Domingo, 23 de Junho de 2019
Eram as cinco da tarde quando os meus pés pisaram terra sudanesa, de onde estive ausente desde havia meio ano. O avião já tinha começado a baixar e, muitos dos passageiros espreitávamos pela janelita do assento para ver a cidade de Cartum desde o alto. Mas só se via uma cor amarela muito, muito espessa. Nada de estranho, é certo, para quem vive em lugares desérticos, onde as tempestades de areia são parte do ambiente climático. Mas outra coisa é acontecer no momento de uma aterragem…

Ouviu-se um grito histérico que foi imitado por outros. E não creio que fosse puro contágio psicológico. Porém, outra voz se ouviu, também. Graças a Deus! A voz do piloto, que assegurou não haver verdadeiro motivo para alarme. E, de facto, mostrou verdadeira perícia com uma aterragem de um profissional bem sucedida.

Padre Feliz da Costa Martins de regresso ao Sudão.

Depois do susto em que precisaram de respirar fundo até os mais destemidos dos passageiros, alguns, embora travados pelos Seguranças do aeroporto, teimaram aproximar-se do experimentado piloto que saía do avião. A rebeldia e desobediência aos guardas de turno eram justificáveis: o homem da farda branca tinha que receber os merecidos parabéns. Muito embora sóbria e simples, por causa do mau tempo que nos obrigava a esfregar os olhos doridos pelo pó areoso continuamente a cair em cima de nós, a cerimónia foi cumprida com gratidão e simpatia.

Esta minha suposta viagem de Roma a Cartum já tinha sido iniciada no dia 4 de Junho, mas o voo tinha sido truncado a meio do caminho. Por essa razão, o aparelho aterrou no Cairo, Egipto, e não prosseguiu. Porquê? Razões de segurança máxima, devido à revolução em curso naqueles dias em Cartum, cujo aeroporto tinha deixado de funcionar. Vamos esperar até quando? Até quando acabasse a revolução, alguém do escritório esclareceu. – Mas o bilhete está pago até Cartum – , protestámos todos em grupo. E a resposta veio do mesmo escritório, desta vez mais delicada: “sigam, por favor, as informações/instruções pela internet”. Quando olhei em volta, os presumíveis passageiros para Cartum tinham dispersado no meio da multidão do aeroporto.

Quanto a mim, já que estava no Cairo, aproveitei a ocasião e fui visitar os colegas combonianos naquela cidade. Graças a Deus que a nossa família também se encontra presente nesta parte do mundo. Aqui, na cidade cosmopolita do Cairo, tive a graça de participar nas actividades com os colegas daquela comunidade. E, logo por sinal, falam a mesma língua que nós no Sudão: o árabe. Ao missionário, de facto, nunca há-de faltar trabalho.

Depois de 10 dias de espera, chegou a notícia: o aeroporto de Cartum abriu as portas. Finalmente, rumo ao Sudão! Apesar do susto da tempestade de areia que ameaçava a aterragem com segurança, como já descrevi acima, o apto e ágil piloto mereceu os parabéns.

Cartum… um lugar fantasma?! Foi-me realmente difícil acreditar na calma e tranquilidade que via nesta cidade que, ainda no dia anterior, tinha sido testemunha da crueldade e atrocidade barbárica da revolução. No caminho do aeroporto para a missão católica distinguia-se claramente o campo principal de batalha destes dias passados onde a sujidade e os estragos ainda estavam à vista.

Ao passar na ponte do rio Nilo fiz memória das quarenta vítimas que os militares tinham atirado, raivosamente, às águas, depois de os terem cravejado de balas. Mais tarde, ao aparecerem os seus corpos a boiar à mercê das águas, foram retirados pelos seus amigos manifestantes. Uma revolução que, em poucos dias, custou um preço muito caro: 130 vidas. E largas centenas de feridos.
Antes e depois da ponte, vi dezenas de carros armados parados. Os militares em atitude de relaxamento mas bem atentos a tudo o que se passa à sua volta. Os reboques cheios, bem abastecidos de tudo, bombas de vários tipos e tamanhos. Prontos para obedecer à ordem dos senhores da guerra. A marcha lenta e cautelosa do nosso veículo afoitou-me a cumprimentá-los: assalam aleicum, a paz esteja convosco. E eles, encostados aos seus carros-monstros arrumados à sombra daquela árvore gigantesca, responderam secamente: ua aleicum assalam, e contigo também.
Oxalá esta linguagem habitual de saudação que fala literalmente de paz (em língua árabe) corresponda aos seus pensamentos e acções, – comentei, dentro de mim, em jeito de oração. O condutor viu-me limpar o suor do rosto: “andando a este passo tão lento as janelas, ainda que abertas, não dão ventilação para abrandar os 43 graus de calor…” – desculpou-se, delicadamente.
Momentos depois, voltei-me para trás. Só então reparei naquela árvore tão grande e tão bonita. Era uma acácia em flor a acolher, na sua asseada frescura e beleza, aquele grupo de homens brutos e sanguinários com as suas ferramentas mortíferas de destruição e guerra.
Mais um quarto de hora e estávamos a chegar à igreja da missão e residência dos missionários combonianos.  Aquela cena para mim, é o espelho de Deus e de nós, humanos… Concluí a minha oração: “Assim és tu, meu Deus. És a grande acácia à cuja sombra podemos, maus e bons, fazer uma pausa de sossego e descanso. Obrigado, Senhor, porque, na tua magnanimidade, beleza e misericórdia perdoas o nosso pecado, a nossa violência, a nossa fome de poder. Ámen!”

As pessoas com quem me vou encontrando prudente e cautelosamente nas vizinhanças da missão, mostram rostos de corpos sofredores, cansados das vigílias de noites e dias sem tréguas. Eu tinha seguido as notícias pelos meios de comunicação, mas ao cumprimentar a amiga e vizinha Myriam Salah – 42 anos e mãe de 7 filhos – o sentimento trouxe uma emoção ainda mais forte. “Estás longe de imaginar, abuna (padre), o que eram estas ruas e praças e tudo quanto era sítio… era tudo um mar de gente. Acampados de qualquer modo, com tendas ou sem tendas, não arredámos pé durante mais de dois meses. O pão escasseava mas não faltava a solidariedade entre os manifestantes. Gritávamos e cantávamos os slogans da liberdade, justiça e paz que tanto desejamos para o nosso querido país. Como aguentámos durante todo esse tempo… só Deus o sabe”.
A boa senhora, de religião muçulmana, respirou fundo, como que a querer retomar a palavra. E enquanto limpava as lágrimas com a ponta do tôb (manto-véu) que lhe cobria o corpo dos pés à cabeça (excepto as mãos e as maçãs do rosto), disse com a voz entrecortada: e o futuro como será!? Estamos com muito medo do que está para vir…” Perguntei-lhe se eram muitas as mulheres na revolução. Mas Myriam Salah só levantava os braços e procurava secar as lágrimas de um choro que lhe paralisou a voz.
Compreendi que eram muitas, muitas. Sim, eu já tinha sabido por outras fontes que as mulheres nesta revolução ultrapassaram em muito o número dos homens. Certamente, porque foram mais espezinhadas e sofreram mais do que os homens numa sociedade machista.

Cheguei a Cartum há 3 dias, mas o meu destino é ainda mais longe. Quando os transportes públicos garantirem funcionar com segurança, viajarei para a cidade de El Obeid, a 600 Kms de aqui, na região de Cordofão. Como aquela de Cartum, também esta é uma herança geográfica do nosso pai e fundador S. Daniel Comboni. Foi aqui que ele realizou grande parte da sua vida missionária, abrindo o caminho para nós, seus filhos, que seguimos os seus passos.

A população é maiormente de religião muçulmana. Autóctones arabizados. Pele mulata bem tostada. Mas também lá vivem muitos africanos, especialmente da etnia Nuba, onde cristãos e muçulmanos vivem lado a lado. O nosso será um evangelizar com o cunho distintivo do diálogo (inter)religioso focalizado e salientado no testemunho de vida e amizade, sobretudo através dos serviços de saúde (pequenas clínicas/dispensários) e da educação/ensino. Sem proselitismos ou fanatismos, como recordou o papa Francisco na sua viagem de há poucos meses atrás, ao pequeno grupo de cristãos em Marrocos.

É nessa zona do Cordofão que se situa a região dos Montes Nubanos, onde os Janjauides (milícias militares) são famosos, infelizmente, pelos massacres de conflito armado, semelhante ao já mundialmente conhecido no Darfur. Muito do nosso trabalho aqui tem a ver também com os desalojados que se encontram espalhados pelos Montes. Não só, mas também temos ao nosso cuidado muitos outros que chegam refugiados do país vizinho e irmão, o Sudão do Sul, de onde fogem da guerra fratricida que o Papa Francisco actualmente tanto se tem esforçado para ajudar a pôr termo.

Feliz da Costa Martins
Missionário comboniano
Cartum, Junho de 2019