No domingo passado, São João relatou-nos as duas aparições de Jesus aos discípulos em Jerusalém, ocorridas num domingo, enquanto eles estavam encerrados no cenáculo. Hoje, apresenta-nos a sua manifestação num contexto completamente diferente: já não estamos na cidade santa, mas na “Galileia dos gentios”, terra de fé incerta; não é domingo, mas um dia de semana, num ambiente profano. O Ressuscitado não se encontra apenas no espaço sagrado da igreja, ao domingo, mas também nos contextos quotidianos, no trabalho, na rotina diária.
“É o Senhor!”
João 21,1-19
No domingo passado, São João relatou-nos as duas aparições de Jesus aos discípulos em Jerusalém, ocorridas num domingo, enquanto eles estavam encerrados no cenáculo. Hoje, apresenta-nos a sua manifestação num contexto completamente diferente: já não estamos na cidade santa, mas na “Galileia dos gentios”, terra de fé incerta; não é domingo, mas um dia de semana, num ambiente profano. O Ressuscitado não se encontra apenas no espaço sagrado da igreja, ao domingo, mas também nos contextos quotidianos, no trabalho, na rotina diária.
Um dia de trabalho
Tudo começa com a iniciativa de Simão Pedro, que decide ir pescar. Os seus companheiros juntam-se a ele: “Nós também vamos contigo.” Perguntamo-nos: o que significa este gesto de Pedro? Será motivado pelo tédio, por não saber o que fazer? Ou por um sentimento de desorientação, agora que se encontram sozinhos, sem o Mestre? Ou ainda um regresso ao passado, à vida de antes, depois dos três anos passados a seguir Jesus? Também nós podemos viver situações semelhantes. Após uma experiência marcante que se interrompe bruscamente, deixando-nos desiludidos e desorientados, a tentação é esquecer tudo e “voltar à vida de antes”.
Contudo, o relato sugere algo diferente. O evangelista introduz elementos que deixam entrever uma dimensão simbólica do acontecimento. Não se trata de uma pesca qualquer, mas da missão que lhes foi confiada: serem “pescadores de homens”. Fala-se do barco de Pedro (símbolo da Igreja); dos sete discípulos (símbolo da totalidade da comunidade cristã, ao contrário dos doze que representam Israel); do mar (símbolo das forças hostis à vida); de Tiberíades, cidade construída por Herodes Antipas em honra do imperador Tibério, cidade semi-pagã, que Jesus parece nunca ter visitado, considerada impura por ter sido edificada sobre um cemitério (F. Armellini).
Em suma, uma missão muito semelhante à nossa, hoje. Nesse barco, representados pelos sete, estamos também nós, juntamente com todos os que lutam para libertar o mundo das forças do mal.
Uma noite de frustração
“Mas, naquela noite, nada apanharam.”
Porquê? Por falta de habilidade? Ou será uma confirmação de que, sem Ele, nada podemos fazer? Todos vivemos momentos semelhantes: frustração, sensação de inutilidade, a impressão de termos desperdiçado tempo e energia… A maturidade, tanto humana como cristã, passa também por estes tempos de provação. A nossa condição é a de trabalhar na “noite”, sem resultados garantidos.
Uma aurora de esperança
Mas, depois de cada noite, nasce sempre a aurora, que traz luz e esperança à nossa vida. Essa luz e essa esperança vêm do “Desconhecido” que aparece na margem:
“Quando já amanhecia, Jesus estava de pé na margem, mas os discípulos não sabiam que era Jesus.”
Talvez estivesse lá durante toda a noite, mas os seus olhos não eram capazes de O reconhecer.
“Jesus disse-lhes: «Meus filhos, tendes alguma coisa para comer?» Responderam-lhe: «Não.» Disse-lhes Ele: «Lançai a rede do lado direito do barco e encontrareis.» Lançaram-na, e já não tinham forças para a puxar, por causa da grande quantidade de peixes”: 153 grandes peixes, um número enigmático que simboliza a abundância e, talvez, a totalidade da humanidade a salvar.
Jesus dirige-se a eles com o afetuoso termo “meus filhos”. Assim também nos chama hoje, sobretudo nos momentos de tristeza, frustração e desânimo. E indica-nos onde lançar a rede: à direita, o lado certo, o lado bom que existe em cada pessoa.
“Então, o discípulo que Jesus amava disse a Pedro: «É o Senhor!»”
Pedro e João são os protagonistas deste domingo, como Tomé o foi no domingo passado. Não são rivais, mas complementares: representam a instituição e o carisma, a prontidão e a reflexão, a ação e a contemplação. São os dois pilares fundamentais da nossa vida cristã.
Uma manhã de consolação
“Assim que chegaram a terra, viram ali um lume de brasas, com peixe em cima e pão... Jesus disse-lhes: «Vinde comer.»”
O encontro com o Ressuscitado conclui-se em torno do fogo pascal, num momento de convivialidade. O convite a comer torna-se uma alusão à Eucaristia. O pão e o peixe são símbolos cristológicos recorrentes na comunidade cristã primitiva.
Mas havia algo no ar daquela manhã primaveril que inibia a explosão da alegria. As chamas daquele fogo faziam regressar à memória de Pedro os fantasmas da noite em que, também junto a um fogo, negara o Mestre três vezes. Nem os outros discípulos ousavam olhar Jesus nos olhos. Nenhum tinha a consciência tranquila. A qualquer momento esperavam uma repreensão de Jesus pela sua infidelidade. Mas nada disso aconteceu. Jesus, com extrema delicadeza e ternura amorosa, dissipou a nuvem sombria que pairava sobre Simão Pedro.
“Depois de comerem, Jesus disse a Simão Pedro: «Simão, filho de João, amas-me (verbo grego agapan) mais do que estes?» Ele respondeu: «Sim, Senhor, Tu sabes que Te quero bem (philein)». Disse-lhe: «Apascenta os meus cordeiros.»”
Jesus pergunta usando o verbo agapan, que indica um amor total, incondicional (ágape), enquanto Pedro responde com o verbo philein, que expressa amor de afeto e amizade (filia). À terceira vez, Jesus adapta-se ao amor de Pedro e adota o verbo philein:
“«Simão, filho de João, queres-me bem?» Pedro ficou triste por Lhe ter perguntado, pela terceira vez: «Queres-me bem?», e respondeu: «Senhor, Tu sabes tudo; Tu sabes que Te quero bem». Disse-lhe Jesus: «Apascenta as minhas ovelhas.»”
A Pedro, que se mostrara pouco fiável, Jesus confia o seu rebanho. Constitui-o Pastor, um título messiânico que até então reservara para Si.
“E, depois disto, acrescentou: «Segue-me.»”
Segue-me, para seres o Pastor que dá a vida pelas minhas ovelhas.
Um modelo maravilhoso de consolação
Concluo com este belo comentário do cardeal Carlo Maria Martini:
“A atuação de Jesus é um modelo maravilhoso de consolação que, passando por cima de todos os defeitos, capta o melhor da pessoa.”
O Ressuscitado não repreende ninguém. É verdade que tinha repreendido os dois discípulos de Emaús e os onze pela sua incredulidade, mas nunca mencionou a sua infidelidade ou traição (Lucas 24,25; Marcos 16,14).
“Esta é verdadeiramente consolação régia: não aproveitar a humilhação alheia para ridicularizar, esmagar, afastar, mas reabilitar, dar coragem, restituir responsabilidade. Para consolar assim, creio que é necessário ser como Jesus, ou seja, ter em si uma grande alegria, um grande tesouro, pois então é fácil comunicá-lo. O Senhor, que possui o tesouro da sua vida divina, faz descer a consolação como bálsamo, gota a gota. E nós, na certeza de estarmos em comunhão com Ele, podemos também fazer descer a consolação gota a gota, sem repreensões nem presunção.”
E é precisamente por esta consolação que os apóstolos, depois de terem sido açoitados, “saíram do Sinédrio contentes por terem sido considerados dignos de sofrer ultrajes pelo nome de Jesus” (primeira leitura).
P. Manuel João Pereira Correia, mccj
A ousadia da confiança
João 21, 1-19
Queridos irmãs e irmãos,
Neste tempo Pascal nós lemos em contínuo os Atos dos Apóstolos. Nos Atos dos Apóstolos surge-nos uma imagem ideal ou idealizada de comunidade cristã. Nós vemos os apóstolos que conhecemos dos Evangelhos, como Pedro, que nos Atos dos Apóstolos nos são descritos cheios de coragem, de desassombro, capazes de fazer tudo, de chegar para a primeira linha e com toda a abertura anunciar a sua fé num testemunho, arriscando e sofrendo o próprio martírio.
A Igreja dos Atos é uma Igreja mobilizada, uma Igreja militante, uma Igreja inflamada no testemunho. A imagem que nos aparece do conjunto é a de uma Igreja capaz de colocar a fé em Jesus como centro agregador e transformador de uma nova cultura de relação. Por exemplo, os cristãos da primeira comunidade colocavam tudo em comum e viviam uma espécie de comunitarismo em que tudo era partilhado, suprindo assim as insuficiências, a pobreza e as dificuldades que podiam sentir. É assim um retrato de uma comunidade onde o amor parece que não tem falhas, onde o amor é de facto uma trincheira ativa e ideal.
Depois nós olhamos para a nossa vida e sentimos que não é assim. Por um lado, vemos o ideal que nos é descrito e que nos é pedido, este quase heroísmo que é a santidade dos primeiros apóstolos, e depois olhamos para a nossa vida e vemos tanta fragilidade, tanta imperfeição, às vezes tanta dificuldade em dizer “sim”, tanto temor em testemunhar, em dar um passo, tanto calculismo em abrir o nosso coração e às vezes os cordões da nossa bolsa. Sentimos que há aqui como que um desacerto entre o modelo de fé que os Atos dos Apóstolos nos oferecem e a nossa própria realidade que é muito mais frágil, muito mais indeterminada, muito mais incerta.
É interessante que os Evangelhos vêm em socorro da nossa dificuldade. Hoje, por exemplo, este conjunto de narrativas que nos são lidas no final do Evangelho de S. João são muito, muito claras. Os discípulos vão pescar e não apanham nada. E isto depois de uma noite de esforços, de trabalho, de terem projetos e desejos e depois nada se concretizar – ser o contrário das nossas expectativas é alguma coisa que faz parte da nossa vida e faz parte da nossa experiência de fé.
É importante reconhecer que muitas vezes há uma esterilidade na nossa fé, que nós não conseguimos por nós próprios aquela fecundidade, aquela abundância, aquele testemunho, aquele fervor que nós gostaríamos. Mas é muito belo porque o Evangelho de João mostra-nos que a fecundidade não depende de nós, é a Palavra de Jesus que lhes manda atirar a rede para outro lado. É confiados nessa Palavra, agarrados nessa Palavra, que os discípulos de todos os tempos veem a sua esterilidade se transformar numa fecundidade.
Então, o importante não é o ponto de partida, não é dizer: “Ah, tu tens o barco cheio. Tu tens as redes cheias. Tu tens as redes vazias.” Isso não importa nada, o que importa é que tu confies na palavra que Jesus diz e para onde Ele te manda lançar as tuas redes tu ouses, ouses mandar as Suas. Esta ousadia da confiança é aquilo que nos é pedido. Nós olhamos para nós e não temos vidas ideais, não temos uma comunidade ideal. Mas a que é que nós somos chamados? A não desistir de acreditar, a não desistir de confiar nesta Palavra que nos é dita: “Atira as redes para ali.” – nós podermos confiar nessa Palavra.
Depois é muito interessante que os discípulos apanham estes 153 grandes peixes mas Jesus aparece numa imagem curiosa, Jesus aparece como cozinheiro. Não apenas como comensal ou anfitrião, mas é Ele que está a assar os peixes na margem do rio naquele amanhecer. E é Ele que lhes dá de comer. É importante nós percebermos que a fé é sempre dom, é sempre um dom recebido, é sempre um convite para acolhermos, para recebermos no nosso coração. E é nesta atitude de acolhimento que nós nos temos de colocar sempre, em todos os tempos, em todos os momentos da nossa vida.
E se este tempo pascal é também um tempo de formação e de envio em missão da própria Igreja, quais devem ser as nossas atitudes fundamentais de testemunhas do Ressuscitado? A primeira é a dependência de Jesus, nós sermos dependentes da sua Palavra. E a segunda é percebermos que Ele é o dom, que Ele é a dádiva. Por isso, precisamos de abrir o nosso coração àquilo que Ele nos dá.
Queridos irmãs e irmãos, um cristão é uma consequência, é uma consequência não é uma causa. Nós vivemos na dependência de Jesus, por isso é tão importante a vida de oração: o espaço que nós damos à oração na nossa vida, o espaço que nós damos ao aprofundamento da Palavra de Deus, ao mergulhar no conhecimento de Jesus, ao estarmos em silêncio perante a Sua Cruz, ao ligarmos o nosso coração ao Seu coração. Isso é tão decisivo! Porque aquilo que nos distingue não é uma capacidade de fazer, não é uma perfeição. Aquilo que nos distingue é vivermos do acolhimento. É esta espécie de vida ligada, conectada continuamente a Jesus, é isso que nos define como mulheres e homens cristãos.
É muito interessante o diálogo que Jesus tem com Pedro, este diálogo final. Na tradução portuguesa parece de facto um bocado estranho, parece um diálogo de surdos porque Jesus está a insistir a perguntar a Pedro: “Pedro, tu amas-Me?” E Pedro responde sempre: “Senhor, sabes que Te amo.” E o Senhor parece que está simplesmente a repetir a pergunta. De facto, a tradução é sempre muito limitada porque há aqui um jogo de palavras que é muito importante. Temos aqui um jogo entre duas palavras gregas, o verbo agapao que quer dizer “amar” e o verbo phileo que também quer dizer “amar” mas quer dizer mais “gostar”.
Ágape é aquele amor incondicional, aquele amor fusional, aquele amor absolutamente radical. E o phileo é o amor dos amigo, que também é um amor radical, que também é um grande amor, mas é mais um gostar. É um amor que não dá aquele passo para a radicalidade última.
Então, o jogo de palavras é este: Jesus pergunta a primeira vez “Simão, tu amas-Me?” e pergunta com este “Tu amas-Me com este amor incondicional, com este agape, amas-Me?” E Pedro responde “Senhor, eu amo-Te.”, mas quer dizer “Senhor, eu gosto de Ti, eu gosto de Ti.” A palavra que ele usa é phileo e pela segunda vez o Senhor pergunta: “Simão, tu amas-Me, com este amor incondicional, com este agapao?” E Simão volta a responder: “Senhor, tu sabes que eu gosto de Ti.” e responde com o phileo. De maneira que um pergunta uma coisa e o outro responde outra, não é exatamente: “-Tu amas-Me? – Eu amo-Te.” Há aqui uma distinção da gradualidade entre a pergunta e a resposta.
E depois, a grande surpresa é na terceira pergunta de Jesus. Porque na terceira pergunta é como se Jesus desistisse de perguntar a Pedro “Pedro, tu amas-Me com este amor incondicional, com este amor radical?” e adapta-Se ao verbo que Pedro estava a usar e pergunta-lhe: “Pedro, tu amas-Me? Tu gostas de Mim?“ E usa mesmo o verbo, phileo. Então nós percebemos a tristeza de Pedro. Pedro, conhece a fragilidade. Ele escolhido para ser o primeiro de entre os apóstolos, ele sabe que é capaz de trair, que é capaz de negar. Este Pedro que está no diálogo com Jesus é um Pedro que viveu a sua própria miséria, a sua fragilidade mais extrema, que sabe como sozinho não consegue, não consegue sustentar aquilo que Deus merece, aquilo que Deus espera completamente de nós. Pedro sabe isso e não consegue dizer “Eu vou amar-Te com esse amor incondicional, sempre.” e diz “Sabes que eu Te amo, mas amo-Te como posso amar.”
E o que é fantástico é que não é Pedro que se adapta ao verbo de Jesus mas é Jesus que Se adapta ao verbo de Pedro, é Jesus que vem ao encontro de Pedro e diz: “Pedro, tu amas-Me? Tu gostas de Mim?” Fica triste por Jesus Se ter de adaptar a ele, por não ser capaz de coisas maiores, dele não ser capaz de dar mais, de dar tudo, de se dar completamente, dar um amor garantido, um amor sem falhas. Ele fica triste e diz: “Senhor, Tu sabes tudo, tu sabes que eu Te amo, sabes tudo. Sabes a nossa vida, sabes tudo.” Jesus adapta-Se à capacidade de Pedro, Jesus vem em socorro da capacidade de Pedro. Jesus aceita o amor com que Pedro o pode amar como Jesus aceita o amor com que cada um de nós o pode amar. Jesus aceita esse amor mas Jesus não deixa de dizer a Pedro: “Pedro, segue-Me, segue-Me.”
Se calhar o amor com que nós amamos é um amor imperfeito, é um amor inacabado, é um amor pouco esclarecido, é um amor exíguo, é um amor insuficiente. Não é um amor isento, não é um amor completamente purificado, mas Jesus não deixa de dizer: “Com o amor com que Me podes amar, segue-Me, segue-Me. “ (…)
Jesus vem ao encontro da fragilidade do amor com que Pedro o pode amar mas não desiste de lhe dizer: “Segue-Me, segue-Me.”
Queridos irmãs e irmãos, estamos em tempo pascal. É um tempo para sentir Jesus ressuscitado nas nossas vidas. Ele reabilita a mulher e o homem que nós somos, Ele dá força à nossa vida, Ele enche-nos de confiança, enche-nos do Seu Espírito e diz: “Segue-Me, segue-Me.” Que nada seja um impedimento para nós o seguirmos. “Ah, mas a perna dói-me, a alma dói-me, ou não tenho isto, falta-me aquilo, não correspondo, não sou, não posso.” – que nada (como estás, como és, com aquilo que vives) seja obstáculo a este desafio que o Senhor nos faz. “Segue-Me, segue-Me”, faz a experiência, faz a experiência do seguimento. E é esta palavra que permite também às nossas vidas a experiência feliz da Páscoa.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III da Páscoa