Sexta-feira, 9 de Janeiro de 2015
No primeiro dia deste ano, o P. Manuel Augusto Lopes Ferreira, comboniano português, pôs a circular um texto sobre a nossa presença comboniana na Europa, comentando o que ele mesmo chama de “As meias verdades que nos podem enganar”. O missionário expõe ideias e tece algumas considerações sobre métodos e opções com o objectivo de ajudar à reflexão crítica e ao discernimento da vida e missão dos combonianos no velho continente.

 

As meias verdades
que nos podem enganar

Na reflexão que, como missionários, temos vindo a fazer sobre a nossa situação na Europa, nossa e dos institutos missionários, habituámo-nos a repetir algumas afirmações que nos fazem jeito para explicar uma dada situação, de status quo ou de tentativas de encontrar caminhos novos para a nossa vida e missão no velho continente.
No afã da procura ou da autojustificação, não nos damos conta que, por vezes, fazemos afirmações, afirmamos princípios que dizem só meias-verdades, omitindo aspectos importantes e esquecendo-nos de submeter as afirmações que fazemos a uma análise mais crítica.
É o que procuraremos fazer aqui, neste texto que partilho com os confrades da província e de língua portuguesa (Faço um parêntesis, para esclarecer duas coisas, logo desde o começo. Primeiro, não desejo abordar a questão das meias-verdades de um ponto de vista psicológico (como faz Scott Peck, no seu conhecido livro “The Road Less Travelled”, onde ele as chama “white-lies”, isto é, mentiras brancas; parto do lado positivo da palavra, do uso corrente que fazemos do termo e que reconhece a verdade contida nas expressões. Segundo, ao abordarmos os temas não estamos a falar de pessoas, mas naturalmente de ideias, métodos e opções, longe de dimensões e referências pessoais concretas).

A Europa também é missão
A primeira afirmação recorrente é a de que "a Europa também é missão", ou "aqui também é missão", omitindo a necessidade de esclarecer qual ou quais dimensões do carisma comboniano são relevantes para a nossa missão na Europa. A expressão "a Europa também é missão" pretende justificar os empenhos de evangelização (vulgarmente empenhos de pastoral), esquecendo-nos de ver que a afirmação justifica igualmente os empenhos nas demais dimensões do carisma comboniano, como a animação missionária e a formação, o empenho na transformação social e no diálogo religioso e cultural, válidas para a nossa missão na Europa tanto quanto a pastoral.
Que a missão cristã é, e sempre foi, global, é evidência que ninguém aqui pretende rebater ou negar. Mas afirmar que "a Europa também é missão" tout court, para um comboniano, não chega. É necessário esclarecer quais dimensões da missão cristã são pertinentes para o carisma comboniano neste momento na Europa, nos países e nas igrejas locais onde estamos inseridos. Se não fizermos este discernimento, a partir da identidade do próprio carisma, acabaremos por assumir não importa que empenho e forma de missão na Europa (como já se está a ver com o assumir de paróquias estabelecidas).
Não deveria o nosso carisma levar-nos para compromissos de evangelização de fronteira, de periferia, onde o nosso carisma de presença, de diálogo e de primeiro anúncio possa frutificar em acção? Não deveríamos apetrechar-nos com métodos de primeiro anúncio a adultos e jovens, de formação e acompanhamento de grupos que mantenham vivo e activo o espírito missionário nas comunidades eclesiais (preparando pessoas e equipas para o fazer)? Não deveríamos procurar itinerários de formação e iniciação à vida missionária que possam tornar-se “caminho” para a realização da vocação missionária de quantos o Senhor continua a chamar ao serviço do Evangelho? Não deveríamos, na Europa, manter vivo o horizonte da vocação missionária universal, a mística da saída da própria igreja para servir o evangelho no meio dos povos e de outras igrejas? Não deveríamos, então, promover iniciativas missionárias novas, como (digo a modo de exemplo) “Tendas de Abraão” ou “Cátedras dos não cristãos”, para acolher os outros com os seus valores e partilhar os nossos e o Evangelho com eles?!

Estar inserido na Igreja local
As respostas a estas perguntas, naturalmente, implicam um processo de discernimento feito com as igrejas locais onde vivemos e onde o nosso carisma está chamado a mostrar a sua fecundidade. Mas aqui começa também a segunda dificuldade, aparece outra meia-verdade que dizemos com frequência, esquecendo-nos da segunda parte da afirmação. Para justificar a tomada de paróquias afirma-se a necessidade de "estar inserido na Igreja local", "presente no coração e na vida concreta das dioceses".
Fazemos a afirmação esquecendo duas coisas. Primeira, a segunda parte dessa verdade; isto é, que devemos estar inseridos na igreja local "segundo o nosso carisma" e não a qualquer preço ou de qualquer maneira. Segunda, que também devemos e podemos estar presentes na igreja local através das demais dimensões do nosso carisma, como a formação e a animação missionária: estas são maneiras, tanto válidas como a evangelização, de estarmos presentes e sermos parte da igreja local.
Podemos, de facto, pela nossa maneira de ser e agir, colocar-nos de fora da igreja local. Mas isso não é inevitável, nem implícito, nem é a situação que nos caracteriza no momento actual. Devemos sim trabalhar para que a igreja local nos veja e sinta como parte integrante, no exercício das várias dimensões do nosso carisma. Devemos também trabalhar para que a "inserção na igreja local" não seja a sentido único e unívoco e equivalha a assumir paróquias em resposta à actual falta de clero.
Neste processo de discernimento e diálogo com a igreja local, se não defendermos, isto é, partirmos da identidade do nosso carisma, acabaremos homologados às congregações religiosas, aos olhos das igrejas locais. Isto, por muito que se diga (como algum bispo diz) que nada nos impede de desenvolver a nossa espiritualidade e carisma missionários na paróquia: não desenvolveremos o carisma se, de alguma forma, o tivermos desvirtuado aos nossos olhos e aos olhos da Igreja local (se o nosso carisma é de evangelização, de primeiro anúncio, de presença e envolvimento com os mais pobres, não fará sentido "carismático" a tomada de paróquias já estabelecidas e formadas por outros, isto tanto na Europa, como na África ou noutro continente).
Ao afirmar o que fica dito, ficamos com um problema que é: esclarecer e aprofundar a nossa identidade carismática, por um lado; encontrar, por outro, metodologias de presença, de diálogo e de primeiro anúncio, decidir-nos por formas actualizadas de envolvimento nos processos de transformação social. Esta é uma tarefa árdua, que continuamos a ter por diante, e que, apesar das tentativas dos últimos capítulos, ainda nos encontra muito dispersos. A recente achega do papa Francisco na Alegria do Evangelho poderá ajudar-nos a vencer essa dispersão e a encontrar essa convergência de visão, mística e método que (aparentemente) nos falta para encontrarmos "o novo, em termos de carisma comboniano," no discernimento que fazemos.

As vocações são dom de Deus
O futuro do nosso carisma missionário comboniano e das novas formas de o vivermos no seio das igrejas locais depende das vocações que tivermos, de novas forças e recursos humanos que no futuro integrarão o nosso instituto e os demais institutos da família comboniana. O facto de na Europa, por exemplo, não dispormos de novas vocações e estarmos a ficar com idades avançadas, condiciona o processo de discernimento de que falávamos acima, acabando por nos levar a fazer as "opções carismáticas possíveis", dada a idade e a índole das pessoas.
Em relação com este aspecto (da falta de vocações) a meia verdade que temos vindo a repetir é que "as vocações são dom de Deus". Quer-se com isto dizer que não nos devemos angustiar com a sua falta. Mas a verdade inteira é que as vocações, se por um lado e primeiro são dom de Deus, por outro e logo a seguir, são fruto e expressão da vivência do nosso carisma. Dependem, por isso, da vivência do nosso carisma e dos nossos métodos de trabalho e promoção vocacional, da nossa capacidade de transmitir o carisma a outros, a outra geração.
Certamente não nos devemos angustiar com o nosso futuro. Mas devemos viver o nosso empenho no presente, com a consciência de que tudo também depende da nossa vida e trabalho: fazer as coisas como se dependessem de nós, sabendo que dependem de Deus! Isto é, sem nos dispensarmos de nos questionarmos sobre os métodos mais adequados para viver e transmitir o carisma, para fazer animação e promoção vocacional, para iniciarmos os jovens à vivência do carisma missionário comboniano na formação de base. Não nos devemos angustiar com os resultados, mas tão pouco podemos encolher os ombros, como se de nada se tratasse. As vocações são dom de Deus, mas a responsabilidade de as procurarmos, nutrirmos e fazer crescer é nossa; está é a verdade inteira a este respeito, uma verdade que nos deveria incomodar, fazer pensar logo de manhã! (para usar a expressão de alguém na nossa última assembleia).

Missão é...
Outra meia-verdade do nosso vocabulário corrente é dizer que "missão é..." e enunciar, de um modo exclusivo, uma das dimensões da missão cristã. Note-se que, ao dizer isto, não se pretende negar o enriquecimento da visão missiológica que significou o alargar das dimensões da missão, de modo a incluir, por exemplo, a ecologia e a defesa da criação, a justiça e a paz, a acção de conscientização em favor das causas que são essenciais para os processos de transformação social, cultural, económica e política das sociedades onde vivemos o nosso carisma. O que se pretende dizer é que é necessário afirmar a verdade inteira; isto é, que, por exemplo, "missão é justiça e paz", tanto quanto, e na medida em que esta dimensão da missão cristã está unida às demais e, sobretudo, ligada à dimensão central, que é o testemunho e o anúncio de Cristo. As várias dimensões da missão, separadas ou isoladas em si próprias, como habitualmente aparecem, correm o risco de se transformarem em acção sem ligação à missão cristã, em causas mais ou menos ideológicas ou de moda que acabam por perder a matriz de onde nasceram.
No capítulo de 1997 operámos esta transformação, de linguagem e de visão missionária, afirmando que "missão é.... numa multiplicidade de dimensões que enriquecem o nosso serviço missionário (e que deram o título aos vários documentos desse capítulo: missão é inculturação e dialogo, missão é colaboração, missão é animação missionária, missão é empenho pela justiça e pela paz, missão é atenção à pessoa, missão é serviço de autoridade em comunhão e subsidiariedade, missão é partilha de bens (DC 1997 nº 32-199). Mas temos muito que fazer e andar para viver essas dimensões de modo integrado, para reconduzir todas essas dimensões da missão cristã ao seu centro, de onde lhe advém a vitalidade, e evitar que se isolem numa prática que absolutiza a parte em detrimento do todo e que acaba por reforçar o tradicional individualismo comboniano. Esta situação deixa-nos de costas viradas uns para os outros, cada um absolutizando uma dimensão ou identificando-se com a dimensão do seu gosto e/ou interesse e diminuindo o sentido de missão e projecto comum.

Programar é importante...
Vivemos num tempo em que as reuniões se multiplicam, obedecendo à verdade que "programar é importante" para antecipar e visualizar o futuro. Mas, também aqui ficamos pela meia-verdade, esquecendo a outra metade; que "se programar é importante, o que faz a diferença é realizar, concretizar".
Entre nós combonianos vulgarizaram-se (e de certa maneira banalizaram-se) as reuniões, tanto a nível geral de instituto, como de coordenação continental e provincial. Na Europa, por exemplo, o exemplo vem de cima, com os provinciais a reunirem-se várias vezes ao ano e a multiplicarem sem evidentes frutos as reuniões dos sectores que coordenam.
Reunir-se e programar é importante, mas esquece-se que o que faz a diferença é o agir e este tem sido muito mais lento que o ritmo das reuniões. Estas têm arrastado os problemas, ou por falta de adequada preparação (reuniões sem agenda devidamente preparada) ou por falta do consequente seguimento e acompanhamento das questões. Exemplos poderiam enumerar-se, aos vários níveis, mas não é essa a função deste texto. O que importa evidenciar, para se afirmar a verdade inteira, é que reunir-se implica responsabilidades para aqueles que se reúnem, responsabilidades que começam com a preparação, sua e das agendas; e que importa não cair na sensação (na situação que em alguns casos existe já) de que se fazem reuniões para cumprir agendas ou alimentar sensibilidades, reuniões das quais nada sai e que acabam por em nada afectar a vida das pessoas, das províncias e do instituto.

O problema são os outros
A outra meia-verdade que desejo comentar, antes de terminar, tem a ver com a atitude com que geralmente reagimos ao estado de coisas, no instituto, na igreja e na sociedade. Desculpamo-nos e alijamos responsabilidades: tendemos a assumir que "o problema são os outros". Ora como realmente estão as coisas, os "outros" (o estado da sociedade, da igreja e do instituto) não serão propriamente o paraíso, mas tão pouco são o inferno e a verdade inteira manda dizer que "o problema também somos nós" e a maneira como reagimos às situações: reconhecendo a nossa situação e assumindo corajosamente as reformas que se impõem; ou assobiando para o lado como se as coisas não nos dissessem respeito.
Há tempos, falando com um bispo jovem, auxiliar de uma diocese, no contexto da actual situação de falta de clero, atrevi-me a dizer que "os bispos impõem pouco as mãos". Eu entendia dizer, como lhe expliquei, que o problema da falta do clero e da insuficiência do actual modelo, depende dos bispos que deveriam olhar o problema de frente e procurar respostas adequadas (novos modelos) e não meros paliativos. A resposta dele foi que não, na lógica de "o problema são os outros": que o problema são as comunidades cristãs que têm pouco sentido ministerial e não produzem os sacerdotes de que precisam.
Lembro aqui a cena, porque ela reproduz muitas das nossas reacções: dar-mos a culpa aos outros, a tanta coisa e pessoa, em vez de assumirmos a responsabilidade de mudarmos o status quo; assumir as consequências das situações, em vez de alijarmos as responsabilidades para outros, esperando que outros, Deus também, venham fazer o que, no fundo, é tarefa nossa. É verdade que os responsáveis pelos sectores e pelos secretariados, no caso da nossa província, têm uma responsabilidade especial no nosso ser e fazer missão. Mas o projecto da nossa presença missionária na Europa é comum e o carisma missionário comboniano é uma graça (e uma tarefa) repartida por todos os membros do instituto e das províncias: só o exercício de uma responsabilidade comum alimentará a nossa mística missionária e dará nova vitalidade apostólica ao carisma missionário comboniano nas igrejas locais da Europa.

Num ano especial
O ano de 2015, que hoje começa, anuncia-se prenhe de acontecimentos e dinâmicas eclesiais que, se por um lado nos poderão ajudar a voltar às “verdades inteiras que nos libertam”, por outro lado poderão contribuir para manter as ambiguidades, se falharmos no discernimento que se impõe fazer. Refiro-me ao Ano da Vida Consagrada, que o Papa Francisco decretou, de 30 de Novembro passado até 2 de Fevereiro de 2016. Refiro-me também ao próximo Capitulo Geral que teremos em Setembro deste ano.
Afirmar que somos “instituto religioso”, que fazemos parte da “Vida Consagrada” na Igreja, é dizer só meia-verdade. A verdade inteira é que somos “pessoas consagradas”, homens e mulheres na família comboniana, “para a missão”, o testemunho e o anúncio do Evangelho aos povos. Este “para a missão, para o serviço do Evangelho” faz toda a diferença, como já sublinhou o Superior Provincial Pe José Vieira no editorial do mais recente Diálogo, o boletim provincial, abordando a vivência dos votos.
Configurarmo-nos simplesmente como instituto religioso tem para nós alguns riscos que nos podem afastar da intuição originária do Fundador, que nos sonhou como grande movimento missionário em favor da África. Configurarmo-nos, por isso, como amplo movimento missionário de pessoas consagradas, a vários títulos e de várias maneiras, de serviço ao Evangelho entre os povos, de preferência nas nigrícias (periferias, fronteiras) do nosso tempo, é garantia de fidelidade ao Espírito e ao carisma inicial e de renovada fecundidade apostólica no futuro.
Certamente sentimo-nos inspirados, massajados interiormente, ao ler os dois documentos que de Roma vieram, não para nos sentirmos empolgados numa auto-referencialidade típica da vida religiosa (de que S. Daniel Comboni desconfiava), mas  para nos ajudar a viver a verdade inteira do nosso carisma. Eu pessoalmente gostei mais de ler o texto da carta do Papa Francisco, do que o documento da Congregação Romana da Congregação da Vida Consagrada. Para além da repetição de documentos, o Papa Francisco foi mais claro ao fixar os objectivos para este ano.
Primeiro objectivo, “olhar com gratidão o passado. Cada um dos nossos Institutos provém duma rica história carismática. (...) Será oportuno que cada família carismática recorde os seus inícios e o seu desenvolvimento histórico... para manter viva a identidade, robustecer a unidade da família e o sentido de pertença dos seus membros. Não se trata de fazer arqueologia nem cultivar inúteis nostalgias, mas de repercorrer o caminho das gerações passadas para nele captar a centelha inspiradora, os ideais, os projectos, os valores que as moveram, a começar pelo Fundador”.
Segundo objectivo, “viver com paixão o presente. A lembrança agradecida do passado impele-nos, numa escuta atenta daquilo que o Espírito diz hoje à Igreja, a implementar de maneira cada vez mais profunda os aspectos constitutivos” do nosso carisma. “O Ano da Vida Consagrada questiona-nos sobre a fidelidade à missão que nos foi confiada (...). A nossa presença corresponde àquilo que o Espírito pediu ao nosso Fundador, sendo adequada para atingir as suas finalidades na sociedade e na Igreja actual?”
Terceiro objectivo, “abraçar com esperança o futuro... é a esperança que não desilude e que (nos) permitirá continuar a escrever uma grande história no futuro, para o qual se deve voltar o nosso olhar, cientes de que é para ele que nos impele o Espírito Santo a fim de continuar a fazer, connosco, grandes coisas”. Dito também com palavras de S. Daniel Comboni, não poderíamos ter melhores votos para este 2015: “muita coragem para o presente, mas sobretudo para o futuro!”

Pe Manuel Augusto Lopes Ferreira, mccj
1 de Janeiro de 2015
Festividade de Santa Maria, Mãe de Deus, e Dia Mundial da Paz