Quinta-feira, 9 de Fevereiro de 2017
O padre Feliz da Costa Martins [na foto, em pé], missionário comboniano português, já é nosso conhecido, que mais não seja através das suas belas histórias aqui publicadas. Ele trabalha, há já muitos anos, em Nyala (Darfur), em terras do Sudão. Uma presença missionária que ele mesmo a descreve com estas palavras: “Missão num país de maioria muçulmana onde a evangelização não se faz de forma directa e tradicional. Nesta nossa missão de Nyala, actividades sociais tais como a saúde, o ensino e a educação são os meios através dos quais a igreja vem garantindo um serviço em favor da população mais pobre e necessitada. Missão de presença e de testemunho silencioso. Missão sem alaridos nem coloridos, sem dar nas vistas. Missão onde não se esperam consolações ou ‘carícias espirituais’.”


P. Feliz da Costa Martins,
no Sudão.

Conheço-o de vista. É um homem que se vê diariamente na cidade de Nyala, ocupando quase o dia inteiro a percorrer ruas e vielas, caminhando sem parar. É doente mental. Naquela tarde, ali junto ao mercado municipal, vi-o aproximar-se, decididamente, dirigindo-se a mim. Parou e olhou-me, fixamente. Semblante calmo e tranquilo. Não reagiu à minha saudação. Ao perguntar-lhe como se chamava, respondeu sem hesitar: não te importes com o meu nome, há coisas mais importantes na vida. A seguir, pousou no chão os dois grandes sacos de plástico cheios de farrapos sujos e outro lixo que, habitualmente traz consigo. Colocou as suas mãos pesadas sobre os meus ombros e disse: “sei quem tu és e onde moras; a tua casa é a igreja”.

Senti as suas mãos pressionar com mais força sobre mim. Ali, no meio da rua larga e repleta de gente, muitas pessoas paravam curiosas ou talvez preocupadas pelo que, porventura, pudesse acontecer ao estrangeiro que um demente tinha debaixo das suas mãos. Sem dúvida, o momento era de perplexidade e algum temor. Mas, para além disso, devo acrescentar que ali em volta se tinha, também, criado um certo ar de respeito. Foi notável e evidente a preocupação de um homem que mostrava a boa intenção de, caso fosse necessário, desencalhar-me de algum suposto incómodo. Mas, ao ver a cena pacífica e serena, acabou por não intervir.

Apenas um doente mental
Todavia, aquele que todos sabiam ser majnún, louco, ainda tinha algo mais para dizer. Lançou o olhar em volta, mostrando que era senhor da situação. E a sua voz ouviu-se, de novo. Devagar, quase soletrando: tu não és cáfir (descrente, infiel).

Já ele apanhava os sacos de plástico do chão quando eu, ainda não completamente recomposto da tão bela surpresa, lhe disse: “chucran, obrigado”. E, confirmando as suas próprias palavras, acrescentei: “tens razão, amigo! Não sou cáfir (descrente, infiel); eu creio em Deus; fico feliz com as palavras que acabas de me dedicar”. Vi o seu rosto abrir-se num largo sorriso, enquanto desaparecia no meio da multidão que se azafamava.

A poucos passos da referida cena, cruzava-se comigo uma senhora de quem ouvi, com delicadeza: “desculpe lá, khauaja, estrangeiro, não fique ofendido, é apenas um doente mental”. Mas este não foi um sentimento isolado: a ela se juntaram também outras pessoas de quem colhi um sorriso tímido, sem palavras. Ao mesmo tempo, eu pensava comigo mesmo: ‘desculpar? Não havia, certamente, desculpas a pedir e, muito menos, ofensas a reter’. A todos fui retribuindo o simpático e delicado gesto. Até a conhecida vendedeira do mercado notou em mim um tom diferente que não deixou de realçar: “Eh, zabun khauaja, freguês estrangeiro, hoje vens mais jovial e alegre”. E, enquanto me devolvia o troco do dinheiro das lentilhas e outras hortaliças que comprei na sua banca, olhou para mim e deixou cair no meu saco das compras uma porção de sésamo tostado. ‘É uma pequena e humilde lembrança da minha parte; Deus te abençoe e te faça sempre feliz’, disse, com um sorriso.

‘Senhor, estou aqui à espera de nada’
Entretanto… dei comigo quando já entrava no pátio de casa, o adro da igreja. Se alguém me perguntasse que estrada tomei quando saí do mercado ou o que vi pelo caminho, não saberia responder. Teria perdido a memória? Disso estou certo que não. E a prova é que posso reproduzir, literalmente, os pormenores desses vinte e poucos minutos que tinham passado desde que saíra do mercado.

Mas deixa que diga, desde já, a verdade. É que, enquanto caminhava, apareceu-me um tal monge de um certo e longínquo mosteiro. Pois foi na sua companhia que passei esse bocadinho de tempo. O cerne da nossa conversa resume-se no seguinte conselho que recebi do santo homem de Deus: se queres progredir na vida interior e espiritual reza, todos os dias, apenas isto: “Senhor, estou aqui à espera de nada”. Ele notou a minha confusão e perplexidade, mas insistiu na mesma ideia, não retirando nada do que tinha dito.

Não me lembro onde li ou quem me contou esta breve referência do monge, mas não é uma fábula nem uma história pertencente à mitologia. Nem foi inventada para o momento. Alguém poderia, até, compará-la a uma qualquer filosofia ‘barata’. Mas eu tomei a sério as suas palavras que, por sua vez, têm tido um significado muito emblemático na minha vida missionária, em Nyala, Darfur. Aqui, a comunidade cristã é extraordinariamente minoritária, sobretudo após a partida da maioria dos cristãos aquando da independência do Sul do Sudão, em 2003. Missão dos números pequenos (baptismos). Missão num país de maioria muçulmana onde a evangelização não se faz de forma directa e tradicional. Nesta nossa missão de Nyala, actividades sociais tais como a saúde, o ensino e educação são os meios através dos quais a igreja vem garantindo um serviço em favor da população mais pobre e necessitada. Missão de presença e de testemunho silencioso. Missão sem alaridos nem coloridos, sem dar nas vistas. Missão onde não se esperam consolações ou ‘carícias espirituais’.

Estas são apenas características da evangelização nestas partes do globo, mas a primeira e a máxima consideração a ter em conta é que a missão, mais do que minha ou nossa, é de Deus, o qual nos convida a alargar a dimensão do nosso horizonte, num trabalho que visa a eternidade. 

Não há-de morrer
Já disse, mais acima, que tomei a sério as palavras do homem de Deus que me apareceu no caminho. Mas, à medida que os anos vão passando, dou conta que ele não me dissera toda a verdade. Com certeza, ele mesmo esperava que eu fizesse, pessoalmente, essa descoberta. Senhor, estou aqui à espera de nada’. À espera de nada? A minha experiência faz-me sentir o contrário: em vez de à espera de nada, eu fico à espera de tudo. Porque Deus é fiel e não atraiçoa quem nele espera e confia; quando achou oportuno, o próprio Deus enviou o seu mensageiro que, naquela tarde, se cruzou comigo ali junto ao Mercado de Nyala. E da boca de alguém que caminhava com o passo desacertado – o majnún, o demente – saíram palavras de ouro: ‘sei quem tu és, tu não és cáfir (descrente, infiel)’. Aqui está, a meu ver, o começo de toda e qualquer mensagem missionária. Quando sei quem sou, perante o Criador que, eventualmente, espera a minha resposta à vocação a que ele me chamou.

Aquele encontro, em plena rua, foi um momento de evangelização. Real, não virtual. Mas o locutor não falou unicamente para mim. As suas palavras, inspiradas pelo Deus e Senhor da missão, são abrangentes e inclusivas, ultrapassando os confins daquela específica rua do mercado. Apesar de que, naquele instante, ninguém tenha, provalvelmente, captado o seu sentido verdadeiro e profundo. O qual não me surpreende. Seria pretender demasiado, por agora. Mas não queiramos queimar etapas. O tempo é de Deus. E a eternidade, também. A mensagem está no ar. A semente foi lançada á terra. Não há-de morrer. In chá Allah (se Deus quiser)!
Feliz da Costa Martins, missionário comboniano
Nyala, Darfur
Sudão