O doloroso “calvário” do padre comboniano Alfredo Ribeiro Neres

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Terça-feira, 3 de Outubro de 2023
Depois de celebrar 50 anos de sacerdócio e antes de voltar a África, como esperava, o Padre Alfredo Ribeiro Neres, missionário comboniano, teve um ataque cardíaco. Para desobstruir as veias, fizeram-lhe vários bypasses no Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide. Mas teve um AVC durante a convalescença e desde então, há quase um ano, viveu um doloroso calvário. O padre Alfredo faleceu ontem à tarde, na cidade de Viseu, em Portugal. O P. Alfredo vai ser sepultado na campa dos Missionários Combonianos, Cemitério Novo, Viseu, a seguir à missa de corpo presente que será celebrada na capela da comunidade de Viseu, na quinta-feira, dia 5, às 10h30.

Por detrás da sua figura enxuta e esbelta há um homem com uma têmpera de aço, um missionário de fronteira, intrépido e ágil, com uma fé inquebrantável Um Missionário Comboniano exemplar, que passou mais de metade da sua vida na República Democrática do Congo.

Padre Alfredo Ribeiro Neres, na República Democrática do Congo.

A sua tem sido uma vida de mudanças. Nasceu na Beira Baixa, no Concelho de Proença-a-Nova, na paróquia de Montes da Senhora, no dia 24 de Março de 1939. Os seus pais, que tinham casado em 1930, começaram a rezar diariamente para terem um filho missionário. 41 anos depois viram finalmente a sua oração atendida com a ordenação sacerdotal do Padre Alfredo.

A sua família transferiu-se para o Alentejo quando ele tinha cinco anos. Diz que isso o ajudou a ter “uma abertura diferente, uma visão mais larga”. Fez a Escola Primária em Campo Maior. Aos 12 anos começa a trabalhar numa loja. Aos 15 anos muda-se para Paço de Arcos e continua a trabalhar no comércio.

Um ano depois, os Combonianos chegam a Paço de Arcos, que até aí não era paróquia: era uma anexa de Oeiras, servida pelos Missionários Espiritanos da Torre d’Aguilha. O Comboniano italiano, o Padre Ângelo La Salandra, de modo particular, teve uma grande influência na sua vocação. Era o seu director espiritual e acompanhou-o durante vários anos.

Depois de três anos de trabalho no comércio fez um curso de dactilografia e foi trabalhar para o escritório da Fábrica Couraça. Foi onde começou o seu caminho vocacional. Ajudava na capela como leitor e acólito e pertencia à Juventude Operária Católica (JOC), que ele fundou em Paço de Arcos com outros três rapazes. Foi na JOC que teve um grande crescimento espiritual porque tinham todos o Novo Testamento e meditavam-no juntos.

A sua vocação começou praticamente na Festa da Ascensão de Jesus ao Céu. O evangelho da Missa (Mc 16,15-20) tocou-o profundamente. Dizia: “Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda a criatura. Quem acreditar será salvo; quem não acreditar será condenado.” O Padre Alfredo tem uma memória viva daquele momento: “Durante a Missa tomei a decisão de ser missionário e ir anunciar o Evangelho, mas ainda não sabia o que isso significava exactamente. Só tinha a pequena experiência de anunciar o Evangelho na Escola Comercial Ferreira Borges onde estudava à noite: quando havia “furos”, íamos para uma sala livre, líamos o Novo Testamento e convidávamos os jovens que andavam por ali para se juntarem a nós.”

Ao fim de três anos na Couraça, onde tinha um salário muito bom – quatro vezes superior ao de um operário normal, que naquele tempo era de 300 escudos por mês (o salário mínimo) – saiu. Diz que o salário de 1200 escudos e o posto no escritório – chefe da secção de exportações para África – eram invejados por muitos. Eram sete empregados na sua secção (cinco homens e duas mulheres).  

Quando tomou a decisão, avisou o patrão, como lhe competia três meses antes para que ele pudesse encontrar um substituto. O patrão, chamado Ismael Teixeira ficou muito perturbado porque tinha pensado nele como futuro chefe do escritório e assim o seu sonho caía por terra, mas prontificou-se a pagar-lhe os estudos e as despesas no seminário, o que aconteceu durante os três anos que esteve no seminário de Viseu e os três anos no seminário da Maia.

Terminada a formação em Portugal foi para Itália, para o noviciado em Gozzano. Professou dois anos depois com os seus 37 companheiros e vão para o Escolasticado de Venegono.

Tropeços no caminho

No segundo ano de teologia, vai trabalhar para Brescia como assistente dos seminaristas menores, com outros quatro escolásticos. Cada um deles seguia uma turma de seminaristas. No final do ano, os superiores querem mandá-lo embora do seminário: dizem que não era feito para ser padre. Lembra: “Foi um golpe muito duro, mas houve uma intervenção divina, em 1969, ao início do Capítulo Geral da Congregação.” Aconteceu o seguinte: pela primeira vez, haveria três escolásticos como observadores: um de língua portuguesa ou espanhola, um de língua inglesa e outro de língua italiana. Ele foi escolhido para representar os escolásticos ibéricos. Quando foi para o Capítulo ainda não tinha sido admitido à renovação dos votos, mas a decisão ainda não tinha sido publicada. No dia 9 de Setembro, dia da renovação, disse ao Vigário-Geral, o Padre Sina, que queria renovar os votos. O Padre Sina que não sabia nada do que se tinha passado em Brescia admitiu-o a renovar os votos, assim como aos outros dois.

Terminado o Capítulo voltou para Venegono para fazer o terceiro ano de teologia. Foi escolhido pelos colegas como responsável de todos os escolásticos. Tinha uma função de intermediação com o superior. A crise estudantil dos anos 60 entra no escolasticado e, dada a sua posição, fica na crista da onda. Os escolásticos começam a contestar o uso da batina – e tiravam-na. O superior chamava-o para pedir aos companheiros que fossem vestir a batina. Obedeciam, mas depois da Missa tiravam-na de novo. Andaram assim durante um ou dois meses. Ele ficou numa posição delicada porque foi visto como o responsável daquele movimento de ‘secularização’.

De seguida, chega o desafio ‘democrático’. Na festa de Comboni, em Outubro, os escolásticos decidiram tirar as mesas dos superiores do refeitório e arrecadá-las. Quando os superiores entram para o almoço, os escolásticos já tinham ocupado as mesas deixando um ou dois lugares livres em cada mesa para os obrigar a misturarem-se com eles.

Não admira que ao fim do terceiro ano de teologia, o Conselho Provincial de Milão quis de novo mandá-lo embora. Desta vez foram os outros escolásticos a opor-se e a salvá-lo: “Ou todos ou ninguém. Não há motivo para o Alfredo não fazer os votos.” Perante essa posição os superiores condescenderam e deixaram-no fazer os Votos Perpétuos e ser ordenado diácono. Terminou em Roma o quarto ano de teologia. Foi ordenado Padre em Paço de Arcos, na Quinta-Feira Santa, no dia 4 de Abril de 1971. Explica que escolheu a Quinta-Feira Santa porque é o dia da Instituição da Eucaristia e do Sacerdócio.

Foi ordenado pelo Arcebispo de Mitilene que era auxiliar de Lisboa na igreja paroquial actual (quando entrou no seminário só existia a pequena Capela do Senhor Jesus dos Navegantes). Escolheu Paço de Arcos porque foi lá que nasceu a sua vocação. A igreja ficou pronta no tempo do Padre Luís Nesi. Diz: “Foi um início de vocações para aquela terra. Já somos cinco os padres saídos de Paço de Arcos, três irmãs religiosas, um diácono permanente e três seminaristas no Seminário Maior.”  

De facto, as gentes de Paço de Arcos ainda se lembram do trabalho extraordinário lá realizado pelos Missionários Combonianos entre 1955 e 1975. Aquando das celebrações do jubileu da erecção canónica da paróquia, na presença do Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, em 25 de Agosto de 2019, foi descerrada uma lápide evocativa do seu trabalho, que diz: «Transformaram uma vila descristianizada em fonte de Evangelização e exemplo de modéstia, promoção social e calor humano. Imbuídos de carisma empreendedor construíram o Bairro Social da Terrugem e a Igreja Paroquial da Sagrada Família.»

Mergulho na pastoral

Depois da ordenação sacerdotal foi mandado para a Maia. Trabalhou cinco anos na promoção vocacional e missionária (1971-1976), no seio de uma equipa. Foi nesse tempo que a sua irmã Alzira faz o seu discernimento vocacional e se torna Missionária Comboniana. Depois dessa experiência que lhe “encheu as medidas” porque tinha uma vida espiritual e uma vida apostólica muito intensa, foi mandado par o Congo: Ngilima, na diocese de Dungu. Esteve lá cinco anos. “Aquilo para mim era o paraíso terrestre. Nunca tinha visto floresta, savana e aves e animais de todas as espécies.”

Depois de cinco anos em Ngilima, regressou a Portugal para ser mestre de noviços. Fez um ano de preparação em Itália e veio para Santarém onde esteve entre 1982-1990. Em 1990 foi mandado de novo para o Congo, desta vez para a paróquia de Ango, uma paróquia muito grande que na altura tinha 103 aldeias e 16.700 km2. A equipa pastoral era constituída por três padres (ele e dois coadjutores africanos) e um irmão e três irmãs missionárias. Esteve nove anos em Ango. Havia mais três Combonianos: O responsável pela pastoral juvenil da diocese, e dois irmãos. Depois esteve cinco anos em Bondo.

“Tanto em Ango como em Bondo, o que mais me marcou foi a colaboração com os leigos. Em Ango tínhamos o centro de formação de agentes pastorais com capacidade para 50 pessoas, que funcionava todo o ano, excepto na primeira semana de cada mês, que era reservada a todo o tipo de reuniões (de comissões e grupos). Comíamos o que se recolhia nas ofertas das primícias. Naquele tempo, recolhíamos cerca de 2,5 toneladas de arroz e umas duas toneladas de amendoim. Além disso, tínhamos uma plantação de café de 10 hectares: cada ano recolhíamos 2,5 toneladas. Uma parte era vendido para ajudar no auto-financiamento da paróquia. Outra parte era usada no centro pastoral. Do ponto de vista de financiamento, a paróquia era auto-suficiente.”

Em 2003, teve uma bronco-pneumonia. Esteve um mês com febre entre os 39.5º e os 41º. Era tempo de guerra e não havia medicamentos. Foi aconselhado a sair do país para se curar. Veio a Portugal e foi tratado no Hospital Egas Moniz. Dado o estado dos pulmões, o médico admirou-se que ainda estivesse vivo. Em 2006, foi fazer um curso a Roma e de lá segue para Kinshasa como formador dos escolásticos. Ficou lá 10 anos. A coisa mais irónica é que os seus formadores, na relação final quando ele acabou o escolasticado, escreveram que ele podia fazer todo o tipo de trabalho, excepto ser formador. Já tinha feito nove anos como Padre Mestre e depois mais 10 anos como formador dos estudantes de teologia.

Depois foi mandado para o norte do Congo, para Isiro. Primeiro trabalhou na paróquia. Mais tarde foi para Magambe, na paróquia de Sant’ Anne, como director do centro de espiritualidade. Depois disso tornou-se vice-Padre Mestre. Estava no noviciado e formava equipa com um padre italiano e um irmão congolês. Tinham a seu cargo 12 noviços Combonianos congoleses.

Veio de férias em 2021, mas ao início de Agosto de 2021 teve um ataque cardíaco. Antes de regressar teve que desobstruir as veias. Fizeram-lhe vários bypasses no Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide. Um AVC durante a convalescença remeteu-o a uma cama, onde vive a sua identificação com o Cristo da paixão e da cruz.

A seguir, publicamos uma entrevista feita em Setembro de 2021, antes de o Padre Alfredo Neres ser operado ao coração.

Primazia do anúncio da Palavra de Deus

Ao celebrares 50 anos de sacerdócio quais são as emoções mais preponderantes?

– A primeira, é uma atitude de acção de graças a Deus por me ter escolhido para ser padre. Sempre me interroguei porque é que Deus me escolheu a mim. No dia 8 de Abril, quando celebrei as bodas de ouro sacerdotais em Magambe, no Congo, fiz um resumo do que fiz durantes estes 50 anos: trabalhei 16 anos em Portugal e 35 no Congo. Em Portugal fiz animação missionária e formação de noviços. Nos 35 anos do Congo, 18 anos fui pároco em três paróquias, 10 anos fui formador de escolásticos e os últimos cinco anos tenho estado no centro de espiritualidade e no noviciado.

O que mais me enche o coração é o anúncio da Palavra de Deus, a celebração da Eucaristia e as confissões. São três pilares que sempre tenho tido presente na minha vida de Padre. Um outro aspecto que me ocupou muito tempo na minha vida sacerdotal foi a formação de agentes pastorais (nas três paróquias onde trabalhei). Em Ango, por exemplo, que era uma paróquia com 103 aldeias e mais de 10 mil crianças, formámos mais de 470 catequistas. A formação era dada por etapas, três semanas de cada vez. Também formámos mais de 300 catequistas para ajudar os adultos que ainda não eram cristãos. Um dos nossos empenhos era o catecumenato de adultos. O mesmo aconteceu em Bondo, onde temos um centro de formação de líderes. O bispo apreciou muito esse trabalho e foi por isso que ele me pediu a mim e ao nosso Superior Geral para me transferir de Ango para Bondo, para fazer com que essa paróquia tivesse o mesmo dinamismo missionário de Ango.

Nós procurávamos que as paróquias fossem auto-suficientes do ponto de vista económico – através das ofertas de dinheiro, das primícias, das plantações do café e do óleo de palma, e da confecção de sabão. O ano anterior à minha chegada a Bondo, os cristãos tinham dado 300 dólares em ofertas. O último ano em que lá estive deram 6900 dólares, pela sensibilização feita na paróquia. Era com esse dinheiro que mantínhamos a paróquia e o centro de formação.

A Igreja congolesa tem tido um grande crescimento…

– O Congo é a maior Igreja católica da África. Tem 47 dioceses e uns 58 bispos activos. Os cristãos, segundo as estatísticas são 31% da população de 75 milhões. Portanto há mais de 20 milhões de católicos. Há muitas vocações sacerdotais no país. Quase todas as dioceses têm padres suficientes para as suas necessidades. Quando cheguei à diocese de Isiro só tinha uma dezena de padres: agora tem mais de 100. A diocese de Dungu quando fui para lá só tinha um padre congolês: agora tem 65. A diocese de Bondo também tem muitos padres.

Qual é o sentido de ser missionário no Congo dado que tem tanto clero?

– O sentido é o que o bispo de Butembo disse aos Combonianos: “Peço-vos que mandeis Combonianos para Butembo não para serem párocos – temos padres diocesanos suficientes para as paróquias – mas para animarem missionariamente a diocese e ajudá-la a abrir-se ao exterior, se não corremos o risco de nos fossilizarmos. Nós temos muitos padres na diocese que podem ser postos ao serviço da Igreja Universal.” De facto, há muitas congregações religiosas que têm padres de Butembo e padres diocesanos a trabalharem noutras dioceses congolesas. Nós Combonianos estamos a passar as paróquias aos padres diocesanos. Chegámos a ter 14 paróquias na diocese de Isiro: agora só temos uma. Na diocese de Wamba agora também só temos uma. Na diocese de Bondo tínhamos duas e agora já só temos uma. Temos estado a reduzir muito a nossa presença nas paróquias. Agora só temos umas quatro ou cinco no Congo, enquanto antes tínhamos umas 14 só no norte do país. A nossa presença missionária foi muito significativa para aquelas dioceses (Bondo, Dungu…): demos-lhe um élan, um sentido missionário. Até os leigos partiam em missão dentro da diocese e queriam partir para outros países para irem anunciar o Evangelho. A nossa presença nos centros pastorais é importante para dar aos agentes pastorais uma visão missionária da Igreja. Por isso estamos a dar muita importância à formação dos líderes.

Quando e onde é que renunciaste a ser bispo?

– Foi quando deixei a diocese de Bondo, que é uma diocese muito complicada. Os padres não querem bispos que venham de fora. Quando lá estava, dei-me conta de que os padres não aceitavam o bispo de então, porque era de outra diocese e de outra tribo. Apesar de ele ser extraordinário, um homem formidável, e de ter feito tudo pelo clero local. Por exemplo, quando fui para lá, os padres que recebiam 15 dólares por mês foram aumentados para 55 dólares. Mesmo assim nunca aceitaram de coração o bispo de Bondo. Esteve lá 14 anos e foi uma graça enorme ter tido a possibilidade de trabalhar com ele. Saí de Bondo em 2006. No ano seguinte, o bispo renunciou e o secretário da Nunciatura Apostólica de Kinshasa chamou-me lá e perguntou-me se eu aceitava entrar na ‘terna’. Eu renunciei e disse-lhe: “Eu conheço a diocese de Bondo e sei que os padres não aceitarão um bispo que venha de fora.”

Também viveste a experiência da guerra (de 1996 a 2003).

– A experiência da guerra foi muito dura para nós: de 1996 a 1999 estava em Ango; de 2000 a 2003 estava em Bondo. Ao início da guerra os militares do Mobutu, ao fugirem dos militares de Kabila, pilharam as missões: ficámos sem nada. Confiscavam os nossos carros e camiões, carregavam-nos e partiam. O nosso provincial pediu para nos afastarmos da zona que era o grande centro dos combates: primeiro entre os exércitos de Kabila e Mobutu e depois de Jean-Pierre Bemba e de Kabila. Foram seis anos muito difíceis para reunir os cristãos. Eles reuniam-se no meio da floresta, usando sinais, para não chamarem a atenção dos militares, que tinham as cartas topográficas, onde os carreiros não estavam assinalados. Mandavam-me mensagem e eu ia confessá-los, baptizar as crianças e celebrar-lhes Missa. Íamos a pé, fazíamos centenas de quilómetros e ficávamos lá com eles alguns dias.

O outro problema eram as barreiras militares, quando ia de bicicleta: as motos e os carros tinham sido roubados. Ia sempre acompanhado por dois catequistas, cada um com a sua bicicleta. Íamos até ao extremo da paróquia a 198 Km. Em cada barreira éramos submetidos a interrogatórios infindáveis. Depois mudei de táctica e logo me apresentava, dizia o que ia fazer e pedia para passar.

Quando saíamos da missão não podíamos deixar a Eucaristia no tabernáculo: tínhamos que a levar connosco. Os militares iam ao tabernáculo ver se havia dinheiro. Se estivesse fechado disparavam contra ele para o abrir. Foi uma experiência interessante sentir que levava Cristo comigo, que também Ele era um fugitivo como eu e como o povo, porque era a aldeia inteira que fugia para o meio da floresta.

Depois da primeira pilhagem tivemos que nos refugiar na República Centro-Africana. A nossa missão era a 198 km do Rio Mbomou que separa os dois países. Levámos os carros até à fronteira, mas não nos deixaram passar com eles. Depois vieram os militares e apoderaram-se deles. Ficámos lá três meses até que os soldados de Mobutu partiram e os de Kabila ocuparam o território. (os padres diocesanos ficaram por lá mais tempo) Quando voltámos, não tínhamos onde dormir. Por meses, íamos à Igreja buscar dois bancos que púnhamos um ao lado do outro e dormíamos por cima deles – sem colchão nem cobertores – até que os cristãos nos fizeram camas, como costumam, de bambus. Punham uma esteira por cima da cama, para dormirmos melhor e só depois de uns meses conseguimos arranjar colchões e cobertores.  

Uma experiência muito bela foi que os cristãos tomaram conta de nós. Traziam-nos de comer. Nós não tínhamos nem uma panela para cozinhar.

Como se deu o teu envolvimento com o Renovamento Carismático e o ministério da cura pela oração?

– O meu envolvimento com o Renovamento Carismático (RC) começou no dia 8 de Dezembro de 1981, quando recebi a efusão do Espírito em Roma, quando estava a preparar-me para ser Mestre de Noviços aqui em Portugal. Tive conhecimento de um grupo da Comunidade de Maria que se reunia na cripta da capela de nossa casa. Foi nesse grupo que me foram reconhecidos os dons que o Espírito me tinha concedido, como os de cura e libertação. Seis meses depois vim para Santarém e o bispo, com a autorização do meu provincial, nomeou-me assistente diocesano do RC e exorcista da diocese (juntamente com um padre diocesano). Por vezes era convidado a ir fazer exorcismos a outras dioceses do país. Com o secretariado diocesano íamos pelas paróquias a fundar grupos. Ao todo fundámos 23 grupos em diferentes paróquias, algumas da diocese de Castelo Branco. O RC teve uma expansão bastante grande nesses anos.

E tens experimentado o poder da cura através da oração?

– Sim, tenho-o experimentado cada dia. Por toda a parte onde eu passo, as pessoas sabem já que tenho esse dom e me pedem a oração de cura ou de libertação. Há certas curas que são estrondosas. Por exemplo, uma menina de Ferragudo que já tinha sete anos e nunca tinha aberto os olhos ou falado, nem andava, porque não tinha força nas pernas nem nos braços – não via, não ouvia, não falava, não comia pela sua mão, e não andava – no dia 21 de Agosto, não me lembro exactamente do ano, ficou curada: começou a ver, a ouvir, a caminhar e depois de 15 dias ela já fazia uma vida normal, como as crianças da idade dela. Depois de um mês começou a ir à escola e à catequese.

Na diocese de Braga, também houve um caso que deu que falar: uma senhora que estava doente havia 18 anos passava a vida entre o hospital e casa, sem grandes melhoras – veio numa maca do hospital para a reunião de oração de sábado à noite, acompanhada por um enfermeiro, durante a oração ela saiu da maca e começou a saltar no meio da sala e a dizer ‘estou curada, estou curada’, diante da estupefacção dos presentes. Ela voltou para o hospital na ambulância, mas na segunda-feira seguinte fizeram-lhe exames e deram-na como curada.

Houve muitos casos destes, até no Congo. Um dia em Kinshasa, na Paróquia de S. Kizito, o pároco disse que não acreditava no que fazíamos, mas que fizéssemos a reunião, que ele iria estar presente. Logo no início, pedi ao líder se havia alguém doente que quisesse que rezássemos por ele. Veio uma senhora com duas muletas, e caminhava com muito custo. Sentou-se. Depois da oração saltou da cadeira, atirou com as muletas e começou a correr pelo meio da igreja. O pároco ficou pasmado. No final perguntei-lhe: “Então, senhor padre: já acredita que Jesus pode curar?” “O senhor tem muita coragem para fazer isto. Imagine que a pessoa não tivesse ficado curada? Com que cara é que iria ficar?” Disse-lhe: “Nós só pedimos, em nome de Jesus. Ele é que sabe se quer ou não curar.”

Achas que a oração pela cura ajuda na evangelização?

– Ajuda e muito. De Kinshasa fomos até Kikwit, que são 525 Km. O bispo estava com dúvidas de aceitar a nossa equipa ou não, mas depois de ver as curas e libertações operadas, foi ele que nos chamou para voltarmos. Cinco bispos, que tinham vindo a uma celebração, estavam presentes. Depois de rezamos por mais de cinco mil pessoas, algumas duas centenas de pessoas se levantaram dizendo que estavam curadas.

É um ministério muito exigente, porque requer dedicação, que o padre viva o seu ministério a 100%. Tem que viver aquilo que anuncia.

Quando estou em Portugal não tenho descanso, dado o número de pedidos que recebo de todo o país, continente e ilhas. A minha insistência não é sobre as curas, mas sobre o anúncio da Palavra.

Padre José Rebelo
Missionário Comboniano