente palavra viva; assim como a Tradição viva da Igreja, que no decurso dos séculos a transmite incessantemente de geração em geração, possui aquele livro sagrado como a «regra suprema da fé» (Ibid., 21). Além disso, antes de se tornar um texto escrito, a Palavra de Deus foi transmitida oralmente e mantida viva pela fé dum povo que a reconhecia como sua história e princípio de identidade no meio de tantos outros povos. Por isso, a fé bíblica funda-se sobre a Palavra viva, não sobre um livro.

12. Quando a Sagrada Escritura é lida com o mesmo Espírito com que foi escrita, permanece sempre nova. O Antigo Testamento nunca é velho, uma vez que é parte do Novo, pois tudo é transformado pelo único Espírito que o inspira. O texto sagrado inteiro possui uma função profética: esta não diz respeito ao futuro, mas ao hoje de quem se alimenta desta Palavra. Afirma-o claramente o próprio Jesus, no início do seu ministério: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir» (Lc 4, 21). Quem se alimenta dia a dia da Palavra de Deus torna-se, como Jesus, contemporâneo das pessoas que encontra; não se sente tentado a cair em nostalgias estéreis do passado, nem em utopias desencarnadas relativas ao futuro.

A Sagrada Escritura desempenha a sua ação profética, antes de mais nada, em relação a quem a escuta, provocando-lhe doçura e amargura. Vêm à mente as palavras do profeta Ezequiel, quando, convidado pelo Senhor a comer o rolo do livro, confessa: «Ele foi, na minha boca, doce como o mel» (3, 3). Também o evangelista João revive, na ilha de Patmos, a mesma experiência de Ezequiel de comer o livro, mas acrescenta algo de mais específico: «Na minha boca era doce como o mel; mas, depois de o comer, as minhas entranhas encheram-se de amargura» (Ap 10, 10).

A doçura da Palavra de Deus impele-nos a comunicá-la a quantos encontramos na nossa vida, expressando a certeza da esperança que ela contém (cf. 1 Ped 3, 15-16). Entretanto a amargura apresenta-se, muitas vezes, no facto de verificar como se torna difícil para nós termos de a viver com coerência, ou de constatar sensivelmente que é rejeitada, porque não se considera válida para dar sentido à vida. Por isso, é necessário que nunca nos abeiremos da Palavra de Deus por mero hábito, mas nos alimentemos dela para descobrir e viver em profundidade a nossa relação com Deus e com os irmãos.

13. Outra provocação que nos vem da Sagrada Escritura tem a ver com a caridade. A Palavra de Deus apela constantemente para o amor misericordioso do Pai, que pede a seus filhos para viverem na caridade. A vida de Jesus é a expressão plena e perfeita deste amor divino, que nada guarda para si, mas a todos se oferece sem reservas. Na parábola do pobre Lázaro, encontramos uma indicação preciosa. Depois da morte de Lázaro e do rico, este vê o pobre no seio de Abraão e pede para Lázaro ser enviado a casa dos seus irmãos a fim de os advertir sobre a vivência do amor do próximo para evitar que venham sofrer os mesmos tormentos dele. A resposta de Abraão é incisiva: «Têm Moisés e os Profetas; que os oiçam!» (Lc 16, 29). Escutar as sagradas Escrituras para praticar a misericórdia: este é um grande desafio lançado à nossa vida. A Palavra de Deus é capaz de abrir os nossos olhos, permitindo-nos sair do individualismo que leva à asfixia e à esterilidade enquanto abre a estrada da partilha e da solidariedade.

14. Um dos episódios mais significativos desta relação entre Jesus e os discípulos é a Transfiguração. Acompanhado por Pedro, Tiago e João, Jesus sobe ao monte para rezar. Os evangelistas lembram como se tornaram resplandecentes o rosto e as vestes de Jesus, enquanto dois homens conversavam com Ele: Moisés e Elias, que personificam respetivamente a Lei e os Profetas, isto é, as sagradas Escrituras. A reação de Pedro a tal visão transborda de jubilosa maravilha: «Mestre, é bom estarmos aqui. Façamos três tendas: uma para Ti, uma para Moisés e outra para Elias» (Lc 9, 33). Naquele momento, uma nuvem cobre-os com a sua sombra, e o medo apodera-se dos discípulos.

A Transfiguração faz pensar na Festa dos Tabernáculos, quando Esdras e Neemias liam o texto sagrado ao povo, depois do regresso do exílio. Ao mesmo tempo, antecipa a glória de Jesus como preparação para o escândalo da paixão; glória divina que é evocada também pela nuvem que envolve os discípulos, símbolo da presença do Senhor. Esta Transfiguração é semelhante à da Sagrada Escritura, que se transcende a si mesma, quando alimenta a vida dos crentes. Como nos recorda a Verbum Domini, «para se recuperar a articulação entre os diversos sentidos da Escritura, torna-se decisivo identificar a passagem entre letra e espírito. Não se trata duma passagem automática e espontânea; antes, é preciso transcender a letra» (n. 38).

15. No caminho da receção da Palavra de Deus, acompanha-nos a Mãe do Senhor, reconhecida como bem-aventurada por ter acreditado no cumprimento daquilo que Lhe dissera o Senhor (cf. Lc 1, 45). A bem-aventurança de Maria antecede todas as bem-aventuranças pronunciadas por Jesus para os pobres, os aflitos, os mansos, os pacificadores e os que são perseguidos, porque é condição necessária para qualquer outra bem-aventurança. Nenhum pobre é bem-aventurado por ser pobre; mas passa a sê-lo, se, como Maria, acreditar no cumprimento da Palavra de Deus. Lembra-o um grande discípulo e mestre da Sagrada Escritura, Santo Agostinho: «Uma pessoa do meio da multidão, cheia de entusiasmo, exclamou: “Bem-aventurado o ventre que Te trouxe”. E Ele: “Mais felizes são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam”. Como que a dizer: também a minha mãe, a quem tu chamas bem-aventurada, é bem-aventurada justamente porque guarda a palavra de Deus, não porque n’Ela o Verbo Se fez carne e habitou entre nós, mas porque guarda o próprio Verbo de Deus por meio do Qual foi feita, e que n’Ela Se fez carne» (Sobre o Evangelho de São João, 10, 3).

Possa o domingo dedicado à Palavra fazer crescer no povo de Deus uma religiosa e assídua familiaridade com as sagradas Escrituras, tal como ensinava o autor sagrado já nos tempos antigos: esta palavra «está muito perto de ti, na tua boca e no teu coração, para a praticares» (Dt 30, 14).

Roma, em São João de Latrão, no dia 30 de setembro de 2019, Memória litúrgica de São Jerónimo e início do 1600º aniversário da sua morte.

Francisco


[1] Cf. AAS 102 (2010), 692-787.

[2] «Assim é possível compreender a sacramentalidade da Palavra através da analogia com a presença real de Cristo sob as espécies do pão e do vinho consagrados. Aproximando-nos do altar e participando no banquete eucarístico, comungamos realmente o corpo e o sangue de Cristo. A proclamação da Palavra de Deus na celebração comporta reconhecer que é o próprio Cristo que Se faz presente e Se dirige a nós para ser acolhido» (Verbum Domini, 56).