Comboni, neste dia

In questo giorno (1871) invia lettera a von Beust ministro degli Esteri a Vienna.
Al conte Guido di Carpegna, 1865
Io ho una fiducia straordinaria in Dio e pongo in pratica il sapientissimo audaces fortuna iuvat, che in linguaggio cristiano è la Provvidenza

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N° Escrito
Destinatário
Sinal (*)
Remetente
Data
341
Assinaturas de missas
1
Cairo
1869
N.o 341 (1203) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS

NA IGREJA DO CAIRO

ACR, A, 24/1





342
Assinaturas de missas
1
Alexandrie
1869
N.o 342 (1153) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS

EM SANTA CATARINA. EM ALEXANDRIA DO EGIPTO

ASCA, Registo de missas





343
Madre Emilie Julien
0
Cairo
18. 1.1870

N.o 343 - (321) À MADRE EMILE JULIEN

ASSGM, Afrique Centrale Dossier

Cairo, 18 de Janeiro de 1870

Minha caríssima e rev.da madre,

[2016]
Não posso exprimir-lhe a dor que sinto ao ver-me obrigado a deixar partir para Jerusalém sóror Maria Bertholon. Será impossível encontrar uma irmã tão bondosa e tão disponível. Desde este momento declaro-lhe que não vou renunciar a sóror Maria. Deixo-a partir para ela cumprir a obediência relativamente à ordem que mandou, pois de contrário temo que no futuro a Congregação de S. José não satisfaria os meus pedidos para obter mais religiosas. A Ir. Maria dedicou-se muito à minha obra: nunca poderei pagar-lhe todo o bem que fez no meu instituto. Com uma constância admirável suportou todos os sacrifícios que são inseparáveis duma obra nos seus começos. Há uma consternação muito grande por causa da sua partida. Não se come, não se cozinha e as negras estão inconsoláveis. Ela ficaria de muito boa vontade; porém, como é uma boa religiosa, não quer faltar à obediência. Deixo, pois, que se vá, na esperança de que me vai prometer numa carta que voltará a mandar-ma rapidamente. Ela pediu sempre para não ser superiora, mas nunca pediu para abandonar as minhas jovens negras. É tão humilde que ficaria muito feliz de permanecer aqui sob a direcção da Ir. Verónica.


[2017]
Portanto, lembre-se, minha boa irmã: eu fico com a Ir. Isabel para sempre, mas com a esperança de que sóror Maria seja concedida ao meu instituto. A Ir. Verónica não a conheço, mas pelo que tenho visto nos poucos dias em que ela está entre nós agrada-me e ganhou a simpatia das negras. Espero que seja a superiora de que preciso. Portanto, por favor, guarde a Ir. Maria para mim e não a destine para outro sítio. Agora vai a Jerusalém, mas peço que a conceda ao meu instituto quando a pedir. Primeiro que tudo a obediência, mas depois recomendo-lhe a caridade. Peço-lhe uma boa e capaz irmã árabe: espero-a depois da festa de S. José. Assim teria quatro religiosas e, mais tarde, com a Ir. Maria, cinco; já ficaria contente. E porquê cinco religiosas? Porque não tardarei a partir para o Alto Egipto (com clima melhor que o da Europa); então, ou será necessário ir para lá ou, com a ajuda de S. José, pôr em andamento a escola das raparigas no Cairo Velho, onde actualmente está a Ir. Catarina, cuja destinação ignoro por completo.


[2018]
Tenho uma grande estima pela Ir. Maraval, a assistente, mas parece-me que algo lhe subiu à cabeça, tirando-me a Ir. Maria. Não posso perdoar-lhe. Toda a minha confiança está em si, minha boa madre, que tanto bem me tem feito e espero que volte a fazer nestas circunstâncias. Estou-lhe muito grato por me ter concedido sóror Verónica, que me parece, como já disse, muito idónea para nós; porém, o meu agradecimento será ainda maior se me conceder também a Ir. Maria e uma boa Irmã árabe. Responda-me sobre este assunto, a par do qual já pus o P.e Estanislau. Quando receber a sua resposta, pôr-me-ei de acordo com o delegado (que agirá de acordo com o meu desejo) e o assunto será concluído.

Apresente os meus respeitos à Ir. Celeste e à senhora de Villeneuve e reze pelo seu humílimo filho



P.e Daniel Comboni



Original francês

Tradução do italiano






344
M. Eufrasia Maraval
0
Cairo
25. 1.1870

N.o 344 (332) - À MADRE EUFRÁSIA MARAVAL

Assgm, Afrique Centrale Dossier

V. J. M. J

Cairo, 25 de Janeiro de 1870

Minha muito rev.da madre,

[2019]
É com grande amargura que deixo partir a Ir. Maria. Se não fosse o receio de ficar de mal com a congregação e de desgostar a madre geral, não permitiria a partida de uma irmã a quem, como a madre sabe, muito estimo e aprecio. Porém, declaro-lhe que não vou renunciar a ela: mais para diante reclamá-la-ei para a minha obra, a qual, pelo desenvolvimento que está a tomar, precisa de, pelo menos, cinco irmãs. Comuniquei à madre geral e ao cardeal Barnabó que, a seu tempo, reclamarei a Ir. Maria, pela sua maneira de tratar com as negras. Ela pediu que a libertassem do cargo de superiora, não que a mudassem. Sóror Maria é humilde e poderia ser que pela sua humildade fosse feliz submetendo-se a uma nova superiora. Mas ela preocupa-se sobretudo com a obediência: quer obedecer e, por isso, torna-se ainda mais estimável.

A madre poderia ter-me mandado a Ir. Verónica (que me parece muito bondosa, muito capaz e nos agrada muito a mim e ao P.e Pedro) e deixar-me além disso a Ir. Maria; poderia ter-me evitado um desgosto tão grande. Porém, perdoo-lhe, na condição de que apoie a minha causa perante a madre geral, a fim de que me seja concedida de novo a Ir. Maria, mais uma boa irmã árabe. Necessito das religiosas para duas casas.


[2020]
Confidencialmente comunico-lhe que o card. Barnabó me chamou a Roma por causa de assuntos da missão. Ele deu-me um grande raspanete cardinalício por ter levado as Irmãs de S. José para o Egipto sem uma regular autorização dele, como prefeito da Propaganda e protector, e por não lhe ter escrito todos os meses. Eu não fiz senão rir e digo-lhe que ganhei uma indulgência plenária fazendo a minha santíssima vontade. O cardeal fará com que me seja concedida também sóror Maria, e a madre geral (que estará em Roma) será muito bondosa comigo. Não penso partir até finais do próximo mês; porém, por favor, não fale disto a ninguém, porque um precioso silêncio nunca originou escritos...


[2021]
Rogo-lhe apresente os meus respeitos à superiora do hospital e à prima do meu caríssimo amigo, o célebre jesuíta maltês P.e Fenek. Agora reina a tristeza na nossa casa devido à partida da Ir. Maria. Acaba de sair o nosso médico, depois de ter invocado Maomé como testemunha do seu pranto e da sua infelicidade pela partida da Ir. Maria, porque – disse – não há no mundo uma mulher como ela. Fiat! O bom Deus conceder-no-la-á de novo.

Aceite a expressão da minha estima e dor.



Seu af.mo

P.e Daniel Comboni

Mis. ap.

Original francês

Ttradução do italiano






345
P.e Luis Artini
0
Cairo
27. 1.1870

N.o 345 (323) - AO P.e LUÍS ARTINI

APCV, 1458/242

V. J. M. J.

Cairo, 27 de Janeiro de 1870

Meu rev.mo P.e provincial,

[2022]
Há muito tempo preparei-lhe uma longa carta que ainda está sobre a minha mesa e que não lhe cheguei a enviar, nem sequer por meio de Bajit. Hoje, finalmente, apesar de assoberbado com mil ocupações, decidi escrever-lhe de novo. Sinto remorso e pesar de ter apenas concedido 20 dias aos dois peregrinos para a ida e volta de Jerusalém. Concedi-lhes vinte para que tomassem quarenta; mas eles foram incrivelmente exactos, cem vezes mais que Comboni e, contra o que eu esperava, voltaram para casa, felizes e contentes, no dia 7 de Janeiro. Nunca tinha visto na minha vida tanta exactidão. São lições do Paraíso: mais uma magnífica lição do Paraíso.


[2023]
Obtive, finalmente, da delegação apostólica o P.e Bernardino que do dia 2 ao dia 22 de Fevereiro comerá, beberá, dormirá e trabalhará em minha casa, enquanto do dia 2 ao dia 11 estiver a dar os exercícios às minhas mestras negras e de 11 a 21 às minhas religiosas. Estanislau trouxe uma de Jerusalém que é uma pérola. No dia 22, com um magnífico passeio num barco à vela, encerrar-se-á a nossa reunião do Paraíso. Entende-se que o P.e provincial é o protagonista da cena. Hoje, por exemplo, o P.e Bernardino, segundo disse, passou um bom dia. O P.e Estanislau não estava, porque ontem, pela manhã, mandei-o a Alexandria.


[2024]
Os seus caros filhos Estanislau e Beppi são duas jóias de missionários. Estão a preparar-se para a Nigrícia e já sabem muito, como se fossem veteranos das missões. Que digo a verdade é um facto e podê-lo-á comprovar o P.e Bernardino, depois de viver connosco vinte dias. Além disso, monsenhor o arcebispo estima muito o P.e Estanislau: apercebi-me disso nas minhas conversas com ele. Portanto, é preciso arranjar as coisas de modo que não só estes dois se consagrem à Nigrícia, mas que também vão outros mais. Trataremos isto pessoalmente. Diga ao P.e Tita Carcereri, do hospital, que tinha razão ao escrever a seu irmão que o concílio ecuménico não se podia celebrar sem P.e Comboni. De facto, outro dia escreveu-me o bispo e ontem Sua Em.a o cardeal a comunicarem-me que vá lá para tratar de coisas da missão.


[2025]
Eu não partirei do Egipto antes de 19 ou 29 de Fevereiro, porque tenho que fazer aqui e também porque, ao regressarem do Alto Egipto, suas altezas imperiais os arquiduques Rainieri e Ernesto e a arquiduquesa Maria Carolina virão aos nossos institutos para apadrinhar no seu baptismo quatro negros. Já nos vieram visitar quinta-feira passada e o P.e Estanislau falou muito com eles. Além disso, como combinei com o arquiduque Rainieri tentar um golpe mágico com o Paxá, o mais provável é que passe todo o mês de Fevereiro no Egipto. Mas o que mais me consola é que mons. o bispo de Verona entendeu-se perfeitamente com o P.e Guardi. Isto é algo que V. R. deve saber. O bispo não me dá mais explicações; limita-se a dizer-me que, por meu lado, mande ao P.e Estanislau que escreva uma carta humilde ao P.e Guardi. Eu obedeci e o P.e Estanislau prometeu-me fazer o mesmo por sua parte. Por isso reze e faça rezar para que tudo se arranje para a glória de Deus e a salvação da Nigrícia. Isto quer Deus, isto deseja Comboni e por isso rezam os dois filhos africanos de S. Camilo. Se rezarmos, tudo será feito, porque Cristo cumpre como cavalheiro. O P.e Bernardino hoje comeu muita polenta. É a primeira vez que a come no Oriente. Continua a ser aquele alegre e caro padre Bernardino do Paraíso; e desde o hábito à barba, por fora não mudou absolutamente nada.


[2026]
Também S. Camilo é um cavalheiro; muitos ajudaram-me com palavras, S. Camilo, com factos. Não ficarei satisfeito, meu rev.do padre, até trazê-lo a si para a África. Aqui viveria dez anos mais. Vejo, porém, que é demasiado necessário na Europa. Chorei de alegria ao ler o álbum das comunhões, etc. Esta é obra dirigida e levada a cabo pelo P.e Artini. Deus deve abençoar o P.e Artini, porque tem o coração segundo o de Deus.

Receba respeitosas saudações de nós todos e mande uma boa bênção para este seu



pobre, crucificado, porém sempre

alegre seu

P.e Daniel Comboni






346
Mons. L. Ciurcia (Relação)
0
Cairo
15. 2.1870

N.o 346 (324) - A MONS. LUÍS CIURCIA

RELAÇÃO HISTÓRICA

SOBRE O VICARIATO APOSTÓLICO DA ÁFRICA CENTRAL

AVAE, c. 23

Cairo, 15 de Fevereiro de 1870

Vicariato apostólico da África Central
 

[2027]
Foi o muito reverendo P.e Maximiliano Ryllo, polaco de nascimento e membro da Companhia de Jesus, o primeiro que concebeu a nobre ideia de fundar a missão da África Central. Nos seus muitos anos como superior dos jesuítas na Síria – onde trabalhou com zelo infatigável e obteve um grande êxito no meio de obstáculos e guerras horríveis, sobretudo na época das conquistas de Mahhammed Ali, vice-rei do Egipto –, travou conhecimento com um homem de negócios cristão que tinha feito considerável fortuna no Sudão com o comércio dos dentes de elefante e que lhe contou pormenores muito interessantes sobre a situação e os costumes dos negros, cuja disposição para ser civilizados tinha podido constatar, ao ver dois rapazes escravos que tinham sido levados para Cartum.

Homem eminentemente instruído, cheio de zelo e coragem, e impelido por Deus para se lançar às empresas mais árduas e perigosas para glória da Igreja, o P.e Ryllo foi nomeado reitor do Colégio Urbano, da Propaganda Fide, na época em que os jesuítas estavam encarregados de dirigir aquele glorioso cenáculo de apóstolos e de mártires do universo inteiro; apressou-se a propor à S. Congregação o plano de erigir uma missão no interior da Nigrícia.


[2028]
E, de facto, a Propaganda, impressionada pela importância desta santa empresa destinada a trazer para o redil de Cristo a parte do mundo mais desgraçada e abandonada, na sessão de 26 de Dezembro de 1845 declarou a África Central vicariato apostólico, o que, no seu enorme zelo pelas missões estrangeiras, Gregório XVI confirmou com um breve de 3 de Abril de 1846. Os limites deste grande vicariato, segundo decreto apostólico, eram:

a oriente, o vicariato do Egipto e a prefeitura da Abissínia;

a ocidente, a prefeitura das Guinés;

a setentrião, a prefeitura de Trípoli, o vicariato de Tunes e a diocese de Argel;

a sul, os montes Qamar, chamados também montes da Lua; (1)

Para empreender o cultivo deste vasto campo evangélico, a Propaganda escolheu estes primeiros veneráveis obreiros:

1.o S. E. mons. Casolani, de Malta, bispo de Mauricastre i. p. i. e vigário apostólico.

2.o O rev.do P.e Maximiliano Ryllo, da Companhia de Jesus.

3.o O P.e Emanuel Pedemonte, de Génova (outrora oficial do império de Napoleão I).

4.o P.e Inácio Knoblecher, de S. Cantien (diocese de Laybach), doutor em Teologia e aluno do Colégio da Propaganda, de Roma.

5.o P.e Ângelo Vinco, de Cerro (diocese de Verona), aluno do Insto. Mazza.


[2029]
Estes valorosos missionários tinham-se proposto a nobre empresa de converter os povos negros, de impedir o tráfico de escravos negros, onde quer que existisse, e de ocupar-se de alguns católicos que, por motivos de comércio, se encontravam dispersos por aquelas longínquas regiões. O caminho que aqueles homens deviam seguir, a sede que deviam escolher, não lhes tinham sido determinados.

A vontade da Providência e a experiência dos missionários deviam decidir. Mons. Casolani era da opinião de tomar o caminho de Trípoli e de Fezzan, atravessar com camelos o grande deserto do Sara em oitenta e quatro dias e estabelecer-se no vasto império de Bornu. O P.e Ryllo, ao invés, estava convencido de que seria prudente seguir a rota do Nilo e da Núbia, dado que era um itinerário mais seguro, conhecido dos viajantes e percorrida pela expedição egípcia quando Mahhammed Ali empreendeu em 1822 a conquista do Sudão Oriental. Foi esta última ideia que prevaleceu.


[2030]
Antes de o grupo se poder pôr a caminho, morreu Gregório XVI; O augusto Pio IX, porém, animado do mesmo zelo pela conversão da Nigrícia, confirmou os decretos do seu glorioso predecessor e abençoou a santa empresa e os novos apóstolos da África Central. Mas como os preparativos desta expedição requeriam ainda tempo e monsenhor o vigário apostólico tinha que esperar uns meses para resolver certos assuntos de família, decidiu-se que Knoblecher, com o P.e Pedemonte e P.e Ângelo Vinco, deixassem Roma no dia 3 de Julho de 1846 para se deslocarem para o convento dos maronitas da Síria, a fim de aí se habituarem a uma vida oriental que tivesse alguma relação com os costumes dos povos da Núbia e do Sudão, para onde deviam ir. Esta estada foi de oito meses, que eles aproveitaram também para estudar a língua árabe, a qual é falada até ao grau 13 de latitude norte. Visitaram Jerusalém e os Santos Lugares, memoráveis pela vida e milagres do Divino Salvador.


[2031]
Na Primavera seguinte, todos os missionários se reuniram em Alexandria, mas com mudança na direcção da missão, por motivos que não vale a pena referir aqui.

Mons. Casolani acompanhava como simples missionário a santa expedição, à cabeça da qual estava o P.e Ryllo, que tinha sido nomeado pró-vigário da África Central por decreto apostólico de 18 de Abril de 1847. O grupo estava provido de cerca de 50 000 francos, dos quais a Propaganda tinha dispensado 37 634,41 (7000 escudos romanos).

Foram empregues cinco meses em Alexandria e no Cairo para fazer os preparativos; durante esse tempo os missionários tiveram oportunidade de conseguir que a informação sobre o Sudão fosse mais exacta, graças ao engenheiro francês sr. Arnaud, o qual tinha visitado a Núbia e algumas tribos do interior e guiado a expedição egípcia ao Nilo Branco.


[2032]
O P.e Ryllo, que conhecia a fundo as características do espírito turco, teve a coragem de se apresentar pessoalmente a S. A. Mahhamed Ali e ao seu valoroso filho Ibraim Paxá. Este, alguns anos antes, na Síria, tinha prometido uma considerável soma a quem lhe trouxesse a cabeça do valoroso jesuíta, por ele ter encorajado os cristãos do monte Líbano e os maronitas a resistir ao orgulhoso conquistador que queria apoderar-se do seu país, contra o desejo do seu senhor, o grande sultão de Constantinopla.

O P.e Ryllo, que falava perfeitamente o árabe, soube comportar-se tão bem na corte egípcia que ganhou a confiança do ilustre guerreiro, bem como a do vice-rei do Egipto, que cumulou de favores o seu antigo inimigo e lhe passou um documento assinado em que garantia a protecção dos missionários por parte dos governantes e chefes do Sudão, até aos mais afastados limites do território sob o domínio do Egipto. Assim, favorecidos pela Providência, os missionários deixaram o Cairo para subirem o Nilo em direcção ao Alto Egipto e à Núbia. O seu plano era chegar às tribos dos negros a partir de Cartum, a capital das novas conquistas egípcias no Sudão, situada a duas milhas da ponta do triângulo da península de Sennar, lá onde o Nilo Branco e o Nilo Azul se juntam para formar o Nilo entre os graus 15 e 16 de latitude norte.


[2033]
Até finais do mês de Outubro, a santa caravana fez a sua primeira entrada nos confins do vicariato da África Central, para lá da primeira catarata, na célebre ilha de Filé, junto ao Trópico do Câncer, onde o baptismo de um menino muçulmano moribundo representou a primeira flor deste importante apostolado e a primavera do seu difícil e perigoso ministério.

Que vasto campo por evangelizar se apresentava aos nossos zelosos missionários! Não falarei aqui da enorme quantidade de territórios e povos desta grande missão, nem tão-pouco das numerosas línguas e dialectos falados, tanto pelas populações como nas tribos que ocupam esta imensa extensão que a geografia não pôde ainda classificar senão com o nome genérico de regiões desconhecidas da África.


[2034]
Direi apenas uma palavra em geral sobre a vasta extensão deste imenso vicariato, pois que, excluindo embora o espaço ocupado pelas missões que foram fundadas depois da erecção do mesmo e calculando os seus limites meridionais dos montes da Lua (caso existam realmente) situados entre o 5o de latitude sul e o equador, mais ou menos lá onde os famosos viajantes Speke e Grant descobriram com muita probabilidade, em 1858, o Nyanza Vitória entre o 3o de latitude sul e o equador, isto é, o lago que forma a primeira nascente do Nilo e o lugar onde Sir Samuel Beker constatou em 1864 a existência da grande bacia que constitui a segunda nascente do dito rio, ou seja, o Nyanza Alberto ou Louta N’Zige no equador (2), resulta que esta grande missão abrande aproximadamente a extensão que existe entre os graus 5o de lat. sul e os 24o norte, compreendida entre os 10o e os 35o de longitude este do meridiano de Paris.

Além disso, abrange o espaço que medeia entre os 10o e os 29o de lat. norte, e entre os 9o de long. este, segundo o dito meridiano. Isto leva-nos à conclusão de que o vicariato da África Central, depois do decreto de erecção, é quase vinte vezes mais extenso do que a França. E, conquanto a Propaganda tenha tirado depois, em 1868, uma parte considerável desta grande missão, a oeste, para formar a prefeitura apostólica do Sara, confiada ao arcebispo de Argel, há todavia que reconhecer que o vicariato da África Central é o maior do globo.


[2035]
Contudo, é verdade que a S. Sé, tendo erigido esta imensa missão, enviou estes primeiros obreiros evangélicos a fim de formar outros vicariatos e prefeituras apostólicas, conforme a esperança e os resultados que a acção do catolicismo pudesse alcançar, conforme as diversas congregações religiosas ou sociedades eclesiásticas que o Vigário de Cristo destinasse para cooperarem na regeneração religiosa e civil desta extensa parte do mundo que ainda jaz envolta nas trevas da morte.

Durante a viagem pela Núbia inferior, o P.e Ryllo sofreu uma forte disenteria, o que obrigou a caravana a abandonar a rota directa do deserto de Korosco e Abu-Hammed, para seguir o caminho mais longo de Wady-Halfa e de Dôngola, percorrendo assim o braço do arco que o curso do Nilo descreve através das cataratas da Núbia. Depois de muitas fadigas e sofrimentos e até muitas despesas, chegaram finalmente a Cartum no dia 11 de Fevereiro de 1848.


[2036]
Esta cidade era então formada por cabanas e pequenas casas de palha ou de tijolo cozido ao Sol, de um só piso, que a chuva frequentemente destruía e cujo espaço reduzido não dava para acolher senão uma parte dos seus habitantes, tendo os outros que dormir em pequenas tendas ou, frequentemente, debaixo das estrelas. A população, de apenas 15 000 almas, era constituída em grande parte por escravos de muito diversas classes e cores, arrancados violentamente de todas as tribos da Nigrícia. Todos os nossos missionários, instalados em modestas tendas nas margens do Nilo Azul, se encontravam doentes pelas fadigas e duros esforços de uma longa e perigosa viagem. O P.e Ryllo tinha piorado. Os víveres e as provisões estavam quase esgotados. O dinheiro diminuía de forma alarmante. Era impossível continuar a viagem. Por outro lado, a cidade de Cartum era a última estação do comércio europeu, a metrópole do Sudão egípcio, o último sítio onde se efectuava o intercâmbio com o Egipto, e o ponto de partida e de comunicação para os negócios entre o Cairo e o interior da Nigrícia. Aos missionários nenhum lugar pareceu mais conveniente para ter uma comunicação segura com os indígenas da África Central e chegar até a conceber projectos sólidos e positivos sobre o processo e o modo de exercer o seu futuro ministério, e poder preparar-se para estudar o género de vida, as crenças, as superstições e os costumes do país, assim como as diversas línguas dos escravos que eram necessárias para bem cumprir os deveres do seu estado. Enfim, para se habituarem, pouco a pouco, ao clima do Sudão, tão diferente do da Europa, e para estabelecerem aí um lugar de repouso para os pobres missionários que, depois de estarem dispersos pelas diferentes tribos, levando-lhes a Palavra de Deus, pudessem por fim reunir-se para se restabelecerem um pouco e suportarem melhor depois as fadigas e trabalhos do seu santo ministério.


[2037]
Decidiu-se, pois, erigir uma estação em Cartum. Um senhor turco, Cherrif Hassan, que já tinha oferecido aos missionários generosa hospitalidade em Dôngola, querendo cumprir um dever de gratidão para com uns padres maronitas do monte Líbano que lhe tinham salvo a vida no tempo da expedição guerreira do vice-rei do Egipto à Síria, proporcionou-lhes também nesta cidade tropical generosa ajuda e uma benévola protecção.

Porém, aos 17 de Junho de 1848, o mui rev.do P.e Ryllo, cheio de méritos e vítima dos mais atrozes sofrimentos, entregou a sua alma ao Criador, depois de ter cedido o título de pró-vigário a Inácio Knoblecher. Foi sepultado no meio da praça, que pouco depois foi transformada num amplo jardim. Aí foi erigido um modesto mausoléu, onde desde então se reúnem os alunos todos os dias, antes do pôr-do-sol, para rezarem o terço.


[2038]
Depois da morte do P.e Ryllo, mons. Casolani ficou num tal estado de fraqueza que era quase impossível restabelecer-se. Que destino para estes pobres missionários enviados para além do deserto, sem meios e atingidos pelas mais terríveis doenças! Em vez da ajuda que tanto haviam solicitado à Europa, recebiam, pelo contrário, terríveis notícias. A tempestade da revolução tinha invadido a Europa inteira. Tudo o que até ali fora objecto de honra e veneração era calcado aos pés e a santa fé e as bases da ordem social destruídas. Atacavam-se e perseguiam-se os pregadores da divina palavra, as pias instituições para a conversão e propagação da fé e até o Soberano Pontífice: tudo estava em ruína.

Quem é que, com semelhante convulsão, podia ainda pensar na longínqua missão da África Central? Como podiam os mensageiros da fé esperar ajuda em favor da sua empresa tão difícil? A Propaganda de Roma, que tinha sofrido os golpes mais terríveis da revolução, declarava solenemente que já não se encontrava em condições de ajudar os missionários e autorizava-os a regressar à Europa para serem destinados a outras missões.


[2039]
Porém, o venerável dr. Knoblecher não se assustou e inspirou coragem aos seus estimados companheiros. Sem Knoblecher, a missão da África Central teria decaído a partir de 1848 e já não existiria mais.

Durante o seu mandato, o P.e Ryllo tinha comprado um terreno em Cartum, nas margens do Nilo Branco. O dr. Knoblecher transformou-o num jardim, mandou construir nele uma pequena residência com uma capela muito pobre e estreita, mas suficiente para as estritas necessidades dos missionários. Eles puderam assim oferecer quotidianamente o santo sacrifício da missa, dar graças ao Divino Salvador pelos benefícios da redenção e pedir todos os dias a sua assistência e bênção, num país que até então só havia conhecido os erros do paganismo e a cegueira do Islamismo, a fim de que estes diferentes povos entrassem no seio da Igreja, único porto de salvação eterna.


[2040]
Havia em Cartum um grande mercado de escravos. Esses infelizes prisioneiros da África Central, arrancados às suas famílias pela violência e à força, eram postos à venda agrilhoados como vis animais. Entre esses prisioneiros viam-se frequentemente delicadas crianças, que iam parar às mãos de quem os comprava a alto preço.

Os missionários adquiriram neste mercado muitos rapazes que pareciam muito inteligentes e que ofereciam sinais inequívocos de bom resultado. Também encontraram aí alguns filhos de pai europeu, amiúde abandonados sem piedade por este, os quais tinham caído no paganismo das suas mães. Estes meninos foram acolhidos na casa da missão. Começou-se a instruí-los nas coisas mais simples que podiam ser-lhes úteis na sua terra, porém, sobretudo nas verdades da nossa santa religião.

Esses deveriam vir a formar a primeira comunidade cristã na África Central e um dia deviam tornar-se livres. Por caminhos seguros, eles deviam voltar à sua terra de origem, e, no meio dos seus patrícios, serem para eles apóstolos, tornando-se também apoios activos e firmes dos missionários. Animados de um grande zelo, esses jovens acolhiam favoravelmente a divina palavra. O seu amor para com Deus era vivo, os seus costumes suaves e tranquilos e sentiam um cordial afecto pelos missionários. Em pouco tempo os primeiros deles puderam receber o santo baptismo, que lhes foi administrado no Dia de Todos os Santos.


[2041]
Na noite da véspera do grande dia, quando o pró-vigário, como de costume, visitava o dormitório dos rapazes para se certificar de que tudo estava em ordem, viu os catecúmenos reunidos e ajoelhados em oração. Perguntou-lhes que faziam: «Rezamos à Santíssima Virgem, nossa boa Mãe – responderam – para que nos consiga de Deus a graça de chegarmos amanhã, o feliz dia em que nos faremos cristãos». Quanta fé nos primeiros jovens da África Central!

Por outro lado, Knoblecher e seus companheiros eram, por sua vez, discípulos dos seus alunos, porque, na medida do possível, procuravam aprender a língua das diferentes tribos a que eles pertenciam e também se preocupavam por conhecer todos os factos que pudessem dar-lhes a conhecer os seus usos e costumes e quanto lhes pudesse servir para conhecerem as condições das suas terras de origem. Isto com o fim de obter mais tarde um melhor resultado no apostolado que se propunham empreender nelas. Quando tardava em chegar a ajuda da Europa, o zelo não diminuía por isso e a actividade era sempre a mesma. Aos alunos nada faltava, porque os missionários se submetiam a si mesmos a privações para acorrer às suas necessidades.


[2042]
Tudo era suportável para estes dignos ministros de Jesus Cristo que não procuravam senão a glória de Deus e a salvação das almas mais abandonadas. Na pequena comunidade de Cartum reinavam a paz, a ordem e o espírito de Jesus Cristo. Porém, o dr. Knoblecher, embora confiante na Divina Providência, estava preocupado pela situação económica da missão e aproveitou o regresso de P.e Ângelo Vinco à Europa para pedir ajuda na Itália. Mons. Casolani, não podendo suportar mais o deprimente clima de Cartum, nem as grandes fadigas da missão, regressou a Malta com intenção de não mais voltar.


[2043]
O pró-vigário apostólico encarregou P.e Vinco de acompanhar o monsenhor ao Egipto e de ir depois para a Itália a fim de angariar esmolas para a missão. A 19 de Janeiro de 1849 aquele valente missionário chegava a Verona, ao instituto que lhe dera a preparação para o serviço de Deus e a formação para o apostolado. E, embora, infelizmente, não tenha obtido o objectivo principal da sua viagem, por causa da revolução e dos deploráveis acontecimentos daqueles dias, o seu regresso a Itália tinha sido sobejamente frutuoso ao conseguir, sem sequer se aperceber, um grande êxito para o futuro da missão. A Providência tinha-o conduzido à cidade eminentemente católica e fiel, que foi cenário dos insignes trabalhos e do apostolado de um dos maiores santos e mártires africanos: S. Zeno, padroeiro de Verona, é africano. Tinha-o conduzido lá onde os devotos veroneses veneram desde há séculos as relíquias do seu primeiro padroeiro, S. Zeno, para suscitar a primeira centelha da vocação apostólica que mais tarde, aí, em Verona, abraçaram muitos membros do venerável instituto do ilustre professor P.e Nicolau Mazza.


[2044]
Tendo contado com todo o entusiasmo da sua alma múltiplos pormenores muito interessantes aos quinhentos alunos dos seus institutos de São Carlos e Canterane, e dado muitas explicações sobre a deplorável situação dos infelizes jovens da raça camita, acendeu o fogo daquela caridade divina que arrasta para o caminho da entrega total e do sacrifício pela salvação dos infiéis.

Os relatos de P.e Vinco produziram grande impressão no espírito ardente daquele prodígio de caridade e de sabedoria que foi P.e Nicolau Mazza, digno émulo dos gloriosos campeões da Igreja S. Vicente de Paulo e S. Carlos Borromeu. Animado de um fogo sobrenatural pela salvação dos africanos e vendo alguns dos seus alunos dispostos a secundá-lo no seu zelo, aquele venerável fundador decidiu-se a cooperar no apostolado da Nigrícia com os seus dois institutos que floresciam em Verona, o primeiro dos quais podia proporcionar fervorosos missionários e o segundo autênticas mulheres do Evangelho para a conversão da África Central.


[2045]
Com este nobre pensamento na mente, P.e Nicolau Mazza dizia para consigo: «O meu instituto masculino, que dá cada ano bons sacerdotes à diocese de Verona, poderá bem oferecer à África bons missionários e educar rapazes africanos, susceptíveis de ser, com o tempo, os apóstolos da sua terra; e o meu instituto feminino, que instrui e mantém, dia após dia, mais de trezentas raparigas, bem poderá formar na moral e na religião cristã algumas pobres negras, a fim de que possam chegar a ser úteis às suas pátrias.» É pelos elementos de apostolado destes dois institutos de Verona que se poderá empreender, com autorização da S. Sé, uma missão na África Central para a propagação do Evangelho.

Tal era a ideia do ilustre fundador Mazza. De facto, mediante a activa cooperação do rev.do P.e Jeremias, de Livorno, missionário franciscano no Egipto, introduziu nos seus institutos de Verona muitos africanos de ambos os sexos para os educar na fé e civilização cristãs e começou a preparar sacerdotes e bons colaboradores para empreender a sua obra.


[2046]
Entretanto, P.e Inácio Knoblecher, como se encontrava sozinho em Cartum com o P.e Pedemonte, por meio deste tinha solicitado missionários ao padre geral da Companhia de Jesus. Obteve assim o P.e Luís Zara, de Verona, com outro padre e outros jesuítas leigos.

Em meados de 1849, quando a necessidade tinha atingido o máximo, chegou de Laybach ajuda oportuna para ajudar a missão na sua miséria. Estas ajudas conseguidas por meio de cartas a particulares, testemunhavam que a fé e a participação nas obras para a propagação do Evangelho ainda se não haviam extinguido na Europa e deixavam alguma esperança para o futuro. Todo o sofrimento suportado até então parecia doce e suave aos generosos corações daqueles lutadores pela salvação dos africanos, porque estavam animados pela feliz confiança que nunca falta nas almas dos que se colocam nas mãos de Deus.


[2047]
Depois do regresso de P.e Ângelo Vinco a Cartum, o dr. Knoblecher resolveu controlar a execução do grande projecto da missão e penetrar, na medida do possível, no interior da África para melhor conhecer o campo dos seus futuros trabalhos. Todos os anos, em Novembro, quando os ventos do Norte começavam a soprar, o governador-geral do Sudão mandava de Cartum numerosos barcos para subirem o Nilo Branco, com o fim de prover às necessidades dos súbditos egípcios estabelecidos ao longo do rio e de fazer intercâmbio com os negros, dando-lhes missangas de vidro em troca de dentes de elefante. O dr. Knoblecher decidiu unir-se a esta expedição. Um comerciante muçulmano ofereceu-lhe o dinheiro com condições bastante pesadas. Ele tinha-se proposto explorar com cuidado a região, para encontrar um lugar seguro, saudável e provido de lenha e água, para estabelecer nela uma estação católica.


[2048]
Na firme esperança de triunfar no seu projecto, em Novembro de 1849 empreendeu a sua viagem pelo Nilo Branco. Após sessenta e quatro dias de navegação para sul, a sua embarcação lançou âncora aos pés do pequeno monte de Lagwek, entre os Bari. Foi tão bem acolhido por esses povos, que lhe foi impossível o regresso sem lhes prometer que voltaria no ano seguinte. Depois de ter examinado bem a zona, empreendeu a exploração das regiões vizinhas dos Bari. Tendo observado tudo, convencido de que a tribo dos Bari era um ponto seguro e adequado para instalar uma missão católica, regressou rapidamente a Cartum.


[2049]
Agora, o campo para cultivar estava encontrado. Mas tudo aquilo que parecia necessário para o sucesso da obra, isto é, o número dos companheiros de trabalho, os meios de mantimento, os colaboradores necessários para dar educação moral e cristã aos povos que se deviam converter, e para salvaguardá-los, bem como à missão, dos ataques inesperados dos seus vizinhos, tudo isso faltava. Todas as tentativas feitas na Europa junto da S. Congregação da Propaganda e pias sociedades que ajudavam as santas missões não tinham dado nenhum resultado, mesmo para as coisas de primeira necessidade. Por isso, julgando absolutamente necessária uma viagem à Europa, depois de ter encarregado os reverendos padres jesuítas da direcção da missão, pôs-se a caminho da Alemanha.


[2050]
Chegado a Laybach, na sua pátria, procurou e encontrou rápidas ajudas para manter por algum tempo a casa de Cartum. Depois, pôs-se a pensar no modo de conseguir os meios para a sua futura empresa no Nilo Branco e conseguiu-os. As coisas correram-lhe bem sobretudo em Viena, onde, na corte imperial, encontrou um apoio sem igual. O dr. Knoblecher, numa pequena nota, expôs claramente, em poucas palavras, o programa da sua obra e apresentou-o a S. Majestade Apostólica.

O imperador Francisco José I, que tinha recebido o pró-vigário com muita amabilidade, mostrou o maior interesse por aquela nobre empresa; e, pondo-se à cabeça do movimento suscitado na Áustria em favor da missão da África Central, deu ele mesmo do seu bolso a soma de 25 000 libras austríacas (20 835 francos). Todos os membros da família imperial, os arquiduques, os príncipes e as princesas, como também os ministros católicos do império e os altos cargos dos diversos ministérios, cada um segundo as suas possibilidades, procuraram ser úteis à missão. As mais nobres damas da capital e do império acorriam a entregar ao pró-vigário consideráveis ajudas monetárias e a dar-lhe apoio moral.


[2051]
Também lhe dispensaram acolhimento favorável os bispos e o clero austríacos. Pouco depois, teve exortações e cartas pastorais dos ordinários, nas quais recomendavam a nova missão aos fiéis das suas dioceses, solicitando os seus donativos. O mais notável foi que de toda a parte se apresentavam notáveis eclesiásticos e piedosos leigos, que, por amor de Deus e pela salvação do próximo, desejavam empreender uma viagem a África para colaborarem na grande obra da missão. Não era preciso trabalho para os estimular nem atrair para colaborarem na empresa. A aparição do venerável dr. Knoblecher produziu um santo entusiasmo: a sua presença arrebatava todos os corações, atraindo-os irresistivelmente para a sua obra.


[2052]
Parecia, pois, que a missão tinha o necessário para a estação de Cartum e para a nova fundação nas terras dos Bari. Mas que aconteceria depois? Sem a esperança de que as ajudas continuassem no futuro, as fundações de Knoblecher seriam construídas sobre a areia. O começo mais brilhante não produz grandes resultados numa obra sem o selo da perpetuidade, que garanta a continuação e o aperfeiçoamento da mesma.

Por isso, o dr. Knoblecher, seguindo as recomendações de um venerável bispo, seu compatriota, mons. A. Meschutar, conselheiro áulico e chefe de departamento do Ministério dos Cultos, formou um comité constituído por pessoas muito distintas e influentes do império austríaco e, com aprovação do Governo imperial, fundou-se a Associação de Maria para a Missão da África Central, de cuja direcção se encarregou primeiramente o referido mons. Meschutar.


[2053]
Obtida a aprovação da S. Sé, mediante um breve de 15 de Dezembro de 1852, a associação foi colocada sobre a protecção de S. Em.a o card.-príncipe Frederico de Schwarzenberg, arcebispo de Praga, e sob a presidência de S. E. o conselheiro áulico Frederico Hunter, historiador do império de S. M. Apostólica e do império austríaco.

Esta personagem era um dos mais brilhantes prodígios da graça do séc. xix. Após uma circular dirigida a todos os bispos do império, pelo alto comité da associação, esta estabeleceu-se em todas as suas dioceses e durante muitos anos recolheu enormes somas para a África Central. Sua majestade pôs a missão sob a sua protecção e conseguiu para ela um decreto do grande sultão, em que este lhe assegurava todos os direitos e privilégios na totalidade das possessões do vice-rei do Egipto, às quais as missões católicas pertencessem, segundo os tratados relativos às outras províncias do império otomano. Em Cartum criou-se expressamente um consulado austríaco para proteger os direitos e os interesses da missão.


[2054]
Tendo deixado tudo bem concertado em Viena, o dr. Knoblecher dirigiu-se, por Munique, a Bressanone, no Tirol, para recomendar os interesses da sua empresa ao coração magnânimo de um dos seus mais estimados amigos, a quem havia conhecido em Roma em 1845, e que o compreendia perfeitamente. Era ele um ilustre e sábio professor, o dr. J. C. Mitterrutzner, cónego regular da Ordem de St.o Agostinho, homem de raro talento, que foi o amparo da missão e a quem o vicariato da África Central deve os maiores serviços. Direi apenas que ele recolheu todos os anos somas ingentes para a missão, à qual, além disso, mandou um bom número de sacerdotes, quase todos do Tirol alemão.


[2055]
Utilizou também toda a espécie de meios, mas sobretudo a pena, para cooperar na grande empresa. E, finalmente, valendo-se dos manuscritos que os missionários lhe haviam oferecido e com a ajuda de dois indígenas africanos, que chamara a Bressanone, conseguiu compor dicionários, gramáticas e catecismos nas línguas mais importantes e mais difundidas na missão: o dinca e o bari. Com isso proporcionou aos futuros missionários da África os elementos e materiais necessários para exercer o ministério apostólico nos vastos territórios que se encontram entre o 13o de latitude norte e o equador, nas regiões do Nilo Branco.


[2056]
Knoblecher recebeu muito favorável acolhimento por parte de monsenhor Gallura, príncipe-bispo de Bressanone, e do seu piedoso e sábio clero. Foi recebido com entusiasmo em Verona e em Monza, pela rota de Génova, dirigiu-se a Roma a dar conta à Santa Sé dos assuntos da missão. Porém, na Cidade Eterna surgiram grandes obstáculos. A Propaganda, após as queixas de mons. Casolani, que se apoiava sobretudo na falta de meios económicos necessários para a empresa – meios que S. Ema o card. Fransoni declarava não poder fornecer –, tinha decidido abandonar a missão. Já estava assinado o decreto de supressão e dada a ordem para chamar os missionários de Cartum para os destinar a outras missões.

Com o relatório da sua viagem a terras dos Bari e dos felizes resultados que tinha conseguido na Áustria, Knoblecher conseguiria parar o terrível golpe. Porém, só depois de muitos trabalhos e dificuldades.


[2057]
Pio IX escutou-o com muita atenção e vivo interesse numa audiência privada. Knoblecher foi nomeado pró-vigário apostólico da África Central e recebeu de novo o encargo de dirigir a missão. Em Agosto de 1851, foi a Trieste para recolher as abundantes provisões que lhe tinham dado na Alemanha e para receber os novos missionários, com os quais partiu para o Egipto.

Eis aqui os nomes desses fervorosos mensageiros da fé:

R. P. Bartolomeu Mozgan

“ “ Martinho Doviak

“ “ Otão Tratan todos eslavos

“ “ João Kociiancic

“ “ Mateus Milharcic


[2058]
Estes eram acompanhados por numerosos leigos consagrados à missão e úteis pela sua aptidão para as artes e ofícios.

Chegados à capital do Egipto, os missionários viram-se obrigados a permanecer mais tempo do que o previsto. O dr. Knoblecher, como dissemos, estava munido de um decreto de Constantinopla para a protecção do vicariato perante o governo do Sudão egípcio. Mas, infelizmente, os direitos e os privilégios da nova missão deviam ser reconhecidos pelo vice-rei, pois o pouco entendimento que, desde havia muito, existia entre a Sublime Porta e o divã do Cairo, levavam a pensar que tais ordens não obteriam no Egipto toda a obediência desejada. O dr. Knoblecher foi muito bem recebido na audiência com o vice-rei e o divã até recebeu ordem de ditar disposições no sentido expresso no decreto para os plenipotenciários do Sudão. Contudo, apesar de todos os protestos possíveis, não conseguiu que lhe fosse entregue o decreto do Grande Paxá.


[2059]
As astúcias e as intrigas que o insolente muçulmano se permitiu usar e a experiência que ele tinha do passado, tinham convencido Knoblecher de que, sem a posse desse documento, os seus esforços poderiam ser facilmente iludidos e tornar-se vãos. Foi então que enviou uma nota ao Grande Divã, na qual declarava que se via forçado a pedir a Constantinopla outro decreto e mandar acrescentar nele que o mesmo decreto ficasse em poder da missão.

A resposta foi que ele se enganava em esperar as disposições de S. A. o Grande Paxá, e no breve espaço de quarenta e oito horas recebeu do Governo egípcio uma cópia do decreto constantinopolitano, assinado por S. A. o próprio vice-rei.


[2060]
Antes de abandonar a capital, o pró-vigário pensou dotar a missão de uma embarcação bastante cómoda para transportar as provisões e os missionários, e para fazer visitas apostólicas no Nilo Branco. Adquiriu, pois, um pequeno barco fluvial do tipo que os árabes denominam por dahhabia, que S. A. Heiraldin Paxá lhe cedeu a um módico preço. Era uma elegante embarcação, reforçada com ferro, de três velas, que a 15 de Outubro o pró-vigário benzeu solenemente, pondo-lhe o nome de Stella Mattutina. A cerimónia foi muito emocionante. A última das três divisões era verdadeiramente adequada para uma capela. O harmónio acompanhando o canto do Ave Maris Stella e a devoção dos piedosos católicos participantes tornaram o acto muito interessante, celebrado nas margens do Nilo e ao pé das pirâmides.


[2061]
O Stella Mattutina tornou-se famoso na África Central. Era saudado com imensa alegria pelas numerosas populações do Nilo Branco, e todos os negros da região compreendida entre Berber e Gondokoro o consideravam como um presságio de boa sorte. Da mesma maneira, o nome de Abuna Soliman (Nosso Pai Príncipe da Paz), com o qual sempre foi chamado o dr. Inácio Knoblecher, era sentido e pronunciado com grande veneração por todas as pessoas de qualquer classe desde Alexandria até ao equador.

A 18 de Outubro toda a expedição saiu do Cairo a bordo do Stella Mattutina para subir o Nilo até ao Alto Egipto e Núbia. Em Korosko (21o lat. N.) o grupo dividiu-se. O pró-vigário, com quatro missionários e alguns leigos, tomou o caminho do deserto de Atmur, chegando a Cartum nos finais do ano. O P.e Kociiancic passou com o Stella Mattutina as grandes cataratas de Dôngola e a 29 de Março lançou a âncora em Cartum.


[2062]
Desde o Outono de 1850 que P.e Ângelo Vinco, com a aprovação dos padres jesuítas, que dirigiam a missão, tinha empreendido uma viagem pelo Nilo Branco. O sr. Brun Rollet, homem de negócios saboiano residente no Sudão, tinha posto à sua disposição uma das suas embarcações. Em pouco tempo, P.e Vinco aprendeu a língua do país, percorreu demoradamente numerosos lugares da tribo dos Bari e foi o único missionário que visitou a tribo dos Beri, a sueste de Gondokoro. Na esperança de que os seus companheiros viriam depois estabelecer-se ali, começou um verdadeiro apostolado entre aqueles povos. A paciência, a abnegação, a caridade de que estava imbuído, e sobretudo a sua valentia, converteram-no rapidamente no homem mais importante e venerado daquela zona. Pôs-se a instruir crianças e baptizou algumas «in articulo mortis». Deixou as populações bem-dispostas a receberem os missionários com verdadeiro amor.


[2063]
A sua reputação aumentou ainda mais pelo seguinte facto: num povoado dos Bari havia um enorme leão que destroçava tudo e devorava pessoas, em especial crianças. Habituado desde a sua juventude à caça nas montanhas de Cerro, sua terra natal, pôde, não sem esforço e confiando em Deus, matar com uma carabina o terrível animal. Não é fácil imaginar os gritos de alegria e de agradecimento que aquelas gentes lhe prodigalizaram: chamavam-lhe filho do trovão e levavam-lhe bois e outras ofertas consideráveis, em sinal de uma veneração extraordinária. O seu nome era famoso entre os negros.


[2064]
O P.e Pedemonte visitou os Bari e esteve com eles algum tempo fazendo o bem, enquanto o piedoso P.e Zara ficou em Cartum, deixando aí belas recordações. Ambos trabalharam para educar na fé e moral católicas crianças coptas; e abriram um caminho no jardim da missão de que tinham cuidado bem. Os padres eram abençoados na África Central, mas tiveram que a abandonar porque a Companhia de Jesus, tendo-se restabelecido bastante dos males da revolução de 1848, depois das felizes diligências de Knoblecher, retirou os seus sacerdotes desse vicariato.

O P.e Zara foi destinado a Ghazier, na Síria, onde uns anos mais tarde entregou a alma ao Criador. Os outros foram chamados a Roma e o P.e Pedemonte foi para Nápoles, onde coroou a sua carreira apostólica com uma santa morte. Em 1864 este grande missionário, já septuagenário, declarou-me que o maior sacrifício que tinha feito em toda a sua vida fora o de ter de abandonar a missão da África Central, para a qual concebera as maiores esperanças.


[2065]
Depois da chegada dos novos missionários a Cartum, Kociiancic e Milharcic foram destinados a esta estação, enquanto todos os outros deviam partir para o Nilo Branco. O pró-vigário apostólico escrevia em 1852 nestes termos: (3)

«A estação de Cartum oferece-nos, desde o nosso regresso, a imagem de uma vida muito activa. Nós estamos divididos e classificados conforme as diferentes ocupações a que nos dedicamos. O rev.do P.e Milharcic, dotado de todas as qualidades necessárias para a boa direcção de rapazes, ocupa-se da escola dos jovens. Esta tem, desde que os coptas cismáticos nos confiam os seus filhos, mais de quarenta alunos, que dão aos educadores muito trabalho. Nas nossas oficinas artesanais trabalha-se de manhã à noite e assim vamos chegando, pouco a pouco, à possibilidade de construir os móveis mais necessários. O talento do P.e Milharcic surpreende-nos de vez em quando com a invenção de novos objectos úteis».


[2066]
Na festa de Todos os Santos alguns rapazes negros da escola receberam o baptismo. Tinham sido comprados no mercado de Cartum. Noutra altura falarei da escravidão na África Central. É suficiente, por agora, dizer algumas palavras sobre o mercado de Cartum, como o descreveu o dr. Knoblecher (4): «Não há nada que rasgue mais o coração do que passar sexta-feira (dia consagrado pelos turcos ao culto divino) pelo mercado de escravos de Cartum e verificar o abuso infame que se comete com toda a indiferença, entre uma multidão de homens, mulheres, rapazes, raparigas e crianças. Estes infelizes, antes de serem cedidos aos compradores, sofrem um vexante exame de muitas partes do seu corpo. É verdadeiramente doloroso para uma alma cristã ser testemunha ocular de todas as infâmias que se fazem sofrer a estes pobres e infelizes irmãos nossos em Jesus Cristo.


[2067]
Com que indiscrição os compradores, antes de fechar o vil negócio, põem as suas mãos sacrílegas nestas inocentes vítimas e observam a cada uma os dentes, a língua, a garganta e lhes apalpam com toda a naturalidade as mãos, o pescoço, as orelhas, os pés, etc. É irritante ver como estes vendedores ambulantes públicos correm de cá para lá, como se grita, como se tratam os pobres escravos, e sem ninguém pensar que quem está a ser submetido a tudo aquilo é seu irmão ou sua irmã! Eu vi ao mesmo tempo, a um canto do mercado, algumas mães aturdidas e angustiadas: tinham-lhes arrebatado filhos e filhas, os quais certamente já não voltariam a ver sobre a terra. Aquelas pobres mães esperavam seguir de um momento para o outro a mesma sorte dos seus filhos. Porém, o que me impressionou terrivelmente foi ver uma jovem mãe com três filhos, o mais pequeno dos quais talvez tivesse uns dois dias, sentada no chão toda dobrada, apoiando a cabeça no braço direito, enquanto com a esquerda apertava o pequenino contra o peito.


[2068]
Assim mergulhada na sua dor, contemplava os seus dois filhos mais crescidos que se agarravam a ela com um olhar tão tocante e um sentimento tão vivo, como se intuíssem a separação iminente. De repente, ouviu-se gritar: “Quanto quereis por esta família?” A estas palavras, a angustiada mãe levantou o olhar; mas eu não tive coragem de presenciar o final. Só de longe pude ouvir estas palavras: “Setecentas piastras” (182 francos). Meu Deus! Uma família, uns seres resgatados pelo sangue de Jesus Cristo, por tal preço! Assim absorto nos meus pensamentos, fui-me aproximando do lugar onde se procedia à venda dos homens. Estes pareciam aceitar a sua sorte com mais tranquilidade. Olhando em seu redor, esperavam o seu turno de leilão. Porém, não ignoravam que, ao menor murmúrio, receberiam o castigo de violentas chicotadas ou seriam amarrados a pesadas cadeias.»


[2069]
O mui reverendo pró-vigário apostólico resolveu os assuntos em Cartum e partiu no Stella Mattutina pelo Nilo Branco, na companhia dos revdos padres Mozgan, Dociak e Trabant. Nesta viagem, todos sofreram muito com as febres. O pró-vigário foi de tal modo por elas atingido que se viram obrigados a administrar-lhe os últimos sacramentos. Depois de muitas fadigas e sofrimento, chegou pela segunda vez ao território dos Bari, a 3 de Janeiro de 1853. Aí encontrou P.e Ângelo Vinco doente de uma insolação e de uma violenta febre, que degenerou em tifóide.

Alguns dias depois, este corajoso missionário, após um curto e laborioso apostolado, assistido nos seus últimos momentos pelo seu venerável superior, que lhe administrou todos os sacramentos dos enfermos, entregou a alma ao Criador, em Mardiuk, na tribo dos Bari: era o primeiro apóstolo e mártir da fé e da civilização cristãs no Nilo Branco. O nome de P.e Ângelo Vinco é venerado ainda entre os povos Chir, Beri e Bari, que em certas ocasiões lhe dedicam cantos na sua língua, os quais se tornaram populares no Nilo Branco para lá do 7o grau de lat. norte.


[2070]
Em Gondokoro (4o 40’ lat. N. e 37o 47’ long. este do meridiano de Paris), o dr. Knoblecher pensou comprar um terreno para uma casa com jardim. Alguns ricos proprietários fizeram-lhe ofertas e sobretudo um velho chamado Lutweri ofereceu-se para lhe vender uma parte considerável da sua propriedade. O negócio foi discutido na presença de muitos chefes, entre os quais se encontrava Niguila, o famoso chefe dos Beri. Esta é uma tribo muito aguerrida estabelecida a sueste de Gondokoro.

Para tal fim, o pró-vigário mandou instalar a tenda que uns piedosos benfeitores da Europa lhe tinham oferecido para situações similares e deu a cada chefe uma comprida túnica azul com um tarbusc (barrete vermelho) para a cabeça. Depois ele envergou um traje branco, levando na mão uma lança em forma de cruz, símbolo da nossa redenção (5), em vez de uma lança ou espada homicida. Assim, acompanhado por muitos chefes, entrou na tenda; aí todos se sentaram. A certa altura, um deles levantou-se para fazer uma alocução; outros se seguiram e assim todos tomaram a palavra.


[2071]
Os seus discursos giravam sobre este ponto. «O estrangeiro deve comprar para si e para os seus irmãos um terreno para nele plantar árvores e para instruir os meninos e como estes senhores não têm nada em comum com os ladrões e assassinos estrangeiros, para que ninguém moleste os seus irmãos na posse do seu terreno, os chefes obrigam-se a vigiá-lo. Depois de todos falarem, o pró-vigário, com a ajuda do seu intérprete, fez-lhes um discurso sobre a sua missão divina. Todos os chefes se puseram de pé para mostrar a sua aprovação, tendo ficado muito satisfeitos e comunicaram-lhe que as suas palavras os tinham convencido e que tinham muita confiança nele. Por sua parte, o pró-vigário assegurou-lhes que ele e os seus irmãos se dedicariam com todas as forças à sua missão, em benefício daquela zona, assim como de todas as suas gentes.

Então o chefe Niguila levantou-se pela segunda vez para falar ao grupo, dizendo que só aqueles que estavam perto da missão deviam proteger os missionários contra as ofensas e os ataques do inimigo e que os que viviam mais longe só de vez em quando visitariam a casa e o jardim da missão.


[2072]
A reunião deu-se por encerrada e o terreno foi considerado propriedade da missão. Porém, foi difícil determinar os limites. Feito isso, o pró-vigário chamou o vendedor, o qual, acompanhado de dois chefes, o seguiu até ao Stella Mattutina levando meia cabaça vazia e seca que, com grande satisfação sua, o pró-vigário lhe encheu de missangas de vidro de várias espécies. O contrato de venda, redigido em língua bari, foi lido aos chefes, cada um dos quais tomou com grande respeito entre os seus dedos a pena do pró-vigário e marcou com ela uma cruz junto ao seu nome. Knoblecher repartiu entre eles contas de vidro e todos se foram embora contentes.


[2073]
Comprado o terreno, houve que pensar na construção de uma capela para o serviço de Deus, uma residência para os missionários e um quintal para as necessidades da missão. Faltavam porém obreiros capazes de executar os trabalhos. Cheios de vontade de se sacrificarem por estes povos, o pró-vigário e os seus missionários estavam abertos a tudo e a todos, pelo que meteram mãos à obra com ânimo heróico. Devemos ter presente que, como era necessário exercer uma grande influência entre os Bari e nas tribos vizinhas, era imprescindível contar com uma sede estável, onde pudessem aprender as diversas línguas para poderem cumprir melhor os deveres da sua vocação, instruindo a juventude e ensinando ofícios a um povo até então primitivo. Por isso, interrogaram-se: «Onde encontrar (mesmo dispondo de materiais suficientes) pedreiros, serralheiros, carpinteiros, lavradores, ferreiros, etc. para os trabalhos?»


[2074]
Os missionários deviam prover a tudo isso, se quisessem arranjar um lugar estável nestas regiões, onde os pobres negros, com um pouco de palha e barro, constroem hoje as suas cabanas, que no dia seguinte, por causa de uma pouca de chuva caída durante a noite, se verão obrigados a reconstruir. Grande embaraço deviam sentir ali os missionários quando, olhando em redor, descobriam tantas cabeças e mãos incapazes de executar a sua obra. Viram-se pois forçados a recorrer aos seus próprios meios e todos os conhecimentos técnicos que tinham adquirido nos seus tempos livres, durante os recreios no colégio, foram-lhes úteis neste momento. Depois da santa missa, pegava-se, por amor de Deus, ora na colher de pedreiro, ora na serra, ora no machado; enquanto um empunhava um martelo, outro uma machada, uma enxada ou uma pá, etc., todos mostravam aos que os rodeavam a maneira de fazer estes novos trabalhos e encorajavam-nos a imitá-los. Deste modo, com o suor na fronte, conseguiu-se o prodígio de se erguer, entre aquela gente, uma casa para a glória de Deus. E a obra prosperou admiravelmente, porque, dois anos depois, quando o pró-vigário regressou a Gondokoro, deu desta estação os seguintes dados: (6)


[2075]
«No meio do território da orgulhosa tribo dos Bari, lá onde as margens do rio misterioso se elevam a uma altura como não se vê em nenhuma outra parte do seu percurso, encontra-se um conjunto de construções que contrasta surpreendentemente com todos os povoados indígenas. Da parte norte e da parte do rio, vê-se já de longe, sobre uma suave lomba, uma construção quadrada, enquanto as casas dos indígenas, no seu tipo mais genuíno, são redondas com um tecto em forma de cone. Da parte oeste, até ao rio e para sul, depara-se à vista uma avenida de árvores e de plantas que se não encontram em parte nenhuma do país e que foram trazidas de uma região muito distante. No meio dessa extensão de terreno levantam-se, sobre diques, pequenos fortes construídos com a madeira de árvores de uma altura considerável, com as quais se fazem também os mastros para as embarcações do Nilo.


[2076]
Hoje, a parte mais alta está encimada com uma cruz metálica, que brilha de longe ao nascer e pôr-do-sol e anuncia aos africanos próximos do equador a chegada da salvação e da redenção. Aos pés da cruz, ondeia, de vez em quando, uma bandeirola branca com uma estrela azul, que anuncia às gentes dos arredores as festas de Nosso Senhor e as da Santa Virgem que a Igreja Católica celebra. É este o aspecto que apresenta desde o exterior N. S. de Gondokoro, no Nilo Branco, para cuja construção e decoração os nossos caríssimos irmãos da Europa forneceram o necessário».


[2077]
Deixando como superior da estação de Gondokoro o rev.do P.e Bartolomeu Mozgan, Knoblecher, acompanhado do príncipe dos Beri, Niguila, regressou a Cartum, onde tinha que se preparar para ir ao Egipto fazer umas compras consideráveis e para esperar novos mensageiros da fé, cuja chegada lhe tinha sido anunciada havia pouco e cujos nomes eram:

1.o Luc Jeram, 2.o Joseph Lap ........da Carnia

3.o Jospeh Gostner, 4.o Luís Haller...do Tirol

5.o Inácio Kohl, ..............................da Baixa Áustria

(Na margem direita está escrito) Havia também um excelente leigo de Viena, Martinho Hansal, professor e excelente músico.


[2078]
Nos inícios de Setembro de 1853 chegaram a Alexandria, onde os esperava o pró-vigário apostólico. O chefe dos Beri, como dissemos, tinha acompanhado Knoblecher na sua longa viagem pelo 27o de lat. norte. O senhor Gostner escrevia assim de Alexandria ao ilustre professor Mitterrutzner acerca do seu encontro com Knoblecher e o seu principesco acompanhante Niguila que tinha ainda o nome de “Mougha”: «Por fim, apareceu o próprio venerável pró-vigário entre árabes, turcos, judeus, gregos, etc., e dava ordens para todo o lado, não sei em quantas línguas. Todos tinham um grande respeito a Abuna Soliman. Quando chegámos ao Hotel do Norte, os outros foram jantar, mas a mim Knoblecher levou-me ao convento do padres franciscanos, onde ele recebeu generosa hospitalidade e lá jantámos. Depois, o pró-vigário chamou Mougha e, como um relâmpago, o príncipe dos Beri correu de um bloco de pedra, onde se tinha recostado e apresentou-se perante mim. Estendeu-me a mão e saudou-me cordialmente, dizendo-me: “Como está?”. À minha resposta respondeu. “Bem”.


[2079]
Só se expressa na sua língua, que ninguém conhece, salvo Knoblecher, que, como parece, fala correctamente com o chefe dos Beri. Este tem 25 anos e mede seis pés (Knoblecher diz que é um dos mais baixos da sua raça); é magro e ágil, negro como carvão. Nos seus movimentos e no seu porte há espontaneidade, porém, não desconsideração. Não se sente bem no quarto, quer liberdade de movimentos e estar ao ar livre. Traz ao pescoço uma série de colares de contas de vidro de diferentes tamanhos e cores, e nas mãos e pés uma quantidade de braceletes e anéis de prata, ferro e marfim. São a sua alegria e o seu prazer. Numa mão segura sempre uma varinha de madeira e na outra mão ou no ombro, um engraçado banquinho de madeira, no qual se senta logo que chega a um sítio. Não tem barba e nos seus cabelos, amarrados no alto da cabeça, traz plumas de avestruz. Aqui chama muito a atenção... mas os senhores e senhoras importantes interessam-se muito por esta alteza negra. Nós vamos vê-lo frequentemente e ele aperta-nos a mão dizendo: «Doto?» (como está?) e esforça-se para conseguir que aprendamos a contar até dez.


[2080]
Diz que a sua gente não queria deixá-lo ir à terra dos brancos, porque estes cortam as orelhas aos negros e até os comem... O comandante da fragata austríaca Bellona convidou o pró-vigário e sua alteza negra para um jantar a bordo. O bom do príncipe não parava de se admirar com as coisas que via no barco; encontrando-se ainda à mesa a jantar, o seu bom coração levou-o a excessos: tomou o copo do comandante, ofereceu-lho pedindo que lhe deitasse água na mão, com a qual o aspergiu... e o fez rei à maneira dos Beri...

Quando o pró-vigário se afastou da fragata Bellona, treze tiros de canhão anunciaram à cidade de Alexandria quanto se estimava e venerava o chefe da missão da África Central. O senhor Chaevalier Huber, cônsul-geral da Áustria, e muitos outros senhores, acorreram no dia 17 de Setembro a despedir-se dos missionários.


[2081]
Então Mougha, com ar régio, pôs-se no meio do grupo e disse: (o dr. Knoblecher fazia de intérprete): «Os europeus poderão visitar sempre o nosso país; os árabes, ao invés, devem ficar fora, porque eles vêm só para incendiar, matar, saquear e fazer revolução.» E ao dr. Kerschbaumer, professor em S. Pölten, que devia regressar à Áustria, Mougha encarregou-o de saudar da sua parte e de apresentar os seus respeitos a todos os amigos do seu padre Abuna Soliman, o pró-vigário apostólico.


[2082]
Em Alexandria e no Cairo, o dr. Knoblecher comprou abundantes provisões e fez algumas aquisições importantes para as estações de Cartum e Gondokoro. Nos princípios de Outubro, a grande expedição abandonou a capital do Cairo para subir o Nilo. Chegados ao trópico do Câncer, levantaram as suas tendas em frente da ilha de Filé, enquanto em Korosko se preparavam setecentos camelos para atravessar o Atmur até Berber.


[2083]
Foi em Korosko que dois missionários, educados no Insto. Mazza, de Verona, se juntaram a esta caravana. Foram eles os rev.dos P.e João Beltrame, de Valeggio (diocese de Verona) e o P.e António Castagnaro, de Montebello (Vicenza). P.e Nicolau Mazza, continuando o seu nobre intento de ir em ajuda dos pobres negros, tinha feito muitos preparativos para realizar o seu projecto. No seu instituto masculino havia sacerdotes já dispostos para a missão e se dedicavam a educar jovens negros com o fim de os preparar para a santa empresa.

No instituto feminino havia piedosas e bondosas professoras que sabiam muitas línguas e, dominando perfeitamente o árabe, ocupavam-se a educar jovens negras com o objectivo de formá-las para o apostolado da Nigrícia. Vendo que todos os esforços prometiam bons resultados para o futuro, julgou chegado o momento oportuno para submeter o seu plano à S. C. da Propaganda para obter autorização de o levar a cabo. Encarregou o seu antigo discípulo, mons. Besi, bispo de Canopo e ex-administrador apostólico de Nanquim, na China, de apresentar em Roma o seu projecto.


[2084]
Sua Em.a o card. Fransoni, prefeito da Propaganda, respondeu que era necessário dirigir-se ao chefe da missão da África Central para fixar as bases da sua acção católica e determinar o lugar em que convinha estabelecer a sua obra e que a S. Congregação interviria para dar a decisão final sobre o assunto. Foi então que P.e Nicolau Mazza mandou a Cartum dois dos seus mais dignos missionários para tratarem da nova empresa. P.e João Beltrame, de Valeggio, na diocese de Verona, e P.e António Castagnaro, de Montebello, perto de Vicenza. Eles foram recebidos em Korosko com muita benevolência por Knoblecher que lhes exprimiu toda a sua satisfação em lhes conceder tudo quanto solicitavam, mas que também desejava que ficassem algum tempo em Cartum, até ao seu regresso de Gondokoro, depois do que seriam estabelecidas as bases da obra do Instituto Mazza.


[2085]
Quando chegou a Cartum a notícia de que a grande caravana tinha entrado no deserto de Atmur, o P.e Milharcic, com o Stella Mattutina e outras embarcações, foi até Berber para receber os missionários e transportar todas as coisas compradas no Egipto.


[2086]
A cruz de Jesus Cristo nunca está separada das obras de Deus. A meia hora de Berber, Milharcic terminou com uma santa morte a sua curta mas laboriosa carreira. A caravana, ao chegar a Cartum a 29 de Dezembro, encontrou Kociiancic agonizante, o qual foi enterrado no jardim da missão, perto do P.e Ryllo. Nos primeiros dias de Fevereiro do ano seguinte, P.e Castagnaro caiu doente de disenteria. Era uma alma pura e cândida, que, desde há muito, queria sacrificar-se e morrer pela salvação das almas. Quando o sacerdote lhe levou o pão dos anjos nos seus últimos momentos, ao chegar à porta da cabana teve que parar, porque o moribundo, reunindo todas as forças do seu espírito, se levantou e dirigiu umas palavras ternas a Jesus Cristo, com um amor e um desejo de morrer por Ele, que todos ficaram comovidos e choraram copiosamente. Consagrou-lhe todo o seu desejo de salvar as almas, ofereceu-lhe toda a sua vida e morreu vítima do seu amor no dia 6 de Fevereiro, em Cartum, depois de ter recebido todos os sacramentos da Igreja e todo o conforto dos moribundos.


[2087]
Depois de entregar a direcção da escola ao P.e Haller e de nomear o P.e José Gostner, superior da Estação de Cartum, e seu vigário-geral, o pró-vigário, acompanhado do sr. Kohl, dirigiu-se a Gondokoro, onde veio a saber que também os padres Doviak e Trabant tinham ido desta para melhor.

Embora Knoblecher tenha ficado muito afectado por estes terríveis golpes, na sua generosidade não cedeu ao desalento. O seu espírito, que não vivia senão de Deus, susteve-o, pela fé, nas circunstâncias mais espantosas, ele que tinha posto toda a sua confiança em Deus, seguindo o ensinamento do Espírito Santo: “jacta curam tuam in Domino et ipse te enutriet”.


[2088]
Dias depois da sua chegada ao país dos Bari aconteceu um incidente que poderia ter tido as mais funestas consequências para a missão de Gondokoro; porém, contra a vontade dos seus inimigos, redundou em seu benefício. O pró-vigário, como os missionários, cumpria os seus deveres em relação aos católicos europeus que, esquecendo os princípios da fé e da moral cristãs, andavam desencaminhados. Sobretudo quando esses miseráveis se mostravam cruéis de inúmeras maneiras para com os pobres negros, os missionários protegiam a inocência e a justiça perante o Governo turco do Sudão, o qual, instruído pela eloquência dos factos e pela conduta dos missionários, depositava grande estima e confiança no pró-vigário e na missão.

Por isso, alguns desses infelizes europeus viam com maus olhos os missionários, porque a sua presença era um censura contínua e uma reprovação da sua conduta. Os negros tinham aprendido a distinguir bem entre os missionários e os outros brancos, porque viam que a missão, em vez de matar os pobres negros e de roubar os seus filhos e filhas e as suas vacas, enxugava sempre as suas lágrimas, curava os seus doentes e ensinava-lhes a moralidade, a justiça e o caminho do céu. Por isso, no incidente que vou contar, eles compreenderam bem que a missão estava muito longe do que a mais subtil malícia e perfídia queria atribuir-lhe. Deus sempre protegeu a justiça.


[2089]
Entre os quarenta barcos que sob diferentes bandeiras iam e vinham pelo Nilo Branco para praticar o comércio de dentes de elefante e o ignominioso tráfico de negros, encontravam-se nas proximidades de Gondokoro três embarcações pertencentes ao cônsul da Sardenha em Cartum, chamado sr. Vauday. Embora estivesse em boas relações com os Bari, declarou abertamente que esperava uma ocasião para lhes fazer guerra e que queria dar-lhes uma boa lição, mesmo antes da sua partida. Dizia que tinha tudo o necessário: armas, pólvora e homens mais que suficientes. Comunicou tudo isto ao pró-vigário na própria noite da sua chegada (4 de Abril de 1854).

Knoblecher recomendou-lhe que fosse prudente, porém, o outro rejeitou o conselho com uma gargalhada escarninha. A 5 de Abril, ao entardecer, um dos barcos do sr. Vauday fundeou entre a Stella Mattutina e o jardim da missão. Parecia que se tentava comprometer esta e dar a entender aos negros que a missão participava na guerra que se lhes queria fazer.


[2090]
O próprio cônsul lançou a âncora mais abaixo, perto de Libo. Um jovem turco, agente do cônsul, subiu a bordo do barco da missão e pôs-se a lamentar-se amargamente do fracasso do comércio entre os Bari. Caída a noite, o barco deixou a margem. Nesse mesmo momento, duas carabinas bem carregadas dispararam contra os indígenas, que estavam desarmados. Com eles, por casualidade, encontravam-se alguns marinheiros da missão que tinham ido comprar carne. Dois rapazes negros caíram. Grossas balas de carabina roçaram o bordo do Stella Mattutina. O cozinheiro, que se encontrava junto ao fogão, foi ferido numa orelha e caiu desmaiado no chão. Dos rapazes, um estava morto, o outro gemia banhado em sangue. Rapidamente, os indígenas começaram a acudir de toda a parte, correndo como relâmpagos; porém, os do barco já remavam com todas as suas forças para Libo.

Soube-se depois que a missão era um espinho para Vauday e que tinha lançado sobre os missionários todas as suas malvadas empresas. Agora pretendia-se arranjar vingança por esse comportamento inaudito, procurava-se incitar os indígenas contra a missão, fazendo-lhes crer que era esta quem lhes fazia guerra. Os comerciantes que voltavam a Cartum acusavam o pró-vigário de lhes ter deitado o negócio a perder, oferecendo missangas aos negros...


[2091]
Ao longe, nas terras dos Bari, ouvia-se o rufar dos tambores de guerra. Os negros acudiam de toda a parte lançando gritos terríveis e agitando as suas lanças e flechas. Os missionários esperavam com impaciência que se acalmassem os ânimos. Os marinheiros da missão queriam preparar-se para a resistência, porém, o dr. Knoblecher proibiu-lhes de carregar os fuzis e ordenou que todos subissem para o barco; somente se o vissem cair, deviam remar para o meio do rio; deviam, além disso, abster-se de procurar vingança. Por sorte para os missionários, o barco do cônsul da Sardenha, com o fogo contínuo, tinha atraído os negros enfurecidos. Eles tinham-no seguido tão velozmente que ao fim de poucos minutos já não se viam os seus movimentos, nem sequer com o binóculo: só se sentia ao longe um surdo ruído de disparos.


[2092]
Antes de o Sol se pôr, o ruído redobrou e pareceu afastar-se das margens. Os missionários compreenderam que a batalha era muito cruel, porque os negros lhes traziam os seus feridos, um após outro.

Durante a noite podia ver-se o fogo da ponte do barco. Mas não era possível saber nada ao certo sobre os feridos, pelo que foi mandado um funcionário e um indígena de confiança ao campo dos negros para obter informações. Só os deixaram entrar quando souberam que eram da missão. Entretanto, um marinheiro do sr. Vauday aproximou-se do Stella Mattutina nadando desde as ilhas próximas e pediu ao piloto que lhe conseguisse protecção do pró-vigário apostólico.


[2093]
Tremendo de frio e de medo, contou deste modo o que se tinha passado: «Quando Vauday ouviu os disparos, vendo quase ao mesmo tempo os negros a correrem em grande número, não esperou a chegada do barco que se apressava a partir e que teria facilmente lançado âncora num lugar do rio onde as flechas não podiam chegar, mas tomou um fuzil de dois canos, obrigou os criados que estavam a seu lado a fazerem o mesmo e correu contra a multidão armada de lanças e flechas.

Sem pensar numa retirada, Vauday lançou-se com a sua gente contra os negros e, embora ele tivesse melhores armas, foi derrotado com os seus companheiros, porque os outros eram mais numerosos.»

Todo o espaço disponível no Stella Mattutina foi utilizado para curar os feridos e os doentes. Estando estes na casa da missão, os seus parentes apresentaram-se em grande número e assistiram-nos com grande afecto.

Como as atenções e o sacrifício dos missionários não podiam escapar aos olhares dos indígenas, a sua confiança aumentou de dia para dia, até ao ponto de Knoblecher, referindo-se ao miserável negociante da Sardenha, poder aplicar as palavras da Escritura: “Vós pensastes fazer-me mal, mas Deus converteu-o em bem”. (Gn. 50,20).


[2094]
A estima acrescida gozada por Knoblecher e pela missão fez com que diversos chefes da zona equatorial (sobretudo depois dos últimos acontecimentos, em que os missionários exerceram uma grande caridade) convidassem o pró-vigário a estabelecer-se nas suas terras. Por estas circunstâncias, depois de ter confiado a estação de Gondokoro ao sr. Kohl, o pró-vigário empreendeu uma exploração pelas numerosas cataratas do Sul de Garbo, Gumba e Takiman, entre aquelas numerosas tribos.

Kohl sentiu-se muito contente em repartir a sua actividade sem limites entre o trabalho de ajuda aos doentes, a instrução das crianças e o seu aperfeiçoamento na língua dos Bari. Em pouco tempo ganhou o afecto de todos. Porém, visitando, pela hora da canícula, um pobre doente que habitava a grande distância, contraiu uma grave doença, a qual tomou um aspecto tão perigoso, que, quando Knoblecher regressou, se viu obrigado a administrar-lhe os sacramentos dos moribundos. Durante quatro dias suportou as maiores dores com uma paciência de mártir. A 12 de Junho entregou a alma ao Criador.


[2095]
Esta grave perda aumentou os problemas do pró-vigário, que se viu na necessidade de se aplicar ainda com mais intensidade à instrução dos jovens para a acelerar o mais possível, a fim de poder administrar, antes da sua partida para Cartum, o santo baptismo aos mais preparados, que o pediam com ardente desejo. Entre eles encontrava-se também o velho Lutweri, anterior proprietário dos terrenos da missão. O velho tinha assistido todos os dias à instrução e orações dos jovens. A graça foi-lhe concedida.

A Estação de Gondokoro estava sem pessoal, porque o P.e Bartolomeu Mozgan havia algum tempo que tinha abandonado os Bari para descer o rio e fundar a nova estação de Santa Cruz na tribo dos Kich, entre os graus 6 e 7 de lat. norte.


[2096]
A 14 de Junho, depois de entregar as chaves da casa ao bom Lutweri e de o encarregar também da administração até ao seu regresso, o pró-vigário voltou a Cartum. Aí os missionários receberam-no com grandes demonstrações de alegria, porque tinham sofrido muito com a falsa notícia que lhes tinha chegado tempos atrás, segundo a qual teria sido comido pelos negros.


[2097]
Foi por essa altura que o dr. Knoblecher pensou construir na capital do Sudão uma grande casa para a missão, com uma igreja, que correspondesse ao fim para o qual os membros do comité de Marienverein tinham dado abundantes ofertas. O rev.do P.e Gostner, vigário-geral, desde a morte do bom Kociiancic, mantinha intensa relação com o seu ilustre presidente para a realização dessa obra, que em 1859 custava mais de 500 000 francos.


[2098]
No ano de 1854 preparou-se uma nova expedição, constituída pelos seguintes missionários:



Rev.do P.e Mateus Kirchner..........de Bambegr na Bavaria

...“........“...António Überbacher

...“........“...Francisco Reiner
.........................................da diocese de Brixen no Tirol


A eles juntaram-se, como trabalhadores leigos:

Sr. Leonardo Koch, arquitecto

“ .. Andrea Ladner

“ .. António Gostner (irmão do vig.-geral)

“ .. João Kirchmair

“ .. José Albinger de Voralberg
..................................................do Tirol


[2099]
No dia 25 de Outubro chegaram a Cartum. Como Haller estava afectado pelas febres desde 10 de Junho de 1854, o P.e Kirchner tomou a direcção da escola da missão. Os padres Überbacher e Reiner estavam destinados à tribo dos Bari. Visto este último ter morrido pouco antes da partida, o pró-vigário levou consigo o sr. Daminger, um excelente leigo, que prestou muitos serviços à missão.


[2100]
A 11 de Abril o Stella Mattutina lançou âncora a meia hora de distância de Gondokoro. Os nativos acorreram em massa e gritavam cheios de alegria: «O nosso barco chega! O barco dos Bari vem pelo rio!» Depois ouviu-se por toda a parte: “Mougha! Mougha!”. Este vestiu o seu traje vermelho de Alexandria. É indescritível a emoção que invadiu o pró-vigário ao ver que já de longe, das margens, a multidão o acompanhava com cânticos de alegria. Os rapazes e os meninos batiam palmas e todos cantavam: «O nosso padre chega, o nosso padre ama-nos... não nos esqueceu!»

Quando o pró-vigário desceu a terra, todos, grandes e pequenos, quiseram apresentar-se pessoalmente, beijar-lhe a mão e exprimir-lhe aos menos com umas palavras a sua alegria pelo feliz regresso.


[2101]
Então o dr. Knoblecher informou-se das falsas notícias que os barcos dos traficantes tinham difundido entre os Bari: que ele tinha morrido ou estava doente, que tinha deixado Cartum e regressado à Europa, que já não gostava dos Bari e não queria mais vir ter com eles. Quanto maior era a surpresa, maior era a alegria de todos pela sua inesperada reaparição. Foi muito interessante a longa conversa que o chefe Mougha teve com a multidão e com os numerosos chefes que o rodeavam. Contou-lhes com grande entusiasmo as maravilhas que tinha visto nas terras dos brancos.

A gente, acocorada ao seu redor, escutava com uma avidez extraordinária o que ele tinha visto com os seus próprios olhos.


[2102]
Com uma eloquência cheia de entusiasmo contou-lhes o que lhe tinha causado mais impressão. Falou-lhes dos imensos povoados (o Cairo e Alexandria), cujos habitantes são tão numerosos como as aves ao emigrar na época das chuvas, falou-lhes das casas como montanhas, todas feitas pela mão do homem, do mar com os seus imensos barcos que se elevam até às nuvens. Falou-lhes também dos costumes e usos das nações estrangeiras, explicando-lhes que há nelas homens muito ricos e muito importantes, como os sultões; contou-lhes como há grande quantidade de chefes e de reis, e como viu um chefe muito grande que é o chefe desses chefes e desses reis (o vice-rei do Egipto)...

A multidão gritava toda maravilhada: ahh! ahh! Depois falou-lhes do bom acolhimento que teve, de como os missionários eram muito venerados pelos chefes e reis, de como tinham casas imensas que são eternas, porque nunca se destroem e nem as chuvas nem as lanças as podem fazer cair. Finalmente comentou a sorte dos meninos bari que eram educados numa grande casa em Cartum, onde cresciam e aprendiam como os brancos, etc., etc. Nighila entreteve-os assim várias horas da noite. Todos ficaram encantados.

Pela manhã, o rev.do P.e Überbacher desceu do Stella Mattutina, montou numa mula e em companhia de meninos que cantavam o Laudate Dominum, etc., e das pequenas catecúmenas, dirigiu-se para a capela.

Ao meio-dia do dia 12 de Abril chegou também o pró-vigário com o Stella Mattutina repleto de povo. Homens, mulheres, crianças, rapazes, raparigas, grandes e pequenos seguiram o barco das margens do rio. Parecia que naqueles lugares despontava uma nova vida.


[2103]
O dr. Knoblecher encontrou o país dos Bari mergulhado na carestia. As chuvas tinham destruído e arruinado tudo. Os pobres ficavam contentes quando encontravam no campo ervas silvestres e raízes com que saciar a fome. A missão fez quanto pôde naquelas circunstâncias. O pró-vigário, que tinha duas barcas de durra (grão negro), trouxe alegria a grande número de pobres. Além destes, aos quais se fazia a distribuição fora, havia sempre outros que comiam uma vez ao dia na missão.

As crianças apresentavam-se à porta e gritavam: «Padre, temos fome!» E partiam cheias de alegria, depois de terem comido.


[2104]
Desenvolvendo uma actividade extraordinária, o pró-vigário pôs-se a preparar os catecúmenos e os neófitos. Demonstrou claramente o conhecimento da língua do país, ao traduzir para ela o pai-nosso, a ave-maria, o credo e as orações mais comuns dos católicos. Überbacher instruía os pequenos e o pró-vigário os adultos. Ao cabo de vários meses, o dr. Knoblecher pôde baptizar muitos bari e deu a santa comunhão, o pão dos anjos, a 31 cristãos.

Entre os baptizados encontrava-se o filho de sete anos (chamado Logwit) do antigo proprietário do terreno da missão, Lutweri, que recebeu o nome de Francisco Xavier e que, oito anos depois, foi ao Tirol, onde, após de ter ajudado o ilustre professor Mitterrutzner na língua bari, morreu como um anjo em Bressanone. O pró-vigário partiu mais tarde para Cartum, depois de ter entregue a missão ao rev.do Überbacher, que continuou sozinho, como um verdadeiro apóstolo, a obra tão santa mas cheia de espinhos, entre os povos da tribo dos Bari.


[2105]
Enquanto P.e Beltrame estava em Cartum a ajudar a missão, procurou obter informações sobre as diversas tribos de negros, no intuito de vir a escolher um lugar conveniente para a obra de P.e Nicolau Mazza, de Verona. Falaram-lhe muito dos Barta e dos Berta que habitavam a oeste do Nilo Azul, entre os graus 10 e 13 de lat. norte, entre os Gallas e a península do Sennar; decidiu, por isso, falar do assunto com o pró-vigário apostólico, na ideia que esses lugares pudessem ser adequados para uma missão segura, uma vez que ficavam entre o Nilo Branco e o vicariato apostólico dos Gallas. O pró-vigário acedeu à petição de P.e Beltrame, que fez os preparativos necessários para empreender uma exploração pelos territórios dos negros situados a sueste do Nilo Azul.


[2106]
O dr. Penay, médico chefe do Sudão, tinha já feito essa viagem e visitado essas regiões, assim como muitos agentes civis e militares do Governo egípcio, sobretudo para procurar o pó de ouro, abundante na zona. Igualmente o alemão Russegger se tinha infiltrado naquelas terras e feito uma descrição bastante exacta das mesmas e do mais interessante que havia nelas, como se pode ver nos seus belos volumes, escritos com muito cuidado. Também tinha realizado essa viagem um dos mais corajosos e fervorosos bispos missionários do nosso século: mons. Guilherme Massaia, bispo de Cassia e vigário apostólico dos Gallas, cuja história é demasiado pouco conhecida na Europa, mas que, realmente, pode ser comparada (no que respeita ao seu trabalho apostólico) à história dos apóstolos e mártires da Igreja dos primeiros séculos.


[2107]
Uma terrível perseguição na Abissínia, instigada pelo bispo copta herético Abba Selama, forçou mons. Jacobis e mons. Massaia a abandonarem o país, no momento em que Massaia tentava penetrar no seu vicariato pela parte de Gondar, a fim de iludir as artimanhas e intrigas de Abba Selama, o patriarca herético. Então concebeu o plano de chegar à sua missão pela rota da Núbia e do Fazogl.

Sob o nome de Khauaïa Gerghes Bartorelli (apelido da família da sua mãe) visitou todos os santuários heréticos dos coptas cismáticos do Egipto, nos quais se inteirou de todos os planos que os seus inimigos realizavam contra si, sem que eles se apercebessem. Como o seu nome era conhecido no Nilo Azul, onde os abissínios faziam o comércio da cera, café e sal, o santo prelado disfarçou-se de árabe pobre e, com valor heróico, ora fazendo-se passar por pequeno comerciante de açúcar, de pimenta e outras especiarias, ora caminhando a pé em breves jornadas, ora misturando-se com os mendigos, em oito meses, sem a ajuda de ninguém, conseguiu entrar por Rosseres e Fadassi na sua missão, depois de ter tido uma longa conversa no Nilo Azul com Abuna Daoud (que depois foi patriarca dos coptas heréticos), o qual vinha de pregar na Abissínia contra os vigários apostólicos da Abissínia e dos Gallas.

Porém, o digno prelado não achou conveniente este caminho para ir ao país dos Gallas, porque apresentava demasiadas dificuldades e perigos.


[2108]
Acompanhado do sr. Francisco Mustafá, convertido do Islamismo e baptizado em Milão, P.e Beltrame saiu de Cartum numa embarcação do dr. Penay a 4 de Dezembro de 1854 e, pela rota de Wad-Medineh, Sennar, Rosseres e Fazogl, tocando o extremo oriental do território dos Barta e dos Berta, chegou, depois de muitas trabalhos e fadigas, a Benichangol, nas terras dos Changallas, perto de Fadassi e a oeste do Nilo Azul. Porém, como as comunicações entre estes lugares e Cartum eram muito difíceis, não considerou prudente fundar aí a primeira casa de uma obra tal como devia ser a de P.e Nicolau Mazza. Por isso, P.e Beltrame voltou a Cartum com o intuito de procurar outro sítio no Nilo Branco.

Foi então que o pró-vigário manifestou o desejo de conceder ao instituto de Verona um lugar nas tribos dos Dincas. Mas, como faltavam missionários para essa empresa, Beltrame regressou a Verona em busca de novos mensageiros da fé, depois de ter acordado com o pró-vigário o que se contém no seguinte documento:







Vicariato apostólico da África Central

N. 10.o


[2109]
Encarregados pelo Vigário de Cristo de evangelizar os povos infiéis da África Central, e desejando portanto, no que nos respeita, que seja efectuada quanto antes a difusão da nossa santa religião, concedemos com sumo prazer ao rev.mo sr. P.e Nicolau Mazza, fundador de uma congregação de caridade existente em Verona, representado pelo rev.do sr. P.e João Beltrame, membro da mesma congregação e enviado para tratar do assunto, o que se segue:

1.o Abrir na nossa missão um instituto para a educação cristã dos pobres infiéis, entre aquela tribo pagã e naquele lugar que os sacerdotes exploradores, enviados para esse fim pelo superior do dito instituto de Verona, tenham por bem escolher.


[2110]
2.o Tendo interesse este novo instituto, segundo a expressa vontade do fundador, em manter-se com os próprios meios comuns a ambos os institutos, isto é, o já existente em Verona e o que se abriria no nosso vicariato, concedemos aos sacerdotes da congregação mencionada a direcção administrativa do mesmo instituto.

3.o Reservamo-nos, não obstante, como é nosso dever, os direitos garantidos pelos sagrados cânones aos vigários apostólicos nas suas missões.


[2111]
4.o Por outro lado, para facilitar a necessária comunicação, tanto com o superior do vicariato como com a Europa e promover de modo conveniente o maior bem possível dos missionários, seria nosso desejo que, desde o princípio, residisse um sacerdote na estação principal de Cartum, onde, vivendo na casa da missão, além de servir de procurador da sua própria missão, encontraria ocupações adequadas e suficientes, segundo as ordens do vigário ou do superior da estação.

Entretanto, passamos a submeter o que fica exposto à S. Congregação da Propaganda Fide para a sua oportuna ratificação.

Em fé do qual passamos este documento munido da nossa assinatura e do selo deste vicariato apostólico.

Dado na nossa actual residência de Cartum, a 3 de Agosto de 1855



Assinado: Dr. Inácio Knoblecher

Pró-vigário apostólico




[2112]
Enquanto o pró-vigário se encontrava no Nilo Branco, um bom grupo de missionários viajava num vapor do Lloyd, pelo Mediterrâneo, rumo ao Egipto. Constituíam-no quatro sacerdotes, um professor e nove operários, todos do Tirol. Ardiam no desejo de se sacrificarem pelo bem de Deus e pela salvação dos negros da África Central.

São estes os nomes dos sacerdotes, provenientes os primeiros três da diocese de Bressanone e o último da de Trento:



1.o Rev.do P.e José Staller

2.o Miguel Wurnitsch

3.o Francisco Morlang
...................................diocese de Bressanone

4.o Luís Pircher, ...........de Leifers – Bolzano (Trento)




[2113]
Infelizmente um deles, o rev.do P.e Staller, foi obrigado a voltar à Europa por recomendação dos médicos, por causa de uma grave doença. Outro, o rev.do P.e Wurnitsch, morreu umas horas depois de sair de Korosko, no deserto, sobre a areia, e foi enterrado no começo do deserto de Korosko. Os demais felizmente chegaram a Cartum. Morlang foi enviado para as terras dos Bari e o P.e Pircher para as dos Kich, para a estação de Santa Cruz. Este era uma alma pura, um verdadeiro imitador de S. Luís Gonzaga. Morreu demasiado cedo, poucos dias depois de chegar ao seu destino, em 1856. Os outros, os operários, foram destinados à estação de Cartum. Havia entre eles verdadeiros cristãos que prestaram grandes serviços à missão com o seu bom exemplo e uma infatigável actividade na construção da casa por amor a Deus. Citaremos apenas os seguintes:

Sr. Fernando Badstuber (ebanista-carpinteiro), morto alguns meses depois

Sr. António Vallatscher (tecelão, sapateiro, soldador)

Sr. Gottlieb Kleinheinz (camareiro e cozinheiro)

Sr. João Juen (pedreiro e canteiro)

Sr. João Fuchs (sapateiro, etc.)




[2114]
Distinguia-se especialmente o professor J. Dorer, sobre o qual, de Cartum, o vigário-geral, P.e Gostner, escreveu, após a sua morte: «Para as nossas crianças, Dorer era um pai prudente, uma mãe terna, um sábio professor; numa palavra: todo em tudo. O seu carácter moral pode-se resumir nesta expressão: um anjo em carne humana.»

O pró-vigário apostólico também visitou em 1856 os institutos de Santa Cruz e dos Bari. A 1 de Junho chegou com o Stella Mattutina a Gondokoro. Os alunos saudaram-no com cantos devotos na língua dos Bari, que se popularizaram em toda a tribo. Aí encontrou o P.e Überbacher, que tinha trabalhado com uma dedicação e um proveito admiráveis e que ficou feliz por receber um novo companheiro, o P.e Morlang.


[2115]
Quase ao mesmo tempo o rev.mo P.e Gostner, vigário-geral, acompanhou ao Egipto oito dos alunos melhores e mais inteligentes da escola de Cartum, os quais deviam ser levados para a Europa para receberem uma educação superior. Chegados a Alexandria no dia 1 de Setembro, encontraram o prof. Mitterrutzner, que conduzia um novo grupo de missionários da Alemanha.

A 4 do mesmo mês, o dr. Mitterrutzner, renunciando com uma abnegação admirável à visita dos monumentos e da clássica terra do Egipto, voltou para a Europa com os referidos alunos de Cartum, dois dos quais, os brilhantes Alexandre Dumont e André Scharrif, foram alojados no Colégio da Propaganda de Roma; de outros dois tomou conta o infatigável e santo amigo da missão Lucas Jeram, de Laybach (que por duas vezes tentou chegar a Cartum, porém, por causa de terríveis doenças, a primeira vez teve de regressar do Cairo e a segunda, de Assuão), e quatro foram para Verona, para o Insto. Mazza. São estes os nomes dos novos missionários chegados:

Rev.do P.e António Kaufmann

Rev.do P.e José Lanz
............................................do Tirol
Rev.do P.e Lourenço Gerbl, .....de Wasserburg, na Baviera




[2116]
Havia também quatro operários leigos tiroleses. Encontraram no vigário-geral um condutor expedito, sob cuja direcção chegaram a Korosko em meados de Outubro. Aí surgiu-lhes uma contrariedade inesperada: sua alteza real Said Paxá, vice-rei do Egipto, fez uma viagem ao Sudão e durante muitos meses todos os camelos ficaram reservados para ele e o seu numeroso séquito, para a viagem através do deserto. Somente a 7 de Janeiro de 1857 Gostner pôde deixar Korosko e em meados de Março chegou a Cartum.

Os padres Kaufmann e Lanz receberam a sua destinação: o primeiro foi para Gondokoro, o segundo para Santa Cruz. O piedoso, fervoroso e jovem missionário sr. Gerbl ficou em Cartum. Pertencente a uma família riquíssima, foi o primeiro fundador na Alemanha da Sociedade de Jovens Estudantes, que ainda está muito difundida e que nos lugares onde se constituiu fez um grande bem, sobretudo quanto a preservar os estudantes da universidade do veneno do racionalismo e a fazê-los praticar as normas da nossa santa religião.


[2117]
O P.e Gerbl chegou a Cartum, onde sempre gozou de boa saúde, com a idade de 24 anos. A 11 de Junho de 1857 celebrou missa na igreja da missão, visitou os doentes, e ao meio-dia comeu. Na Ars (três horas da tarde) sofreu um ataque de febre muito violento, enquanto passeava pelo jardim de Cartum com Francisco Mustafá, discutindo sobre o modo de educar a juventude africana. Na noite desse mesmo dia, o pio Gerbl estava já enterrado.

O dr. Knoblecher acompanhou pessoalmente Kaufmann e Lanz com o Stella Mattutina ao seu lugar de destino. Por essa altura preparava-se em Verona a expedição de P.e Nicolau Mazza.

Este venerável fundador, depois do regresso de P.e Beltrame a Verona, tinha preparado cinco sacerdotes e um excelente e devoto leigo para a sua empresa.

Eis aqui os seus nomes:


[2118]
P.e João Beltrame, de 35 anos, de Valeggio

P.e Francisco Oliboni, professor de 34 anos, de S. Pietro Incariano

P.e Alexandre Dalbosco, de 27 anos, de Breonio
..........................................................................da diocese de Verona

P.e Ângelo Melotto, de 29 anos, de Lonigo, diocese de Vicenza

P.e Daniel Comboni, de 26 anos, de Limone, diocese de Bréscia

Sr. Isidoro Zilli, de 37 anos, de Trieste, serralheiro e mecânico



Todos esperavam há tempos pela feliz altura de abandonarem a sua pátria para irem para a África e morrer por Jesus Cristo. Porém, havia um terrível obstáculo: a falta de dinheiro. O dr. Mitterrutzner, à sua passagem por Verona no dia 23 de Agosto de 1856 na ida para o Egipto, só parou no instituto por breves momentos. Porém, ao voltar de Alexandria no dia 12 de Setembro desse mesmo ano com os quatro alunos da escola de Cartum, de que falámos, deteve-se lá por alguns dias.

Na sua convivência durante esse tempo com os 34 sacerdotes que então havia no instituto, apercebeu-se de que muitos deles lhe perguntavam amiúde pela missão e de que ardiam no desejo de a ela se consagrarem.


[2119]
Sondou bem o terreno e não compreendeu por que motivo não partiam para a África, uma vez que o desejavam não menos que o fervoroso fundador. Na noite de 14 de Setembro tomou à parte P.e Beltrame para lhe dirigir algumas perguntas sobre a questão. Beltrame explicou ao seu interlocutor quanto desejava saber e declarou que no dia em que tivessem alguns meios, partiriam todos. Guardando o segredo, Mitterrutzner regressou ao Tirol com o firme propósito de se dirigir ao alto comité de Marienverein, em Viena, para tratar de pôr à disposição de P.e Nicolau Mazza os meios necessários para fundar a sua obra na África Central.

Depois de muitas dificuldades, tanto por parte do comité para conceder a ajuda como por parte de P.e Nicolau Mazza para a aceitar, a mediação de Mitterrutzner permitiu dar por acertado o assunto em meados do mês de Julho de 1857.

A sociedade de Viena concedeu os meios pecuniários ao Insto. Mazza para que se estabelecesse na África Central e P.e Nicolau Mazza preparou em seguida a expedição.


[2120]
A 3 de Setembro Suas Altezas Imperiais Fernando Maximiliano e a sua jovem esposa, a arquiduquesa Carlota, filha do rei da Bélgica, que mais tarde ascenderiam ao trono imperial do México, honraram-nos com a sua visita e entretiveram-se com os nossos hora e meia, prometendo ir a Cartum dentro de seis anos (assim mo disse o arquiduque).

No dia 5 a expedição saiu para Trieste, onde aumentou ainda com quatro piedosos operários, e a 15 de Setembro, com o vapor Bombay, chegámos a Alexandria.

Três do grupo – Melotto, Dalbosco e eu – visitámos Jerusalém e os Lugares Santos. Em Novembro abandonámos todos os Cairo e, pelo Alto Egipto e pelo deserto, dirigimo-nos à África Central. O dr. Knoblecher acolheu os novos missionários de Verona com uma manifestação de afecto paternal e com toda a alegria do seu coração. Ordenou que se estabelecessem na estação de Santa Cruz, em território dos Kich, de onde poderiam explorar a pouco e pouco as diversas tribos dos negros para escolher o lugar onde fundar a primeira casa da sua santa empresa.

Como é minha intenção preparar à parte um relatório sobre as perigosas viagens e as fadigas do nosso apostolado na África Central, não saio agora do plano que aqui me propus de escrever uma simples história abreviada do vicariato apostólico da África Central. Por isso vou cingir-me estritamente ao tema deste breve escrito.


[2121]
Tendo o pró-vigário apostólico verificado que em 1857 se tinham registado menos mortes nas três estações que nos anos anteriores, e animado pela nova expedição de Verona, que reforçava a missão, decidiu empreender uma viagem à Europa. A sua intenção era falar do vicariato à Propaganda de Roma, fazer acertos para o futuro e sobretudo restabelecer a sua saúde, de que se tinha ressentido consideravelmente por causa das perigosas e repetidas viagens, dos sofrimentos espirituais e corporais, e ainda mais das temíveis doenças que tinha suportado.

Por isso, encarregou o P.e Mateus Kirchner de visitar as estações do Nilo Branco e de acompanhar os missionários do Insto. Mazza ao lugar de destino.


[2122]
Deixando em Cartum o nosso querido irmão P.e Dalbosco na qualidade de procurador, com a bênção do vigário-geral, Gostner, afastámo-nos daquela cidade pelo Nilo Branco a bordo do Stella Mattutina.

Favorecidos pelo vento do Norte, aquele famoso pequeno barco avançava à velocidade de um barco a vapor contra a corrente do rio misterioso. Fomos deixando para trás os muito extensos territórios dos Hassanieh, dos Bagara, dos Aburof, dos Schelluk, dos Dincas, dos Yangue e de outras tribos.

Nunca passava um dia sem que verificássemos com os nossos olhos o deplorável estado e a desditosa situação dos pobres negros, que me não é possível descrever aqui. Nunca passava uma noite sem que ouvíssemos os leões e sem que víssemos grandes grupos de elefantes, de hipopótamos, de tigres, de hienas, de leopardos e de outros animais selvagens.


[2123]
Depois de suportar muitas fadigas e doenças, chegámos a 14 de Fevereiro à estação de Santa Cruz, onde o bom e empreendedor José Lanz, ajudado pelos leigos Glasnik e Albinger, era o único missionário que tinha sobrevivido. Mozgan, esgotado pelas fadigas e atingido por uma febre perniciosa, havia exalado poucos dias antes o último suspiro.

Enquanto o Stella Mattutina levava Kirchner ao país dos Bari, todos nós (o superior P.e Beltrame, Oliboni, Melotto, Comboni e Zilli) nos instalámos numa pequena cabana que até então tinha servido para guardar vacas e que tinha uma altura de três metros e um diâmetro de quatro. Todos nós utilizávamos a modo de cama uma tábua coberta com uma manta que tínhamos trazido do Cairo, excepto P.e Oliboni que dormia apoiado numa pequena caixa. Não havia nada naquela terra.


[2124]
Antes de tudo, preocupámo-nos em aprender a língua local, o dinca, que, segundo a informação obtida, era a mais difundida entre as tribos do Nilo Branco e das regiões limítrofes.

O primeiro que se ocupara daquela língua fora o dr. Knoblecher, mas até então só tinha escrito umas seiscentas palavras para compreender e exprimir as coisas de primeira necessidade. Depois dele foi Mozgan quem se dedicou a aprender essa língua tão importante; porém, apenas deixou a Lanz a herança de alguns diálogos e uma pequena colecção de seiscentas palavras que, à nossa chegada à terra dos Kich, constituíam o mínimo para fazer-se compreender pelos indígenas nas necessidades mais urgentes. Portanto, pusemo-nos com uma aplicação constante e assídua a estudar essa língua.

Em primeiro lugar, tomámos o dicionário italiano e transcrevemos mais de cinco mil palavras, as mais correntes e úteis para o nosso ministério. Depois, com a ajuda dos alunos da missão e sobretudo do menino António Kacional e da pequena Catarina Zenab – da etnia dos Dincas, mas que também sabia bem o árabe, língua que nós conhecíamos –, no espaço de dez meses conseguimos (Lanz, Beltrame, Melotto e eu) compor um dicionário italiano-dinca de três mil palavras, uma pequena gramática, diálogos mais comuns, e um volumoso catecismo que continha matérias dos dogmas e da moral católica suficientes para exercer o ministério apostólico entre os nossos muito queridos indígenas.


[2125]
Fizemos estudos nos povoados onde se falava o dinca e conhecemos os costumes, os usos, as crenças, os erros e as superstições dos nativos. Para dar uma mínima ideia disto (porque seria o tema de um tratado), direi que os negros daqueles lugares são, em geral, completamente pagãos e feiticistas. Crêem que há um Ser Supremo, a quem chamam Dendid, que significa grande entendedor; porém, falando da criação, dizem que foram criados como o elefante, como a vaca ou como a lua.

Há tribos que crêem que os brancos foram criados na água e os negros no carvão, e isto – dizem – explica a razão pela qual eles são negros. Há outras que afirmam que os brancos falaram com Dendid, mas que os negros não falaram com ele.

Podemos assegurar que a religião de Jesus Cristo nunca penetrou nestas tribos, porque jamais encontrámos a menor tradição das verdades do Novo Testamento. Pelo contrário, conservam muitas tradições do Antigo Testamento, como os sacrifícios, a lei de Talião, os anjos e os demónios.


[2126]
Chamam ao anjo Achiek e ao demónio Achiok. Considerando estas palavras, que não variam nada nas consoantes, mas apenas na vogal da segunda sílaba, pode-se concluir que os Dincas crêem, como nós, que o anjo e o diabo possuem a mesma natureza. Fazem sempre sacrifícios e para isso têm umas cerimónias muito interessantes; mas nunca sacrificam a Deus, nem lhe prestam nenhum louvor, porque não precisa de ser solicitado pelos homens para fazer o bem: ele fá-lo por si mesmo. Ao contrário, oferecem sempre sacrifícios ao diabo (Achiok) para o aplacar e ganhar os seus favores, impedindo que faça mal aos homens.

Fomos testemunhas de inumeráveis sacrifícios. Eis aqui um: entre Outubro e Novembro de 1859 viu-se um cometa na África Central, tal como na Europa. Como eles acreditavam que aquele objecto celeste tinha sido mandado ao céu pelo Diabo, os chefes e os tiets (adivinhos e bruxos) reuniram-se para discutir que fazer naquela sinistra circunstância. Decretaram que se sacrificassem oito bois ao diabo. De facto, mataram solenemente os oito bois e, depois de muitas cerimónias e cantos, ofereceram essas vítimas a Achiok.


[2127]
O cometa, porém, mostrava-se cada vez mais impressionante. Então, numa assembleia, decidiram queimar uma grande quantidade de prados e pasto. Nós notámo-lo bem uma noite, em que se via a luz do incêndio como se fosse a do dia; perguntámos aos indígenas qual a razão daquilo. «É para queimar o cometa», responderam. «E por que quereis queimá-lo?» – insisti «Porque o cometa – responderam – é presságio de desgraças e de desastres. Mas também desta vez não conseguiram queimar o cometa. Um dia vimos uma multidão armada de lanças e de flechas envenenadas, que, bem ordenada numa planície, atirava contra o cometa. À noite, perguntei a um chefe por que disparavam as flechas. «É para matar o cometa» – respondeu-me. Quando, seguindo o seu curso, o errante objecto acabou por desaparecer, os indígenas fizeram uma grande festa: cantaram, bailaram e mostraram o seu agradecimento, acabando por dizer que Achiok (o Diabo) tinha ficado apaziguado e satisfeito.


[2128]
Aquele que faz os sacrifícios, ou seja, o ministro, é uma personagem muito respeitada entre os negros. Chama-se tiet, bruxo, e reúne as funções de sacerdote, médico e sábio. Quando há um doente e ele é chamado, em primeiro lugar deve declarar se o doente se vai curar ou se vai morrer. Se ele entende que vai haver cura, o doente é rodeado de muitos cuidados e muitas vezes recupera a saúde. Se, pelo contrário, declara que o doente vai morrer, então este é abandonado imediatamente, de modo que, se não morre pela violência da doença, sucumbe pelo abandono de todos. Ainda que os negros do Nilo Branco estejam menos avançados no progresso que os nossos primeiros pais no tempo de Adão e Eva, nas regiões onde não penetraram nem os muçulmanos nem os europeus têm costumes simples e puros. De facto é desconhecida a depravação. Em pouco tempo estas gentes se converterão ao catolicismo, se for possível continuar neste ministério.


[2129]
Os territórios destas tribos são povoados também por numerosas manadas de elefantes. Não passa uma noite sem se ouvir o espantoso rugido do leão, e as panteras, os leopardos e sobretudo as hienas são quase tão comuns como os cães na Europa. Encontram-se em grande quantidade as serpentes mais colossais, assim como crocodilos, hipopótamos, escorpiões muito maiores que os nossos, etc. Como se vê, todas estas circunstâncias concorrem para tornar muito perigosa a permanência dos missionários.

Apesar de tudo, nós éramos felizes por podermos ensinar àquela gente os preceitos e a fé do Evangelho. O toro de uma árvore era o nosso púlpito para pregarmos e estava sempre rodeado de chefes e negros nus, sempre armados de lanças e flechas envenenadas. Escutavam a Palavra de Deus com uma avidez extraordinária e uma constância que permitiam ter muita esperança. À hora de oferecer o Santo Sacrifício, a nossa igreja era constituída ora por uma pequena tenda ora por uma estreita cabana de cinco pés de altura, e às vezes celebrava-se ao pé de uma grande árvore. No país dos Ghog levantámos uma cruz de trinta pés.


[2130]
Era a primeira vez que se pregava o Evangelho naquelas terras. Tínhamos dito aos indígenas que a cruz era o sinal da nossa salvação e que eles deviam acorrer lá, a ela, nas suas necessidades. Fizeram-no por muito tempo e pode bem ser que ainda o façam no presente. Contudo, como não estávamos seguros de que o nosso ministério pudesse continuar, devido à morte de tantos missionários, não julgámos prudente administrar o baptismo aos que no-lo pediam, depois de ter recebido uma preparação conveniente.

Quando os missionários, tanto europeus como indígenas, puderem estabelecer-se estavelmente entre os africanos, as tribos da África Central entrarão no redil de Jesus Cristo.


[2131]
Na tribo dos Kich construímos até uma igreja. Custou muito suor ao infatigável Lanz e a todos os missionários. Como não havia pedras naquela zona, servimo-nos de madeira de ébano, de que existem imensos bosques. Cravámos no chão paus de ébano e com ladrilhos feitos de barro e conchas do rio construímos com nossas mãos a casa de Deus, de doze metros de largura por vinte e dois de comprimento, solidamente coberta de palha, tal como se cobrem as cabanas da região.

A igreja, que era uma maravilha para os negros, tinha dois altares, nos quais celebrávamos o divino sacrifício e as cerimónias das festas do ano com uma alegria não inferior ao júbilo que a piedade católica mostra nas magníficas catedrais da Europa. Os chefes dos negros acorriam a ela de longe e permaneciam lá com um respeito edificante.


[2132]
Mas que duras provas preparava a Providência aos pobres missionários da África Central! O rev.do P.e Kirchner, ao chegar connosco a Santa Cruz, como dissemos, tomou conhecimento de que Bartolomeu Mozgan, responsável dessa estação, acabara de morrer.

Chegado à tribo dos Bari, achou morto também o responsável de Gondokoro, Überbacher. Depois de nomear Morlang superior desta estação, regressou à estação de Santa Cruz, encontrando morto também o nosso irmão P.e Francisco Oliboni. Este venerável missionário, que durante dez anos tinha sido professor no Liceu Imperial de Verona, era um homem de eminente piedade e sabedoria.


[2133]
Para falar dele em poucas palavras, direi que atravessou o deserto em vinte e seis dias e durante esse tempo, debaixo de um calor terrível, suportou um jejum e uma abstinência muito rigorosos, porque nunca comia nem bebia mais que uma só vez ao dia, ao pôr-do-sol. Além disso, a fim de se preparar para a festa do Natal no deserto, ficou sem tomar nada, nem sequer água, desde o meio-dia de 23 de Dezembro até às 10 da manhã de 25, quer dizer, quarenta e cinco horas seguidas, depois de ter passado dezoito dias sobre o camelo.

À parte as suas orações particulares, que prolongava por muitas horas do dia, recitava todas as noites de cinquenta a sessenta salmos de David, com a respectiva meditação, e durante a sua estada entre os Kich nunca se deitava, mas dormia sentado num banco ou numa pequena cadeira, apoiando o braço num caixote. Somente se deitou no dia 19 de Março para morrer a 26 do mesmo mês. Eu tinha-o sangrado três vezes; estava melhor no dia 24, mas uma terrível febre venceu-o. Nos últimos momentos dirigiu-nos uma terna recomendação, encorajando-nos a permanecermos constantes até à morte pela conversão dos pobres negros. Cheio de fé e abraçando o crucifixo, entregou o seu espírito a Deus.

Chegado a Cartum, Kichner encontrou P.e Alexandre Dalbosco à frente da estação, porque o rev.mo vigário-geral, Gostner, tinha falecido. Com este valoroso missionário o vicariato da África Central tinha perdido um grande apoio.


[2134]
Tendo sofrido estas graves perdas, o rev.do Kirchner apressou-se a informar o pró-vigário apostólico, que tinha ido à Europa; porém, uma semana depois chegava a Cartum a notícia de que também o dr. Knoblecher tinha morrido em Nápoles. Na verdade, quando o pró-vigário deixou a missão em Outubro de 1857 para se dirigir à Europa, caiu doente na viagem pelo Nilo e, já no Cairo, encontrou a temperatura muito fria, o que contribuiu para agravar a doença, vendo-se obrigado a ficar sempre no quarto do convento dos padres franciscanos.

Em Alexandria sentiu-se ainda pior. Na esperança de encontrar na Itália meridional meios mais seguros para se restabelecer, a cinco de Janeiro embarcou num navio que se dirigia para Nápoles. O embaixador da Áustria junto do rei das Duas Sicílias, o cavalheiro De Martini, visitou-o no hotel, onde tinha sofrido um forte ataque de tosse e recebido os cuidados do dr. Zimmermann. Por mediação do núncio apostólico, mons. Ferrari, o pró-vigário obteve um benévolo acolhimento no convento dos padres agostinhos, que lhe prodigalizaram grandes atenções.


[2135]
No rev.mo P.e A. Eichholzer, confessor da rainha, encontrou um verdadeiro amigo. A instâncias deste, o sr. Lucarelli, médico de renome, pôs-se a tratá-lo com grande dedicação. Porém, o doente, com uma violenta tosse, febre contínua e fortes dores no peito, piorava de dia para dia. Bem cedo foi obrigado a ficar de cama; cuspiu muitas vezes sangue e recebeu o sacramento dos enfermos. Contudo, os cuidados solícitos, assíduos e inteligentes do médicos conseguiram em dois meses fazê-lo entrar numa convalescença que dava esperança de cura.

Como o Papa Pio IX tinha declarado por essa altura um jubileu, o pró-vigário quis ganhar as correspondentes indulgências. Pelo que pediu ao seu confessor, que era o P.e Ludovico, reitor do convento, que lhe concedesse um retiro de dez dias, o qual foi para ele de grande consolação.


[2136]
«Quando amiúde o visitava – escreveu para a Alemanha esse padre – queria que lhe falasse somente de temas divinos. Confessou-se com frequência e recebeu muitas vezes a comunhão. A única coisa de que se lamentava era não poder oferecer o santo sacrifício da missa». Talvez pela sua aplicação aos exercícios do retiro, caiu numa doença mortal. Deus chamava-o para junto de Si, para dar ao Seu grande servo a recompensa digna dos seus grandes méritos. Quarenta horas antes da sua morte, estando só no quarto, quis seguir o exemplo dos grandes santos e estender-se no chão, esperando nesta posição o seu fim. O barulho da sua queda alarmou os religiosos, que acorreram, meteram-no na cama e ordenaram-lhe que se submetesse à vontade de Deus e permanecesse no leito.

Na noite antes da sua morte, mandou chamar o P.e prior. Com dores indescritíveis pediu-lhe que tirasse do seu baú e acendesse o círio que tinha recebido na Igreja do Santo Sepulcro de Jerusalém e que conservava desde 1847, rogando-lhe que recebesse o último acto de consagração da sua vida a Deus. Ele mesmo tomou nas suas mãos o crucifixo e fez em alta voz o sacrifício da sua vida a Deus Criador em expiação dos seus pecados. Estas palavras pronunciou-as com tal fervor, que o prior e todos os padres não puderam conter as lágrimas.


[2137]
A 13 de Abril de 1858, pelo meio-dia, o pró-vigário Knoblecher expirou aos 38 anos, 9 meses e 7 dias (tinha nascido a 6 de Junho de 1819). O seu corpo foi exposto na igreja dos Agostinhos. O Alto Comité de Viena honrou-o nessa cidade com um funeral. A que presidiu o núncio apostólico, mons. De Luca. Os restos mortais foram depois trasladados para Laybach, onde lhe ergueram um monumento imponente. Ele deixou muitos escritos que enriquecem a geografia, a botânica, a história natural e a filologia das línguas do Nilo Branco. As missões perderam com Knoblecher um campeão e a Igreja Católica um dos seus mais dignos filhos e apóstolos.


[2138]
Quando o pró-vigário Knoblecher empreendeu a sua viagem à Europa em 1857, as estações da missão estavam florescentes. Tinham-se criado escolas em Cartum, Santa Cruz e Gondokoro e havia um pessoal apostólico muito capaz, que trabalhava cheio de entusiasmo e com total entrega por amor de Deus e dos pobres negros.

Os missionários estavam repartidos pela parte oriental da África Central, entre o Trópico do Câncer e o equador. Porém, no ano seguinte, como dissemos, a Missão recebeu os mais atrozes golpes nas suas três Estações e sobretudo em Cartum, onde o vigário-geral Gostner, quando da morte de Knoblecher, tinha agido com energia e zelo apostólico, de tal modo que na Europa pensou-se com alívio que Gostner seria capaz de suster a obra. A Propaganda apressou-se a nomeá-lo responsável desta grande missão; porém, ele não chegaria a receber essa notícia, porque três dias depois da morte de Knoblecher, uma febre violenta arrebatava-o deste mundo na idade de 36 anos, em Cartum, a 16 de Abril de 1858.


[2139]
Quando o prefeito da S. C. da Propaganda, o cardeal Barnabó, se inteirou de todas estas perdas e sobretudo da morte de Gostner, disse categoricamente: «Depois de tantas perdas, depois de tantos sacrifícios, é preciso fechar aquela missão.» O ilustre professor Mitterrutzner, a quem o cardeal tinha dirigido estas palavras no dia 6 de Setembro de 1858, permitiu-se fazer saber e observar a Sua Eminência que, se as perdas eram grandes e igualmente grandes os sacrifícios, havia naquela missão muitos homens valorosos e capazes de continuar a obra começada e que também se poderiam encontrar outros no futuro. Os sacrifícios tinham sido muitos, naturalmente, mas os sucessos não podiam ser desprezados, pois existiam três escolas florescentes nesta missão e bom exemplo disso eram exactamente os alunos do Colégio da Propaganda André Scharrif e Alexandre Dumont.

Uma comunicação escrita de Sua Eminência fazia os maiores elogios quanto ao seu talento, piedade e juízo. Este aspecto positivo foi a causa pela qual se deixou continuar a missão e se passou a procurar um novo pró-vigário.


[2140]
Tanto por parte da Propaganda de Roma, como por parte do comité de Viena, a eleição recaiu no venerável missionário Mateus Kirchner. Este encontrava-se em Cartum, quando lhe chegou a carta da sua nomeação como responsável do vicariato. Homem de grande humildade e assustado pelas enormes dificuldades da santa empresa, decidiu-se a aceitar unicamente a direcção da missão depois de expor à Propaganda todos os obstáculos que via para o bom cumprimento do seu dever, a fim de que ela dispusesse as coisas para o maior bem da missão.

Tendo posto à frente da estação de Cartum o piedoso P.e Alexandre Dalbosco, a quem nomeou também seu procurador para as missões do Nilo Branco, Kirchner partiu para a Europa.

Chegado a Roma, depois de larga resistência, aceitou o duro cargo de pró-vigário apostólico da África Central. Seguindo o conselho da Propaganda, com o fim de preservar a vida dos missionários, elaborou o projecto de fundar uma estação num ponto do vicariato onde o ar fosse bom e o clima bem suportado pelos europeus.


[2141]
Nessa estação deviam reunir-se todos os missionários para restaurar a saúde e descansar das enormes fadigas do seu apostolado. As estações católicas de Santa Cruz e de Gondokoro deviam ser confiadas, durante a ausência dos missionários, à guarda de um indígena seguro e fiel, e somente uma vez ao ano, na época do vento do Norte, em Novembro, alguns missionários deviam deixar a estação em projecto para visitar as estações católicas de Cartum e do Nilo Branco e resolver os seus assuntos. A Propaganda comprometia-se a fornecer o dinheiro necessário para a fundação desta estação, para a qual se tinha escolhido o povoado de Schellal, que fica situado em frente da ilha de Filé, a uns cem quilómetros de Cartum e vinte de Assuão, no limite territorial entre o Egipto e a Núbia, mais acima da primeira catarata, a 24o 11’ 34” de lat. norte e a 30o 16’ de longitude este segundo o meridiano de Paris.

Ao regressar a África, o novo pró-vigário levou consigo três padres da Ordem de S. Francisco de Assis: o P.e João Ducla Reinthaller, de Graz, e dois italianos da província de Nápoles, um dos quais morreu já no Cairo. O rev.do P.e Luís Vichweider, nascido em Virgl, da província tirolesa de Bolzano e da diocese de Trento, partiu da Europa em Junho de 1858, e encontrava-se já em Gondokoro a 25 de Janeiro de 1859.


[2142]
Enquanto os missionários de P.e Nicolau Mazza trabalhavam muito activamente no vicariato da África Central, tanto em Gondokoro, onde P.e Alexandre Dalbosco dirigia a estação e desempenhava as funções de procurador-geral do vicariato, como em S. Cruz, onde P.e Beltrame, Melotto e Comboni, após terem aprendido a língua dinca, se ocupavam da instrução dos Kich e exploravam com muito cuidado as regiões limítrofes, onde se falava o dinca, Sua Excelência o card. Barnabó exprimiu ao pio fundador P.e Nicolau Mazza o desejo de ceder aos seus sacerdotes missionários a estação de Santa Cruz, pondo assim à disposição do pró-vigário apostólico para as outras estações o excelente missionário José Lanz, de modo que mais tarde todos os demais fossem destinados a esta estação. Isto era o que escrevia de Verona P.e Nicolau Mazza no dia 8 de Março de 1859:


[2143]
«Meus queridos filhos, Sua Em.a o card. Barnabó, prefeito da S. C. da Propaganda, de Roma, escreveu-me a dizer que seria seu desejo confiar aos meus missionários a estação de Santa Cruz e encomendá-la também aos meus cuidados e que me empenhe o mais possível em educar nos meus institutos africanos de Verona o maior número de jovens negros de ambos os sexos para fazer deles professores e professoras, a fim de poder formar com esse pessoal dois colégios na estação principal de Cartum, um masculino e outro feminino. A essa carta respondi que aceito com muito gosto a estação de Santa Cruz e que farei todo o possível para prover de mestres e mestras negros os colégios de Cartum.


[2144]
Parece-me que tais ideias vieram de Deus. Desta maneira, a estação de S. Cruz será para nós a principal e com um centro donde a pouco e pouco se poderá penetrar nas tribos dos Dincas. Os dois colégios que fundarem em Cartum os professores educados por nós ser-nos-ão benéficos, porque, encontrando-se neles alunos nossos, estes sentir-se-ão, sem dúvida, muito unidos à missão dos Dincas e farão o bem espiritual e temporal.

Para mim e para vós, meus queridos filhos, será uma grande alegria poder agir com todo o agrado de Roma, que é nossa única e caríssima mãe. Parece-me, além disso, que provendo nós de professores e professoras os colégios de Cartum e educando negros e negras, a estação de Santa Cruz e a missão dos Dincas não deixarão de obter vantagens, porque estou certo de que se fará uma justa distribuição dos professores e professoras, de maneira que, sobretudo os originários de Santa Cruz e dos Dincas, serão atribuídos a essas missões.»


[2145]
Nós ignorávamos completamente estas disposições da Propaganda e do nosso superior geral. Por isso, seguindo sempre as instruções recebidas anteriormente, dedicámo-nos a pregar o Evangelho e a visitar as zonas onde se falava a língua dinca. De facto, verificámos que esta língua estava muito difundida na África Central, já que se falava nos seguintes lugares:



À direita do Nilo Branco:

1.o Nas tribos dos Dincas, entre os 9o e 12º lat. N., a setentrião do rio Sobat

2.o Na tribo dos Bor, entre os 6o e 7o lat. N.

3.o Na tribo dos Tuit, a norte dos Bor

4.o Na tribo dos Donguiol

5.o Na tribo dos Anharkuei

6.o Na tribo dos Abuyó

7.o Na tribo dos Ahuer

8.o Na tribo dos Abialanhe

À esquerda do Nilo Branco:

9.o Na tribo dos Eliab, para baixo do 6o lat. N.

10.o Na tribo dos Kich, entre os 6o e 8o lat. N.

11.o Na tribo dos Atuot, a sueste dos Kich

12.o Na tribo dos Gogh, a noroeste dos Atuot

13.o Na tribo dos Arols, a norte dos Gogh

14.o Na tribo dos Jangue, que vivem na margem esquerda dos Schelluk e que se estendem muito para o interior.


[2146]
15.o Na grande tribo dos Nuer, a norte dos Kich, que se estende amplamente pelas duas margens do Nilo Branco e tem língua própria, porém, entende e fala o dinca.

16.o A poderosa e formidável tribo dos Schelluk, situada entre os 9o e 12o lat. N., que tem a sua própria língua, porém,, conhece e usa também a dos Dincas.

17.o As tribos situadas no interior da península de Sennar, no paralelo dos montes Berta, as quais falam o dinca:

a) a tribo dos Guiel

b) a tribo dos Yom

c) a tribo dos Beer

18.o Muitas outras tribos situadas na parte superior do rio Sobat e do Bahr el-Ghazal, que falam também o dinca. Asseguraram-me, além disso, que falavam esta língua outras tribos do interior até ao lago Chade e ao vasto império de Bornu, mas ignoro completamente os seus nomes.

O que havia de positivo era que o infatigável P.e Beltrame, depois de regressar da Europa, além de estudar e corrigir muito do que tinha escrito sobre esta língua, corrigiu bem a gramática e o dicionário. Porém, quem prestou um serviço imenso às missões da África Central foi o ilustre Mitterrutzner. Este célebre poliglota, com a sua profunda ciência filológica, com os escritos dos missionários e com a ajuda de dois rapazes, um dinca e outro bari, publicou um par de obras muito importantes sobre estas duas línguas, as mais necessárias para a missão da África Central:



Die Dinka-Sprache in Zentral-Afrika

Von J. C. Mitterrutzner, Brixen 1856

e

Die Sprache der Bari in Zentral-Afrika

Grammatik, Text und Wörterbruch

von J. C. Mitterrutzner, Brixen 1867




[2147]
Depois das nossas longas e interessantes explorações e após enormes fadigas e penosas doenças, apressámo-nos a regressar a Cartum. Chegados em frente a Denah, que nós com Kotschy pensávamos ser capital dos Schelluk, contaram-nos que o rei tinha sido estrangulado por uns chefes parentes seus, porque entre os Schelluk era vileza e uma vergonha morrer de morte natural. Ao fim de dois meses ainda permanecia encerrado na sua cabana, por enterrar, porque o seu sucessor, que devia ser o filho do seu irmão chamado Gueu, ainda não tinha sido eleito.

A eleição dependia do povo e somente depois da chegada ao poder do seu sucessor o rei defunto devia ser sepultado. Asseguraram-nos que o rei recebia como imposto e como retribuição a terça parte dos bens arrebatados aos estrangeiros nos assaltos e nos roubos perpetrados pelos seus súbditos. Pelo que há que dizer que entre os Schelluk o banditismo e a rapina são favorecidos e estimulados pelo rei. É a única tribo de negros que tem esta lei.


[2148]
Parece-me que o motivo disto é que os Schelluk são o povo mais exposto aos ataques bárbaros dos núbios, que são seus vizinhos. Os núbios, os dongoleses, assaltam sobretudo os Schelluk para lhes roubar os seus filhos e filhas, que convertem no objecto do seu infame tráfico de escravos. As horríveis violências dos jilabas núbios irritaram tanto os Schelluk, que eles mesmos se tornaram cruéis para com os estrangeiros.

Depois de muito penar, chegámos a Cartum, onde o nosso querido companheiro P.e Ângelo Melotto, que tinha sido o anjo de sensatez e prudência na nossa pequena sociedade, esgotado pelas febres e fadigas expirou nos nossos braços no dia 26 de Maio de 1859, na idade de 31 anos.


[2149]
O pró-vigário apostólico, P.e Mateus Kirchner, chegou a Cartum resolvido a pôr em execução as novas disposições sobre a maneira de desenvolver a actividade futura dos missionários, conforme tinha acordado com a Propaganda. Antes de se dirigir ao Egipto para implorar de S. A. o vice-rei a concessão de um terreno em Schellal para construir a nova estação, o pró-vigário pediu a P.e Beltrame que fosse ao Nilo Branco buscar os missionários, que trouxesse os alunos negros que a prudência aconselhasse e que retirasse das estações todos os objectos que considerasse úteis para serem levados para a nova casa.


[2150]
No primeiro de Dezembro, P.e Beltrame partiu de Cartum com o Stella Mattutina e três barcas. Chegado a S. Cruz, encarregou Kaufmann de preparar todas as coisas que havia para levar para Schellal, enquanto ele e P.e José Lanz se dirigiam à tribo dos Bari. Em Gondokoro depararam-se com o facto de que o piedoso e entusiasta P.e Wichweider tinha morrido a 3 de Agosto de 1859, depois de dois meses de febres intermitentes que se converteram em febre perniciosa.

Em poucos dias, as três barcas foram carregadas de objectos da missão; e, tendo confiado a casa a um dos chefes mais fiéis, chamado Medi, os missionários voltaram a Santa Cruz, onde tudo estava pronto para ser embarcado.

Quando os Kich se aperceberam que os missionários partiam, houve uma grande tristeza por parte de todos. Diziam: «Se nos abandonais, quem nos defenderá dos soldados dongoleses quando vierem matar-nos e roubar os nossos filhos e o nosso gado? Vós fostes até agora nossos pais, instruístes os nossos filhos e ensinastes a todos o caminho do céu, socorrestes os nossos pobres e curastes os nossos doentes. Quem virá consolar-nos e devolver-nos a saúde?» Os Kich, embora desconfiados por natureza, sabiam distinguir perfeitamente entre os missionários, que iam fazer-lhes bem, e os turcos e os traficantes, que iam a suas casas roubar-lhes o gado e o marfim, arrebatar-lhes as suas mulheres e os seus filhos e matá-los a eles. Só se acalmaram depois de os missionários lhes prometerem que voltariam no ano seguinte.

As quatro embarcações chegaram com os quatro missionários a Cartum, e pouco depois, o solícito e devoto P.e José Lanz, após quatro anos de laborioso apostolado, entregou a alma ao Criador.


[2151]
Entretanto, o pró-vigário tinha ido ao Cairo e obtido de S. A. Said Paxá um bom terreno em Schellal e mandado lá construir uma casa, que ficou terminada em pouco tempo. Instalados já nela os missionários do Nilo Branco e de Cartum, o Stella Mattutina, descendo o Nilo através das cataratas, após muitos obstáculos, conseguiu ancorar no Cairo, onde o vice-rei do Egipto deu à missão uma boa soma de muitos milhares de escudos para equipar a casa, o que foi feito em Abril de 1861.


[2152]
Abatido pelas novas perdas de missionários, preocupado com o futuro da missão e desejando ardentemente a salvação dos indígenas, o pró-vigário decidiu pôr em execução a ideia que tinha concebido havia algum tempo de confiar a missão a uma ordem colossal, que podia empreender e levar a bom termo esta obra tão importante e difícil. Por mediação do cardeal Barnabó, dirigiu-se ao rev.mo P.e Bernardino de Montefranco, geral dos Franciscanos, homem de eminente sabedoria e caridade, que de 1850 a 1856 tinha sido guardião da Terra Santa. O padre geral, bem disposto a participar nesta grande empresa, digna da sua gloriosa ordem, que deu à Igreja milhares de apóstolos e de mártires, e tendo visto os preparativos e as esperanças das obras para os negros, fundadas por aquele prodígio de caridade que era o rev.do P.e Ludovico de Casoria, recebeu com satisfação a petição de Kirchner.


[2153]
Para agradar ao Alto Comité de Viena, que tinha manifestado ao cardeal-prefeito da Propaganda o desejo de que os missionários de origem germânica fossem preferidos pelo facto de os donativos para a missão virem da Áustria, dirigiu de Roma uma circular, com data de 1 de Junho de 1861, a todas as províncias franciscanas da Alemanha, a fim de reunir um bom número de missionários da sua ordem para serem enviados para a África Central.

Esta é a circular:



(Original em latim; tradução do italiano)



Frei Bernardino de Montefranco

da Observância Regular de N. S. P.e Francisco, etc., etc.

Ministro geral da Ordem dos Menores, etc., etc.


[2154]
Aos superiores e aos subordinados sacerdotes das nossas províncias germânicas, que nos são tão queridos, saúde e seráfica bênção no Senhor.

Tendo nascido a instituição da nossa ordem seráfica do supremo ardor do ínclito fundador, o S. P.e Francisco, não só para do lodo dos pecados e dos vícios conduzir à graça da salvação, mas também e em maior medida para a conversão das gentes ainda envolvidas nas trevas de um erro mortal, por isso, nós, emulando o zelo do Santo Padre, dos santos sucessores seus filhos e dos nossos maiores, apenas fomos eleitos, ainda que indignos, para a direcção de toda a ordem, frequentemente e não com poucas cartas nos empenhámos em avivar nos nossos jovens sacerdotes, especialmente das províncias italianas, este espírito de verdadeira caridade.

Ora, por isso, tendo-nos escrito do Cairo o il.mo Mateus Kirchner, pró-vigário apostólico, a fim de que lhe pudéssemos dar uma ajuda, através dos nossos jovens sacerdotes, especialmente das províncias germânicas, no cultivo dessa nova mística vinha do Senhor, que até agora tem jazido afogada nos abrolhos e espinhos, nós desejamos acorrer em sua ajuda. Por isso, mediante esta breve carta, exortamos os nossos jovens filhos sacerdotes das mencionadas províncias, a fim de que, se algum deles se sentir chamado a esta grande obra de piedade, se apresse a escrever-nos e imediatamente lhe mandaremos as cartas de obediência, desde que tenhamos constatado nele os requisitos necessários para exercer uma tão grande tarefa, por meio das cartas testemunhais que os respectivos ministros provinciais nos devem mandar junto com a petição.

Entretanto, exortamos os rev.mos ministros provinciais a que não tentem impedir de modo algum que os tais jovens, que se mostrarem cheios do verdadeiro espírito de caridade pelas almas, se consagrem a esta missão.

Dado em Roma, em Ara Coeli, a 1 de Junho de 1861.



Frei Bernardino, ministro geral




[2155]
Em vista da resposta favorável do rev.mo P.e geral da ordem seráfica, no mês de Agosto o pró-vigário Kirchner, acompanhado do P.e Reinthaller foi a Roma, onde, de acordo com a Propaganda, confiou definitivamente o vicariato da África Central à ordem seráfica, sendo o rev.do P.e Reinthaller eleito superior da missão.

Obtida a autorização do rev.mo P.e geral, o novo representante da África Central percorreu as províncias do Véneto e da Áustria, munido de uma trintena de cartas obedienciais, assinadas pelo geral, a favor dos religiosos que desejavam consagrar-se ao apostolado entre os negros e conseguiu reunir um grupo de 34 missionários, entre sacerdotes e leigos. No mês de Novembro de 1862, chegou à nova estação de Schellal.


[2156]
Uma vez instalados no vicariato da África Central, os rev.dos padres franciscanos, todos os missionários da Alemanha e de Verona abandonaram a missão e regressaram à Europa.

O P.e Reinthaller deixou um outro padre e irmão em Schellal e com todos os outros atravessou o deserto e chegou a Cartum, onde uma parte dos missionários ficou, enquanto o maior número deles seguiu com o pró-vigário para sul. Alguns morreram na viagem. Na tribo dos Schelluk, o P.e Reinthaller adoeceu gravemente, pelo que voltou a Cartum. Entretanto outros padres instalaram-se em Santa Cruz, entre os Kich, onde receberam no seio da Igreja várias crianças africanas.


[2157]
Em 1862 dirigiu-se a Schellal outra expedição dos filhos de S. Francisco, em número de vinte e quatro, entre os quais se encontravam três frades do rev.do P.e Ludovico de Casoria, de Nápoles (na expedição de 1861 havia cinco deles). Estes assustaram-se ao chegar-lhes a notícia de que o P.e superior Reinthaller, reduzido a um estado de extrema fraqueza, por causa das febres, tinha ido para Berber, onde, depois de suportar grandes dores, havia entregue a alma ao Criador.

Muitos mais o seguiram para a eternidade. Outros regressaram à Europa ou foram acolhidos com particular bondade na missão dos padres da Terra Santa.


[2158]
Em tais circunstâncias, foi preciso abandonar as estações de Gondokoro e de Santa Cruz, que estavam distantes e foi decidido ocupar apenas as de Cartum e Schellal. Depois da morte de Reinthaller, a S. C. da Propaganda confiou provisoriamente a direcção do vicariato da África Central, desde 1862, ao vigário apostólico do Egipto. Em pouco tempo a estação de Schellal era fechada e a de Cartum ocupada unicamente por dois franciscanos – dos quais o superior era o P.e Fabiano Pfeifer, de Eggenthal, no Tirol – e um irmão leigo.


[2159]
Depois deste período, o cardeal prefeito encarregou mons. Pascoal Vuicic, bispo de Anfitello e vigário apostólico do Egipto, de empreender uma viagem à África Central para visitar a missão e informar a Propaganda sobre a oportunidade e a maneira de estabelecer naquelas regiões o apostolado católico. Porém, os graves e importantes assuntos da missão do Egipto não lhe permitiram dispor nunca dos muitos meses que precisava para cumprir devidamente as ordens da Propaganda.


[2160]
O P.e Ludovico de Casoria, digno filho de S. Francisco de Assis, animado de um grande zelo pela salvação dos pobres negros, fundou, em Nápoles, em 1854, dois institutos para negros, um masculino e outro feminino, o primeiro dos quais era dirigido pelos seus Irmãos Bigi (ou cinzentos, pela cor do seu hábito) da Ordem Terceira, que ele tinha instituído para empreender as suas admiráveis obras de caridade em favor dos pobres daquela capital. O feminino estava a cargo das Irmãs Estigmatinas Terceiras, da Toscânia, a quem tinha chamado a Nápoles para dirigir e desenvolver outras obras de caridade que acabava de fundar para as raparigas pobres napolitanas.

O instituto masculino era constituído por sessenta negros, que ele tinha mandado instruir, segundo a inclinação de cada um, nas ciências e nas artes, com o objectivo de os transferir mais tarde para o centro da África, para serem úteis ao seu povo. Todos, mais velhos e mais novos, andavam vestidos com o hábito dos Irmãos Bigi da Ordem Terceira, de Nápoles. A mesma finalidade e o mesmo sistema regulavam o instituto feminino, que chegou a ter 120 negras. Pois bem, em 1865, tendo sido informado de que a casa de Schellal estava abandonada e vendo a sua obra suficientemente desenvolvida para poder mandar para a África alguns dos seus membros negros, o P.e Ludovico pediu, por mediação do rev.mo geral da sua ordem, a casa de Schellal para o seu instituto de Nápoles. O card. Barnabó, sempre desejoso de impulsionar as obras que tinham como fim a conversão dos infiéis, concedeu a dita casa ao padre geral dos franciscanos, permitindo que este a confiasse ao instituto do P.e Ludovico.


[2161]
No mês de Junho do mesmo ano, P.e Nicolau Mazza, perfeitamente informado da situação em que se encontravam os assuntos da África Central, enviou-me a Roma munido de uma petição assinada por ele mesmo, com o objectivo de solicitar da Propaganda uma missão na Nigrícia para o seu instituto, em congruência com o seu plano, de que falámos.

Foi então que o cardeal-prefeito exprimiu a sua vontade de dividir o vicariato em duas partes: a primeira seria confiada à ordem franciscana e a segunda ao Insto. Mazza.

A pedido de Sua Eminência e seguindo as instruções do meu superior, apresentei à Propaganda este projecto de missão:


[2162]
1.o Missão do Nilo Ocidental, a ser confiada à ordem seráfica, com os seguintes limites:

A norte, o vicariato do Egipto

A este, o Nilo e Nilo Branco

A sul, o equador

A oeste... in infinitum

2.o Missão do Nilo Oriental, a ser confiada ao Insto. Mazza, com os seguintes limites:

A norte, o trópico do Câncer

A este, os vicariatos da Abissínia e dos Gallas

A sul, o equador

A oeste, o Nilo e o Nilo Branco.


[2163]
Embora o card. Barnabó tenha recebido com entusiasmo este projecto de divisão, pensou pôr-se em contacto directo com o meu superior e com o P.e geral dos franciscanos para comprovar formalmente se as duas instituições dispunham de pessoal e dos meios económicos necessários para tomar a seu cargo estas missões. Depois, uma vez submetido o assunto ao exame de toda a congregação, como estipulam os artigos do projecto, emitiria os decretos apostólicos para a erecção das duas novas missões.

Enquanto eu esperava na Cidade Eterna o resultado destes trâmites burocráticos, o ilustre fundador do meu instituto, P.e Nicolau Mazza, entregava o seu espírito a Deus com a idade de setenta e cinco anos e o respeitável definidor de Ara Coeli declarou ao cardeal Barnabó que naquele momento não podia aprovar nenhum projecto de divisão, porque podia bem acontecer que ele não conhecesse bem a fundo o terreno sobre o qual se punha a questão e não havia indicações e dados bastantes sobre o vicariato da África Central, para chegar ao ponto de ceder uma parte dele mesmo a outra instituição.


[2164]
Perante estes justos argumentos dos veneráveis padres franciscanos, o cardeal-prefeito julgou oportuno não tomar nenhuma decisão sobre o plano de divisão proposto, mas, na sua grande sabedoria, determinou que o P.e Ludovico, como representante da ordem seráfica, e eu, como representante do Insto. Mazza, empreendêssemos uma viagem a África, para in loco examinarmos o assunto em questão. Assim, depois de submetermos as nossas ideias ao conselho e juízo do vigário apostólico do Egipto, que era o responsável do vicariato, estar-se-ia em melhores condições de estabelecer um plano de divisão justo e conveniente para as duas partes, o qual, em seguida, seria apresentado à S. C. da Propaganda.


[2165]
Esta decisão de Sua Eminência era muito sábia, porque durante o tempo que nós andássemos em África, a direcção do meu instituto, que se vira obrigada a limitar as suas actividades por causa da morte do fundador, teria tempo suficiente para determinar a sua posição quanto ao aceitar ou não a missão. Entretanto o P.e Ludovico teria podido levar a África os primeiros membros do seu instituto e tomar posse da estação de Schellal.


[2166]
A nossa partida para África estava marcada para o mês de Novembro seguinte e Sua Em.a o card.-prefeito tinha-me concedido uma pequena soma de dinheiro para a minha viagem. Antes, em Outubro, o P.e Ludovico, comigo e três irmãos negros, entre os quais se encontrava o P.e Boaventura, de Cartum, quis visitar a capital da Áustria, a fim de implorar da Sociedade de Maria ajudas para Schellal. Passámos por Bressanone com a ideia de consultar o ilustre professor Mitterrutzner sobre um novo plano de divisão do vicariato da África Central, para o apresentar a Roma no nosso regresso à Europa, porque o P.e Ludovico não estava satisfeito com o que já fora apresentado à Propaganda.

Com muita sabedoria, o ilustre professor demonstrou-nos que o melhor projecto seria dividir o vicariato de norte a sul, em vez de este para oeste; ou seja, que conviria confiar aos franciscanos as regiões do Egipto até às primeiras tribos negras ao 12o de lat. N., e ao Insto. Mazza desde esse ponto até ao equador. Tudo isto, por importantes motivos expressos na carta em latim que Mitterrutzner dirigiu ao P.e Ludovico, para Viena, a 29 de Outubro de 1865.


[2167]
As diligências levadas a cabo nessa capital em favor da estação de Schellal não foram inúteis, porque o comité cedeu ao P.e Ludovico o uso de todos os objectos da missão, da capela e das oficinas dos diversos ofícios. O comité declarou depois que os recursos da associação destinavam-se apenas à estação de Cartum, da qual podiam unicamente ocupar-se.

Contudo, três meses mais tarde, por mediação do card.-prefeito, o alto comité atribuiu aos irmãos do P.e Ludovico residentes em Schellal a importância de 1200 francos anuais.


[2168]
A 6 de Janeiro de 1866, na festividade da Epifania, chegámos a Schellal e o P.e Ludovico tomou posse da estação católica. Três dias depois, como consequência de umas cartas urgentes que tinha recebido, o P.e Ludovico deixou a missão para regressar a Nápoles. Deste modo, deixava-se por fazer aquilo que tinha sido a razão da nossa viagem a África e, dois meses depois, também eu regressei à Europa.

Os irmãos do P.e Ludovico de Casoria ficaram na casa de Schellal oito meses. Depois, por falta de meios, esta estação foi fechada e os religiosos colocaram-se sob a direcção e ao serviço da Terra Santa.


[2169]
Em Cartum, o P.e Fabião ficou apenas 4 anos, ajudado por um irmão leigo. Em 1868 chegou em sua ajuda o rev.do P.e Dismas Stadelmeir, de Innsbruck, com o irmão leigo Gerardo Keller. Em Dezembro de 1869 passou pelo Cairo o rev.do P.e Hilário Schlatter, do Tirol, menor reformado, que se dirigia a Cartum para ajudar o P.e Dismas, que, depois do regresso à Europa do P.e Fabião Pfeifer, fora eleito superior da casa.


[2170]
Depois do que expus neste pequeno relatório, cabe perguntar:

1.o Quais são os resultados obtidos e o bem realizado na África Central desde a sua fundação em 1846 até 1867?

2.o Por que razão a colossal ordem dos veneráveis filhos de S. Francisco não obteve os resultados que se esperavam da sua acção católica?

3.o Qual é o sistema mais oportuno e o plano mais eficaz para empreender com êxito o apostolado da África Central?

Respondo, dizendo:


[2171]
Antes de tudo, é preciso confessar que o início de um apostolado católico num povo estrangeiro tem, no geral, resultados cuja importância raras vezes se pode apreciar na medida justa. As conquistas evangélicas efectuam-se de modo muito diferente das conquistas políticas. O apóstolo transpira não para si, mas para a eternidade. Dito de outra maneira: não busca a sua própria felicidade, mas a do seu semelhante. Sabe que a sua obra não morre com ele, que o seu túmulo é berço de novos apóstolos; por isso, os seus passos não sempre são à medida dos seus desejos, mas sim o necessariamente prudentes para assegurar o êxito da redentora empresa. Ainda que os resultados de um primeiro apostolado sejam máximos, também, normalmente, são secretos: o tempo encarrega-se de revelar alguns, mas a maioria deles só Deus os conhece. E isto, que é verdade na generalidade dos casos, é-o ainda mais no caso da África Central. Os primeiros heróis da caridade apostólica, lançados pela vontade de Deus, para as regiões equatoriais da Nigrícia, qualificada pelo antigo provérbio como a mãe que devora os seus filhos, encontraram-se, muitos deles, demasiado literalmente sós, no meio duma espantosa novidade.


[2172]
Lá onde não ousaram nunca penetrar com os seus aguerridos exércitos os célebres conquistadores da Antiguidade, encontraram-se eles, poucos e inermes, desconhecedores dos países e das línguas, estranhos para os povos e seus costumes, expostos aos rigores de um clima implacável, com inúmeras necessidades impossíveis de satisfazer, no desconforto de não poderem encontrar à sua volta já não digo os costumes, as maneiras civilizadas, ao menos as mais importantes da convivência social, mas nem sequer as mais óbvias semelhanças da natureza humana, receosos de ter de tratar com homens degradados. Se este primeiro encontro não tivesse dado outro resultado que não fosse conhecer o país e traçar o caminho para nele entrar, conhecer a natureza humana dos indígenas e a sua posição moral e política, encontrar os meios mais adequados para os regenerar e prever as principais dificuldades, susceptíveis de aí se oporem ao apostolado, é indubitável que eles teriam feito muitíssimo e teriam empregado sobremaneira bem a sua vida.


[2173]
Porém, realmente a missão da África Central obteve muito mais que isso no seu primeiro período. Conseguiu percorrer e conhecer, desde os 15 graus até ao equador, boa parte daquela imensa região que até há poucos anos figurava nas cartas geográficas com o nome de REGIÕES INCÓGNITAS; pôde entrar em contacto com tribos que a tradição desde há muitos séculos vinha descrevendo como antropófagas e erigir estações no meio delas; penetrou no seio das famílias de nómadas e descobriu as suas superstições, compreendeu as suas esperanças, investigou a sua história, estudou os seus costumes; depois, arvorada em sua benfeitora, ensinou-lhes a distinguir o apóstolo do aventureiro, obtendo, por isso, o seu respeito, a sua estima e benevolência, e quase diria a sua simpatia e afecto; finalmente conseguiu aprender as suas principais línguas, conhecimentos que compendiou em trabalhosos volumes, preparando assim os primeiros e mais essenciais elementos para a acção eficaz do futuro apostolado, e suscitando na Europa o primeiro raio de esperança na regeneração da infeliz Nigrícia.


[2174]
E se esta esperança resultou infelizmente numa cruel ilusão no segundo período da missão, quando esta foi confiada à ínclita ordem seráfica, isso deve-se a muitas causas independentes da vontade dos obreiros evangélicos. Foi um desses episódios dolorosos que Deus às vezes permite, tanto para provar os seus servos como para os instruir, a fim de que a Sua obra triunfe, não momentânea mas perpetuamente, no verdadeiro interesse dos povos por regenerar. A ordem seráfica era nova na África Central e era previsível que, ao princípio, também ela tivesse de pagar as suas experiências, talvez com o preço de não poucas vítimas. Porém, se ela tivesse sido livre na escolha do pessoal a mandar para lá, certamente não teria havido tantos inexperientes como houve, quanto à língua, aos costumes, aos povos e ao clima da África Central. Na Palestina e no Egipto havia velhos e distintos missionários cuja experiência e habituação a um clima mais quente que o da Alemanha os teria levado a dirigir de modo mais prudente os passos e ter-se-iam poupado não poucos prejuízos que sofreu a missão.


[2175]
Mas quiseram impor os missionários e certas sociedades benfeitoras deram preferência aos da sua nação. Por isso, num momento crítico, em que tinham diminuído muito os contributos caritativos dos piedosos fiéis, tanto por causa dos acontecimentos políticos, como pelas graves necessidades sobrevindas à religião ameaçada na Europa, a ordem seráfica não teve outro remédio senão arriscar-se a entregar a direcção da missão a um pessoal dotado, sim, das melhores intenções do mundo e de generosidade e excelente espírito apostólico, mas inexperiente em semelhantes empresas e demasiado inadequado para a penosa situação da Nigrícia. Que admiração que tenha sido obrigada a retirar-se?


[2176]
A dizer a verdade, deu-se demasiada importância a este fracasso, porque se quis utilizá-lo como argumento da impossibilidade absoluta da missão, quando talvez tivesse sido melhor dirigir a crítica à maneira como foi posta em prática. Certamente a ínclita ordem seráfica não precisa que eu a justifique: a história de seis séculos de glorioso apostolado entre cem nações infiéis de um e outro hemisfério é um monumento imortal do seu poder e suas conquistas. Daí que me seja lícito exprimir as minhas mais firmes esperanças num seu retorno mais eficaz à empresa, com um novo processo de actuação, que as passadas vicissitudes e a história da missão aconselham como o mais oportuno e prudente para conseguir regenerar a Nigrícia central.


[2177]
Permita-se-me aqui expor humildemente também a minha opinião sobre o assunto, compendiando a ideia desenvolvida no meu Plano para a Regenaração da África, que está impresso desde 1864 e que teve a honra de receber a aprovação das distintíssimas personalidades e dos principais chefes das missões que rodeiam a Nigrícia. Já me vinha desde 1857 pondo o problema, que quis estudar nas próprias tribos dos negros e ao lado dos primeiros generosos apóstolos desta difícil missão. E cheguei à conclusão de que não se deve voltar a expor aventureira e inutilmente a vida dos missionários europeus, sujeitando-os à desmesurada diferença do clima equatorial, nem ao isolamento no meio da privação de todas as comodidades que conservam a vida: além dos custos ingentes destas imigrações apostólicas, fica sempre incerta e periclitante a vida do missionário e consequentemente a existência da missão. Isto sem contar com que o pessoal desta obra redentora será sempre escasso e insuficiente para as graves e urgentes necessidades da infeliz Nigrícia; e quem sabe a partir de quando seriam recolhidos os frutos da regeneração...


[2178]
Por isso, eu sou da opinião de que é mais útil pugnar para que os missionários europeus se dediquem à educação de jovens negros de ambos os sexos em diversos institutos masculinos e femininos estabelecidos no futuro nas proximidades das fronteiras com a Nigrícia, em locais salubres, de clima médio entre o europeu e o equatorial. Esta educação deve à partida ter o objectivo de preparar os próprios alunos para apóstolos da Nigrícia, à qual voltarão um dia como colónias evangelizadoras, mestres dos seus compatrícios quanto às artes manuais e às ciências mais necessárias e sobretudo quanto à fé e moral do Evangelho, sob a imediata direcção dos seus educadores, já em boa parte aclimatados aos calores africanos. Estes educadores e missionários europeus deverão alternar-se no governo imediato das missões do interior com maior ou menor frequência, segundo for maior ou menor a sua capacidade em suportar as fadigas apostólicas e o clima daquelas terras.


[2179]
Com este sistema consegue-se perpetuar e aumentar o apostolado regenerador da Nigrícia de modo mais eficaz e menos mortífero; acelerar praticamente a civilização com as artes e ciências principais, com o desenvolvimento de um necessário comércio e com a introdução de costumes mais aprazíveis e sociais; minorar as necessidades da missão e assegurar os passos e o progresso com o estabelecimento das colónias; e, finalmente, habilitar a África para que num prazo não muito dilatado se regenere a si mesma. O que para as outras missões católicas é um dos frutos mais doces das fadigas do apostolado, para a da África Central, no meu entender, é o meio mais necessário e prudente de activar com eficácia o próprio apostolado. E não se pode dizer que para este objectivo seja indiferente que os negros sejam educados também na Europa, porque a experiência demonstrou que esse é um trabalho inútil: o clima e as comodidades da Europa não se tornam menos fatais para o negro que o clima e as privações da África Central para o missionário.


[2180]
O método de acção que acabo de expor foi julgado por alguns como uma ideia utópica; mas já há mais de dois anos que comecei a pô-lo em prática nos meus pequenos institutos de negros do Egipto e a experiência deste período sobre a questão fortalece-me na opinião de que o meu plano para a regeneração da Nigrícia é dos mais adequados e eficazes, como eventualmente poderei demonstrar noutra altura. Além disso, tenho a satisfação de saber que, adoptado noutros lugares com o mesmo objectivo, produziu nos missionários esta mesma minha convicção de um feliz resultado. Favoráveis circunstâncias destes dias, que não haviam sido previstas, parecem ser uma garantia por parte da Providência de que a hora da salvação soou também para a pobre Nigrícia.


[2181]
Só resta, portanto, meter mãos à obra com mais coragem, porque Deus está connosco. Jovens sacerdotes, que, por vossa sublime vocação, o vosso zelo pelas almas, e pelo vosso espírito de sacrifício, estais determinados a fazer-vos com Cristo regeneradores dos vossos infelizes irmãos, aí tendes cem milhões de negros abandonados que precisam do vosso esforço. Acorram também as ordens e congregações religiosas, que são a milícia escolhida da Igreja, a plantar louros neste vastíssimo campo, onde Satanás mantém enfileirado todo o seu poder. E vós, que por obrigações do vosso estado não podeis partir, não negueis nem as vossas orações quotidianas nem o óbolo da vossa caridade.


[2182]
Trabalhemos todos sem outra emulação que não seja a de ganhar mais almas para Cristo: dêmo-nos reciprocamente as mãos; haja um único voto, um único fim, um único empenho por parte de todos aqueles que amam Jesus Cristo: o de lhe conquistar a infeliz Nigrícia.



Laus Deo, Deiparae et divo Paulo Apostolo.



Dado no Cairo, Egipto, aos 15 de Fevereiro de 1870



P.e Daniel Comboni

Missionário ap. da África Central





(1) Annali della Propagazione della Fede, T. 20, N.o 121, p. 5935

(2) Proceeding of the R. Geog. Society V. X. N. 1, p. 6 etc.

The Albert N’yanza Great Bassin of the Nile, and Explanations of the Nile Sources by Samuel Baker, M. A. F. R. G. etc. London 1867

(3) Dr. Ignace Knoblecher... Eine Lebensskize von dr. J. C. Mitterrutzner.

(4) Zweiter Jahresbericht de Marienvereins. Wien.

(5) Os chefes e os negros nunca saem das suas cabanas sem a lança e as flechas envenenadas

(6) Dr. Ignace Knoblecher Apostoliker Provicar der Katholischen Mission in Central-Afrika. Eine Lebensskize von Dr. J. C. Mitterrutzner.



Original francês

Tradução do italliano






347
Mons. Luis de Canossa
0
Cairo
15. 2.1870

N.o 347 (325) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA

ACR, A, c, 14/73

Cairo, 15 de Fevereiro de 1870

Louv. J. M. para sempre. Ámen.

Excelência rev.ma

[2183]
Para não fazer e enviar duas cartas separadas, mando em anexo uma carta dirigida a mons. o delegado, rogando-lhe que leia e a envie a S. Bartolomeu, em Isola. É a última folha do meu relatório escrito em francês sobre a missão da África Central de 1847 a 1867. Este Respondeo dicendum é a conclusão de 21 folhas que já mandei a Roma, e a resposta a três questões:

1.o Que resultados obteve a missão?

2.o Porque é que os franciscanos não obtiveram êxito nela?

3.o Qual seria o melhor modo de actuação para um bom sucesso?

Farei um outro relatório sobre os dois anos da nossa missão, isto é, até hoje. Tudo isto para o monsenhor e para Lião.


[2184]
Espero partir de Alexandria no dia 1 de Março e no dia 8 estar em Roma.

Agora, que se está a discutir sobre os Assuntos do Rito Oriental e portanto das missões católicas, não seria uma boa ocasião para o senhor se pôr de acordo com o card. Barnabó e com monsenhor o delegado para levantar a voz no concílio em favor da África Central, de cem milhões de negros que jazem sepultados nas sombras da morte? Não seria um assunto de grande relevância propor e discutir o modo de conquistar para a Igreja a décima parte da humanidade, que tantos esforços de 18 séculos não conseguiram ganhar para Cristo? Não seria esta a altura de agarrar o touro pelos cornos e invocar as luzes da Igreja e o apoio de todos os católicos do mundo, representados pelos bispos do Concílio, para ter em pouco tempo homens e dinheiro para apertar o cerco à Nigrícia? Ah, monsenhor e meu pai! Parece-me que este seria um tema digno do concílio.


[2185]
Levante V. E a voz no concílio e diga a Pio IX: «Emitte, beatissime Pater, vocem tuam et renovabitur facies Africae.» Uma palavra do Santo Padre no Concílio, uma adesão dos bispos e produzir-se-ia uma tal comoção em todos os católicos do mundo, que apareceria dinheiro para a África e apóstolos para a Nigrícia. Digne-se, monsenhor, reflectir sobre esta ideia e tenha a coragem de insistir, de rogar, de importunar até todos os rev.mos padres e sobretudo o nosso cardeal-prefeito. E não os deixe em paz até a sua levar a melhor. Espero que a Sagrada Família me conceda esta graça, assim como aos meus companheiros, aos nossos institutos, que rezam todos os dias por essa intenção.


[2186]
Acontece que agora missionários protestantes e muçulmanos seguem o inglês Baker (que chegou a Cartum com 2600 homens) e vão pregar onde nós o fizemos no Nilo Branco. Desde Gondokoro (quatro graus), o Governo egípcio está a construir uma estrada até Nyanza, onde se porá um vapor: e de Suakim até Berber está-se a construir um caminho de ferro, para facilitar as comunicações com o coração da África. Quando os não católicos avançam, iremos nós permanecer inactivos, afogando-nos num copo de água? Roguemos ao Deus de misericórdia para que o concílio se ocupe da Nigrícia. Respeitosas saudações a mons. o delegado,



Seu hum.mo e preocupado filho

P.e Daniel Comboni






348
Card. Alexandre Barnabó
0
Cairo
17. 2.1870

N.o 348 (326) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ

AP SC Afr. C., v. 7, ff. 1372-1373

V. J. M. J.

Cairo, 17 de Fevereiro de 1870

Em.mo Príncipe,

[2187]
Cheio de gratidão pelos sentimentos e desejos que V. Em.a se dignou expressar-me na sua venerada carta do passado dia 11 de Janeiro e pela benévola recomendação que fez em meu favor a essa obra apostólica, permito-me notificá-lo de que o sr. Baker chegou a Cartum, onde está a organizar uma forte expedição para conquistar em nome do vice-rei do Egipto todo o curso do Nilo Branco para lá do equador. De fontes quase oficiais pude conhecer o plano de acção de Baker (desconfio um tanto das pretensas intenções humanitárias do quedive). Desde Cartum até à tribo dos Bari, ao longo de uma linha de 11 graus, ele estabelece uma série de postos, dotados de um capitão e de certo número de soldados bem aguerridos, os quais tomam posse do país e vigiam o tráfico dos negros. A partir destes postos, estendem-se pouco a pouco até ocupar as povoações do interior. Quando os soldados surpreendem uma caravana de escravos, esta cai em poder do capitão que castiga os traficantes e distribui aos escravos extensões de terreno para cultivarem. Os soldados protegem, pois, os habitantes da nova província e defendem-nos dos inimigos que ousarem molestá-los.


[2188]
Os pontos escolhidos são os mais importantes do Nilo Branco: os Hassanieh, Mokhada el Kelb, Hella el Kaka, o Sobat, a foz do Bahar el-Ghazal, o território Nuer, Kich, Eliab e Gondokoro. Desde Gondokoro ao Nyanza Alberto construir-se-á com facilidade uma estrada; e para o Nyanza Alberto (2o lat. S.) Baker leva um pequeno vapor, cujas peças foram embarcadas no Cairo sob os olhares do quedive. A expedição está equipada de objectos mecânicos e integram-na artesãos, colonos, médicos e demais coisas. Vão também missionários protestantes, e muftis para islami-zarem os indígenas. Baker pretende também dar uma lição aos Bari, porque o ano passado mataram dois missionários protestantes.


[2189]
Diz-se além disso que em breve se estenderá uma via férrea entre Suakin, no mar Vermelho, e Berber, no Nilo. Se tal se verificasse, chegaria o tempo em que se poderia ir de barco de Alexandria a Suakin, de comboio de Suakin a Berber, novamente de barco de Berber a Gondokoro (4o 40’ de lat. N.) e em coche dos Bari às nascentes do Nilo. Submeto estas notícias à sabedoria de V. Em.a. Que acontecerá com tudo isto?... Talvez a Providência extraia disso o bem, facilitando o caminho ao pregoeiro católico para que leve até lá a fé... Porém, se a gente de Baker se assanhar com os negros, poderia dar-se o caso que aconteceu com os negros da África Ocidental no tempo em que a Espanha e outras potências obtinham com violência escravos para os levarem para as minas e campos da América. Deus vele pelos pobres negros!


[2190]
Pela minha parte, exponho uma simples sugestão. Agora que se discute sobre os assuntos dos ritos orientais e sobre as missões, não seria oportuno tratar da causa da infeliz Nigrícia e propor aos padres do concílio que estudassem a maneira de ganhar para a Igreja cem milhões de negros que jazem sepultados nas sombras da morte? Não seria este o momento de invocar as luzes da Igreja e o apoio dos católicos de todo o mundo, representados pelos bispos que se reúnem no concílio para devolver a vida à décima parte da humanidade?... Se dos lábios do Pontífice saísse uma palavra de incitação em favor de uma empresa tão capital, se ressoasse no concílio a voz dos bispos do orbe católico em favor da Nigrícia, não surgiriam apóstolos, meios pecuniários e obras organizadas para alcançar um objectivo de importância tão grande?


[2191]
Perdoe, em.o príncipe, se na minha insignificância me atrevo a submeter-lhe esta ideia e suplicar-lhe que a tome em consideração, na certeza de que tal assunto é digno da venerável assembleia, que publicum rei christianae bonum vere respicit (bula Multiplices II). Desde o passado 8 de Dezembro tenho mandado, e cumpre-se, que haja nos meus institutos preces especiais para que o Santo Padre e os bispos também se ocupem no concílio da Nigrícia, o qual há-de redundar em seu bem. Quereria que alguns bispos, depois da invocação ao Espírito Santo Adsumus, Domine, etc., se levantassem no concílio e dissessem ao nosso glorioso Santo Padre Pio IX:

«Emitte, Beatissime Pater, vocem tuam;

et renovabitur facies Africae.»


[2192]
Os meus pequenos institutos vão muito bem. Da pequena enfermaria para as negras abandonadas, subiram para o Céu também esta semana duas almas, a uma delas, de dezasseis anos, tinha-a baptizado dez horas antes.

Agora que terminaram os exercícios espirituais das religiosas e tenho bem encaminhados os meus assuntos, cumprindo o que monsenhor o bispo de Verona me escreveu de acordo com V. Em.a e – creio – com o venerado delegado apostólico, irei ao concílio.

Digne-se V. Em.a receber as respeitosas saudações dos meus caros companheiros e das minhas irmãs. Creio que a madre geral Emilie me concedeu uma superiora verdadeiramente bondosa e valiosa.

Tenho a honra de lhe beijar a sagrada púrpura e de me declarar com toda a veneração



De V. Em.a Rev.ma.

hum., obrig. e indig. filho

P.e Daniel Comboni






349
Mons. Luis de Canossa
0
Cairo
25. 2.1870

N.o 349 (327) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA

ACR, A, c. 14/72

Louv. J. M. eternamente. Ámen!

Cairo, 25 de Fevereiro de 1870

(sexta-feira de abstinência)

Excelência rev.ma

[2193]
Esta manhã terminaram os santos exercícios das religiosas com o solene Te Deum e comunhão geral, precedida da clausura. O nosso P.e Girelli pronunciou 68 sermões entre meditações e instruções nos exercícios para as negras e para as religiosas, não durando nenhum menos de uma hora e alguns atingindo até as duas horas. A minha prima Faustina Stampais fez ambos os cursos de exercícios e seria feliz de viver sempre de silêncio e de exercícios espirituais. Pelo que parece, o P.e Girelli (que é meticuloso) ficou contente tanto com as irmãs como com as jovens negras.

Como lhe escrevi aproveitando o vapor francês, seguindo as observações do nosso muito venerado pró-vigário apostólico, o P.e Elias, considerei prudente esperar a autorização formal do cardeal para ir a Roma. Assim que, paciência, monsenhor. Corra ver o cardeal e obtenha de seu punho e letra uma linha para eu poder apresentar ao rev.mo pró-vigário e, num voo, ponho-me em Roma. Desejaria que fosse já, pois, nas proximidades da Páscoa, os dias não são adequados para negociações.


[2194]
Por caridade, promova no concílio o assunto e fale sobre a Nigrícia e sobre a maneira de ganhar para Cristo cem milhões de almas africanas. Diga que nunca faltam na Igreja obreiros evangélicos que suspiram pelo martírio como a mais apreciada e doce recompensa para as mais árduas fadigas. E que nós os quatro estamos dispostos a aguentar a pé firme a morte no mais atroz dos martírios até para salvar uma única alma da Nigrícia: para nós os calores da África são como uma brisa primaveril na Itália para o melhor pároco veronês. Se, depois, o Santo Padre ou o concílio falassem em favor da Nigrícia e se dirigissem aos católicos, etc... nós morreríamos de consolação....

Teria que escrever também a monsenhor o delegado, mas, se não mando a presente já para o correio, não sai nem esta. Mil respeitosas saudações da parte de todos e todas e dos padres Pedro de Taggia e Girelli. Beija a V. E. a mão e manda lembranças para P.e Vicente, P.e João e seus teólogos



O seu obed.mo filho

P.e Daniel Comboni






350
P.e Luis Artini
0
Roma
24. 3.1870

N.o 350 (328) - AO P.e LUÍS ARTINI

APCV, 1458/246

Roma, 24 de Março de 1870

Piazza del Gesù, 47

Meu estimadíssimo e venerado padre,


 

[2195]
Limito-me a enviar-lhe uma carta do P.e Bernardino, que me esqueci de lha despachar do Egipto. Quando estiver com mais calma, escrever-lhe-ei mais extensamente. Entretanto aceite as minhas filiais mostras de respeito e as minhas afectuosas saudações. O P.e Estanislau é, em tudo, o meu representante no Egipto: deixei-lhe amplos poderes. Vi o P.e Guardi e Tezza, com os quais falei longamente. Foram muito gentis. Os factos dir-nos-ão o que se chega a fazer. Estanislau e Franceschini são dois apóstolos da África: têm carácter, constância e verdadeiro zelo. Foi muito bom o cardeal Barnabó, porém, eu só creio nos factos: nós trabalhamos unicamente para Jesus. O caminho ficar-nos-á mais plano se os superiores supremos nos ajudarem com a sua influência. Monsenhor o bispo de Verona é um verdadeiro anjo para a África: confio muito no seu zelo. Tem para com os seus dois filhos a consideração que merecem. Ai de quem se meter com eles! Barnabó disse-me uma palavra sobre o mais novo: saltei-lhe aos olhos como um íbis: ficou contente em saber belas coisas sobre ele. Eu só tenho uma coisa que ninguém me pode tirar: a consciência. Roma sabe que eu falo com consciência.


[2196]
Combinei com o P.e Estanislau para que eu lhe escreva a si para lhe pedir que exponha com confiança e clareza o assunto das casas resgatadas em Paraíso, S. Julião, etc. Conte com a ajuda de Deus, com o meu silêncio, prudência, etc. Temos o coração de Jesus e S. Camilo que nos guiam, e S. José. O P.e Zanoni não o vi nem procuro ver: só rezo por ele. Quanto ao P.e Girelli, nenhuma esperança de regresso, por agora. É mais franciscano que os franciscanos. Esteve muito contente connosco e passou lá mais de 20 dias.

Beijo-lhe as mãos; quando vir o Santo Padre pedir-lhe-ei uma bênção especial para si e para o P.e Tomelleri. As minhas saudações ao venerável padre C. Bresciani.



Todo seu em Jesus

P.e Daniel Comboni